Capítulo 1

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A rotina do povoado era simples e pacata. E mesmo com o passar dos anos quase nada acontecia. E de certa forma isso era o que Madalena mais detestava naquele lugar. Que fosse tão parado, mas que ao mesmo tempo que fosse um inferno apenas para ela. Enquanto todos seguiam sua vida tranquila, Madalena era uma menina muito magrela e de pele constantemente bronzeada pelos serviços no sol. Tinha cabelos muitos rebeldes em uma textura que não era lisa nem onludada, estava sempre muito retraida em seu mundo particular, era muito estranha.

Vivia com uma tia que era casada com um comerciante que vendia provisões e sementes para todas as épocas do ano, eram bem sucedidos e tinham três filhos. Perfeitos retratos da beleza, Marcus e Claire tinham cabelos castanhos vividos, de olhos verdes. Claire era voluptuosa mesmo nos seus quinze anos, tinha cabelos muito cacheados, Marcus era forte, bonito e de rosto com traços fortes. Chris também não era nada mal, entretanto era ruivo e ficava mais atrás de seus irmãos. Já Madalena, mesmo tendo primos tão bem apresentáveis, sempre ouvia que não pareciam ser da mesma família. Ela não era mal tratada pelos primos, mas era visível que não eram do mesmo patamar, enquanto a prima vivia sendo a amada de todos e muito desejada, Madalena sempre estivera ocupada trabalhando muito. Mais era vista como uma servente do que alguém da família. Seus primos em nada se importavam com ela; nem para fazer mal, nem para fazer bem.

Já seu tio, a amava como se fosse um pedaço de jóia. Era adoentado e acima do peso, o coração estava falhando e por isso Madalena não reclamava de nada e o ajudava em tudo. Chris ficava na venda, Marcus cuidava da carga e descarga e Madalena vivia correndo nas casas para cobrar o dinheiro do que foi vendido no mês (Por isso vivia bronzeada, ao contrário da prima que era muito branca).

Entretanto a sua tia a detestava muito. Era uma mulher bonita de seios fartos, tinha o nariz fino como agulha e corpo redondo, mas não se atrevia a lhe fazer mal por causa do marido que a censurava. Madalena até então, tinha um certo nível de felicidade, que infelizmente mudaria do nada, após acontecimentos decorrentes de um dia muito comum.

O clima estava péssimo, e a chuva caía sem ter piedade alguma dos trabalhadores que precisavam andar abaixo dela. Madalena tremia com o vento frio do Sul, estava agasalhada com um casaco multi-colorido. Foi presente de aniversário da prima, entretanto já estava gasto; tinha pequenos rasgos em bolsos laterais, e algumas cores já estavam desbotando. Claire tinha uma péssima mania de presentear a mais velha com roupas gastas que ela julgara fora de moda, e seu pai nunca percebia devido a não estar com a visão boa o suficiente para ver detalhes sutis (como as cores desabotadas). Achava bonito como a filha lembrava da prima e, como sempre, Madalena relevava esses detalhes por causa do tio. Na sua mão esquerda estava um guarda chuva furado com apoio muito grande para as suas mãos, era desastrada e havia furado novamente  passando por uma cerca, quando o vento a desequilibrou e o guarda chuva acabou servindo de apoio. Não se atrevia a pedir outro pra Marcus ou Chris. Eles sempre lhe davam bronca.

- Dona Maria! Dona Maria!- Gritou batendo na porta da casa de uma senhora muito surda que morava próxima ao cemitério do povoado. A menina detestava passar por ali, porque era muito medrosa.

E praticamente era aquela a sua rotina; andar como louca pelas casas do povoado todos os dias. Sempre estava cansada ou com frio, e tinha medo de andar durante a noite. Não era de total desprezo cobrar as pessoas para a venda do tio; gostava de como ele se orgulhava da sobrinha ser tão trabalhadora. Entretanto, mal ele sabia que os horários e dias não eram divididos como há uns anos; Claire jamais gastaria seu tempo fazendo um serviço tão "pobre" como andar na rua arrastando encomendas e colhendo moedas (mesmo sendo com esse dinheiro que comprava tantas besteiras). Marcus por outro lado depois da doença do pai, vivia no trabalho da carga e descarga. Tinha demitido três carregadores de cinco anos pra cá, e ele se desdobrava com Sr Jacó (único empregado que havia na carga) para substituir-los. Na venda ficava Chris, sempre inventava algo para repor,ou algo para taquigrafar nos documentos para o depósito apenas para não sair da venda e ajudar em outras coisas. Passava o dia cantando as meninas bonitas do povoado, ou as amigas de Claire que vinham vê-la (Claire detestava-o por isso). O ruivo era obcecado por mulheres, e se não fosse a vigilância da mãe teria arranjado problemas com os homens casados com senhoras que ele já deu olhares maliciosos.

