Prólogo

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As estrelas brilhavam imutáveis no céu, com o estupor de sua grandeza se estendendo sobre todos os mortais. O calor do verão era mais denso quando se estava perto do morro com tantas colunas de fogo subindo ao céu enegrecido. O grande morro era uma fortaleza. Impossível de ser penetrada por um andarilho, mas não por humanos, esse foi seu fim. O reino inimigo havia sido derrotado. Os clãs da floresta caíram.

As construções eram altas, acima do nível do chão ao seu redor, feitas de toras de madeira entalhadas com maestria, as estradas passavam por baixo de algumas delas. Fora um lugar majestoso no seu passado de glória, até conhecerem a fúria de Torfh e seu exército sedento de sangue.

Sobre um morro descampado, não muito próximo do fervor da batalha, a ordem dos feiticeiros estava analisando as estrelas durante toda a noite, desde antes da batalha se iniciar. Era difícil saber o que estavam vendo em seus sextantes e alieiros. Não demonstravam emoções. Cochichavam na língua antiga, comungando em segredo os mistérios da abóbada celeste. Usavam roupas tecidas, com detalhes que formavam runas antigas, de cores frias e escuras. Um deles estava ajoelhado oferecendo uma prece aos deuses do céu, seu canto era lamuriento.

Alguns soldados ainda estavam por entre as casas do vilarejo, vasculhando os entulhos e procurando sobreviventes ou troféus, sem muito sucesso, a maioria já estavam mortos no chão, formando um orvalho carmesim. Finalmente, o mais velho dentre os feiticeiros deixou o grupo e se aproximou do batalhão de quase cem mil homens que os observava em um silêncio mórbido.

- Meu príncipe - falou ele sem rodeios, seu rosto tinha um pouco, quase que imperceptível, de medo - as estrelas não mudaram.

Houve um burburinho entre os homens de armaduras reluzentes. O general levantou sua espada pedindo silêncio, e o silêncio veio quase que imediatamente. O príncipe de Torfh estava na frente do batalhão. Ele estava em pé, imóvel. Ao seu lado, como sempre, seu grande bisão de guerra, que tinha o peso de três cavalos grandes. Sua armadura era de um metal cinza azulado. Astoriana, diziam os soldados, o melhor metal conhecido. Estava quase completamente embebedada de sangue.

- Vamos marchar para encontrá-los - disse o príncipe fechando a mão com força ao redor da espada.

O príncipe tirou seu elmo e revelou um jovem rapaz. Era marcado por uma cicatriz que cruzava seu rosto de cima a baixo. Passando pelo olho esquerdo formava uma linha branca quase perfeita. Os soldados já não desciam mais o morro com despojos ou mulheres laçadas, então era o momento de sair, pensou o príncipe.

- Ainda assim vencemos senhor - disse o general ao lado do príncipe - podemos voltar para casa amanhã, se divirta essa noite.

O príncipe sorriu e olhou para baixo. A luz das chamas tremeluziam em seu rosto. Ele se virou para um soldado e o segurou para perto de si.

- Matamos os herdeiros, soldado?

- Não senhor, - disse o soldado tentando manter a calma.

- Temos eles como prisioneiros, soldado?

- Não senhor...

A espada do príncipe cortou a garganta do soldado, jorrando mais sangue na armadura. O soldado caiu no chão com as mãos em volta do pescoço.

- Se as estrelas não mudam, o futuro ainda é o mesmo - o príncipe voltou sua atenção aos feiticeiros novamente - nem uma mudança?

Os feiticeiros se entreolharam em silêncio. Após um momento de silêncio começaram a guardar seus sextantes.

- A profecia da morte dos deuses ainda é viva, meu senhor - respondeu finalmente o feiticeiro mais velho - a grande árvore dos mundos está morrendo.

O príncipe gritou furiosamente e decapitou o feiticeiro. A cabeça dele rolou alguns metros, ficando com a face para cima. O corpo continuou em pé.

- Sempre impulsivo, meu senhor - disse a cabeça no chão - a ordem dos feiticeiros está se retirando, essa não é a guerra que concordamos em lutar.

O príncipe riu alto fitando a cabeça no chão.

- Não finjam uma decência que vocês não tem, sabiam exatamente que era preciso um preço alto para se mudar a linha do tempo.

- Mas um massacre atrás do outro, sem uma única mudança, já é o suficiente para sabermos que não vamos mudá-la assim - a cabeça começou a tremeluzir - esse é Silibat, meu príncipe, um evento imutável no tempo.

O corpo decapitado tremeluziu até sumir completamente. Os outros feiticeiros fizeram o mesmo. Logo todos sumiram, deixando apenas o cheiro do carma para trás.

- Alguns prisioneiros dizem tê-los visto indo na direção dos vales, - o general fez uma pausa e sorriu sarcástico - não creio que dois jovens irão sobreviver nos vales, senhor.

O príncipe se ajoelhou perto do soldado caído e fincou a espada em sua cabeça. Ele ficou ali ajoelhado. O sol começava a nascer, lutando para passar por entre as nuvens no horizonte. Uma tempestade se aproximava vindo da costa. Os ventos sopravam fortemente. O verão estava quase acabando e o outono voava como uma brisa.

- Mande avisos a todos os nossos olhos em Akena, nos vales e nos portos - o príncipe se levantou - quero o herdeiro vivo, irei enforcar ele na praça principal de Torfh.

- Irei mandar imediatamente, também mandarei nossos soldados para casa. - O general esperou por alguma objeção, mas não veio nenhuma - Eles lutaram bravamente, merecem suas famílias antes do inverno.

O príncipe deu de ombros e montou em seu bisão de guerra. Mesmo a fraca luz do sol fazia sua armadura reluzir. Ele colocou seu elmo novamente. Bateu a guia do bisão. Marcharam em direção de Torfh, para os lados das montanhas do oeste selvagem. O bisão era rápido, o solo úmido da floresta se esmagava sobre os seus grandes cascos.

Os vagantes se aproximavam ao longe, atraídos pelo som. Deveriam ser muitos, pois mesmo longe se podia ouvir o som dos ossos.

O Som Dos OssosOnde histórias criam vida. Descubra agora