Décima primeira Lembrança

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"Às vezes eu queria poder voltar atrás e mudar a forma como as pessoas me conhecem. As minhas primeiras impressões.

Queria mudar as coisas que eu fiz ou disse, que ajudaram a conhecer meu nome de alguma forma. Queria apagar meus gostos, a primeira vez que cortei meu cabelo, que me olharam torto e como tudo piorou na época que eu namorei com ele e mesmo após o término.

Queria tirar essa pele que me reveste e me fazer uma tela em branco para aproveitar os olhos surpresos que recaísse sobre mim como se fosse a primeira vez, e assim pudesse moldar uma figura agradável que todos querem por perto.

Que não morra de medo de ser abandonado.

Para não ouvir as fraquezas que todos têm na ponta da língua. Para refazer todos os traumas que rasgam a minha pele e deixam cicatrizes profundas, que me paralisam quando colocam o dedo.

Tenho nojo dessa máscara que carrego. Tenho nojo de cada pedaço daquilo que sou, poderia ter sido e que queriam que eu fosse.

Queria apagar e me tornar esquecível antes de tudo."

É isso que estou pensando encostado na parede do banheiro do bar, entre as cabines e a pia. Não sei quanto tempo estou aqui, mas sei que faz um bocado que cheguei no bar.

Hoje está tendo duas recepções especiais - um artista plástico e um escritor estão expondo seus trabalhos - então a casa está cheia, público novo, risadas novas, cheiros novos, conversas novas, caras novas. Tudo o que eu não sou.

O "moleque do bar", como chamamos carinhosamente o aprendiz do meu marido, ficou encarregado de me servir enquanto Hugo se ocupa com a demanda caótica dessa noite. Tenho certeza que ele está com aquele mesmo pano por cima dos ombros fazendo os drinks ou mantendo conversas como só ele sabe fazer.

Eu não deveria ter bebido cachaça e o moleque muito menos ter me servido. Sei que vai levar um esporro dos grandes quando formos descobertos, ainda mais por eu ter pego uma das garrafas e ela está seca no meu lado no chão um pouco úmido e já fedido do banheiro.

Fecho os olhos e encosto a cabeça na parede, inspirando o cheiro já longe de eucalipto dos produtos de limpeza utilizados.

"Eu queria deixar tudo para trás. O peso nas minhas costas nunca foi embora, mesmo com a quantidade de medicações e ida ao terapeuta. Parece que aquilo que me enfeia se tornou tão sólido e incrustado, que faz parte de uma parcela de mim.

Queria poder refazer tudo, me limpar, arrancar camada por camada do que me envolve. Sou frágil, instável, emocionalmente desequilibrado, medroso, desesperado. Um acumulado de marcas que moldaram a criatura horrenda que eu sou hoje, que nunca foi atraente aos olhos de ninguém e que sempre rejeitou aquilo que chamam de compaixão e afeto."

Sinto as lágrimas se formando nos meus olhos. Estou completamente embriagado, não só pelo álcool, pelos meus sentimentos, pela melancolia que alimenta minhas veias, minha criatividade de escritor, pelos meus remorsos patéticos.

Minha garganta dói, estou rouco faz algumas semanas, deveria ir ao médico, preciso procurar um especialista imediatamente, mas não sei fazer isso sem preocupar Hugo. Então tudo bem deixar se tornar mais um remorso.

Agora percebo que estou sozinho em um banheiro fedorento, com a música tocando lá fora e ninguém veio atrás de mim, como nunca vieram, como me deixaram morrer sem estar morto.

O melhor seria apagar tudo.

Mas sinto falta do meu marido, sinto falta do seu corpo junto ao meu, ao mesmo tempo que penso que sou uma completa desgraça na sua vida. Que eu fui aquele que o levou ao fracasso, a miséria.

Chopp de Morango com LaranjaOnde histórias criam vida. Descubra agora