Aquela que o aborto não matou

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Ela nasce, que milagre, que maravilha! De milhões, foi uma delas

Não é um feto abortado, não é vítima de doença, acidente ou rapto

Agradece a dádiva da vida, aos anticoncepcional não tomados

Respira porque Deus quis assim, vale para você, vale pra ela

Em um barraco alugado ela vive, com seu pai, mãe, avó e uma tia

Come os farelos de pão e água, leite azedo e de noite, nada

Nada no brejo, com girinos e lama; brinca na terra, na areia, na grama

Apesar da pobreza, sonha alto, devaneia a riqueza

Uma mansão, um iate, um papel de princesa

E sua família começa uma pequena plantação, que deve dar lucro

Então há a guerra, chega o inimigo, invade o terreno e rouba a sua terra

Enforcam seu pai com um sisal, violentam a mãe, queimam a casa

Ela paralisa, confusa, pequena demais pra entender e perceber

que aquilo ali, apesar de tudo, era a graça de viver

Sua avó se ajoelha, implora por misericórdia, suplica a deus e ora

O invasor se aproxima, revólver na mão, um furo no coração

Diante das chamas, estupram a tia; ela assiste, e espera que seja mentira

O pai caído, a mãe degolada, a tia e a avó tornadas em carbono

E ela ali, inexpressiva e entregue ao abandono

Olha pros mortos e pensa "será que eles voltam?"

"Será que machucou? Será que retornam?"

Olha pros invasores e pensa "porquê?"

"O que nós fizemos?", "Por que ninguém os para?"

"Levem a garota", diz um dos animais

Três anos se passam, ela vira serva de um casal

O homem que matou o seu pai agora é o seu padastro

A mulher que é sua madastra lhe surra por cada erro

"Tudo passa", ela pensa, esperando que algo aconteça

Seu padastro lhe toca, sempre que lhe dá na cabeça

A madastra não se importa, e diz "só esqueça"

Mais um ano se passa, nada muda, então ela corre

Foge com pressa, pros  confins de uma floresta

Agradece a deus por encontrar uma vila, então se torna uma pedinte

São poucos que doam a ela, e são muitos que a atormentam

"por que o humano é assim, Deus?", ora a garota ao seu divino

Uma mulher transeunte lhe aborda, "venha e se abrigue na igreja", ela concorda

É acolhida com alegria, dorme numa cama, com um teto e se alimenta noite e dia

E agradece a dádiva da misericórdia, mas chora à noite, por seus jazidos pais

"será que estão em um lugar melhor?", pensa, esperançosa

Se passa uma semana, e se sente feliz por viver em paz e bonança

Mas no silêncio da noite, quando a igreja dormia

entra uma visita em seu quarto à noite, um homem estranho

Absurdo!Onde histórias criam vida. Descubra agora