Já a tia Cecília, esta detestava vê-la perto. Passava o dia cuidando da casa (ou seja, mandando nas empregadas que se prendia a não demitir). Ficava lendo noticiários das óperas do ducado, onde sonhava viver. Tinha o rosto tomado de pó de arroz, os lábios alvos de batom e o cabelo sempre muito bem arrumado. Começara a usar um decote mais marcado após o marido ficar doente e enxergar mal. Jamais sairia pra colher as dívidas, isso ficava para a enjeitada que era sustentada no leito de seu lar católico, acolhedor e estável. Madalena não se importava muito com coisas assim, mas já estava fadigada de tanto passar os dias no sol quando era sol, e na chuva quando era chuva. O povoado não era tão grande para quem queria conhecer gente, para quem ansiava festas com todas as noites de pessoas diferentes, mas para quem vendia e entregava encomendas todos os dias, andando para cá e para lá, era como um mundo inteiro.

Depois de custosos minutos, Madalena havia desistido de esperar pela velha. Aquela era a última casa a quem tinha de visitar, então estava dando a volta para ir pra casa. No dia seguinte era domingo, e não iria trabalhar (pelo menos não na rua). Entretanto mesmo na folga, tinha que acordar cedo para ir a igreja. Era muito devota a ela, gostava de ir rezar, de sentir a presença boa que lá havia, das músicas do couro da igreja, onde a prima tinha destaque. Todos a amavam, as moças queriam sua amizade, os rapazes seu amor, e as senhoras lhe chamarem de nora. Na igreja o padre se enchia de orgulho de ver como ela cantava perfeita e afinadamente o hino, na Páscoa e no Natal sempre fazia a voz principal, que Madalena sonhava em participar, mas era tímida e desafinada. Era tão resplandecente lá, na igreja, como uma imagem de uma santa; como se fosse parte das esculturas espalhadas, ou dos castiçais de velas perfumadas em homenagens aos Santos. Havia sido convidada várias vezes na visita do bispo a ser freira. Mas negava, pensava em casamento, e mal sabiam as pessoas que ela era tão materialista.

Na igreja Madalena se encontrava, mas invejava e detestava tanto a prima; como era digna, como era amada mesmo sendo tão superficial. Madalena odiava como todos ignoravam a si, ela era zombaria entre os homens jovens, caçoavam sua magreza e pele bicolor bronzeada, como parecia doente e como ninguém a queria; mas a presença da prima acendia a atenção; invejava seu corpo, sua aura de anjo, seus olhos tão verdes enquanto os de Madalena eram escuros, cobertos de olheiras roxas e profundas. Tentava sempre se espelhar a ela, quando mais nova, mas desistiu. E sua raiva aumentava conforme todos que se interessava, na verdade chegaram perto para perguntar da prima. Madalena rezava a Deus que a perdoasse por sua inveja, sua vontade de humilha-la de muitas formas, por que no fim mesmo que de uma forma estranha a amava. Entretanto, queria muito uma chance de brilhar mais que ela, de ser a atenção, de receber elogios. No fundo entendia que esse rancor não a levaria a nada, não a deixaria bela como anjo, mas ainda não conseguia não se comparar.

Madalena suspirou fundo, rezando para São Jorge enquanto atravessava a rua do cemitério (o povoado tinha costume de queimar corpos, mas as cinzas eram enterradas e veladas em um velório normal). Estava se sentindo aborrecida por esperar tanto a velha surda; agora tinha escurecido mais rápido devido a chuva, e tinha que passar pelo cemitério durante a noite. Temia, era supersticiosa e medrosa, nunca passou por ali durante a noite; muito menos durante a chuva. Definitivamente era seu dia de azar.

Se assustou na metade do caminho, jurou que havia ouvido a voz de uma mulher, logo lembrou das lendas bizarras que cercavam o local; tinha medo delas desde criança, quando Marcus e Chris brincavam que a pecadora do povoado vinha a buscar, quando à abandonavam em locais aleatórios e se escondiam. O coração gelou e se pôs a correr, ignorando o frio da chuva. Sempre foi assim, ela era medrosa, nunca se mantinha em uma situação onde julgara que havia risco. Por ser tímida não tinha boa comunicação, e todos à achavam estranha por se manter sozinha e calada.

Depois de uns minutos, chegava perto das casas próximas. Estava molhada, o guarda chuva havia se entortado para trás pela força do vento conforme corria. Se antes sentia frio, agora tremia cinco vezes mais. Porém, tinha de atravessar apenas algumas ruas para chegar em casa, e estaria tudo bem. Isto é, se não tivesse tropeçando em um buraco na rua escura.

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