Cupido

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Lavando a louça do jantar a única coisa que consigo pensar é em como estar em casa é um pesadelo.

O silêncio tenso impregnado no ar faz com que da cozinha consiga ouvir as noticias perturbadoras do jornal sensacionalista que meu pai vê com toda concentração.

De soslaio observo minha mãe com o rosto franzido em uma expressão enigmática, calada segue passando as roupas, a tarefa feita de maneira lenta e metódica parece mais uma fuga do que realmente uma necessidade.

De repente a porta se abre dando passagem para Jessica, o sorriso morre em seu rosto assim que pisa dentro do cômodo, minha irmã passa pela sala na penumbra com passos leves, parecendo querer esconder sua maleta de esmaltes e outros itens que usa no trabalho.

Tão súbito quanto entrou logo a garota some para o quarto, seguindo seu exemplo término  de limpar a pia e corro para minha cama sufocada com a quietitude ensurdecedora.

Se ele não estivesse em aqui, o rádio estaria ligado e minha mãe balançaria no ritmo da música enquanto cuida da casa, Jéssica certamente entraria falante reclamando de alguma coisa que houve no salão.

O silêncio não é paz, e sim o mau presságio que antecipa o caos, cada atitude nossa é calculada para não incitar uma guerra, vivemos num campo minado.

Encolhida sob o cobertor abraço Fred desejando não ter que viver mais com medo, o gesto de envolver meu cachorrinho de pelúcia me faz lembrar de Felipe, a imagem do seu olhar ferido e vermelho de lágrimas não sai da minha mente.

Todos nós temos dores para enfrentar.

Jéssica sai do banheiro com a cara cheia de uma máscara esverdeada, se joga na cama mexendo no celular perdida no próprio universo, seu olhar em algum momento colide com o meu notando que a observo.

– Sinto falta de te ouvir gritando, quer dizer cantando pela casa – para minha surpresa confessa num suspiro.

Simplesmente fecho os olhos me rendendo ao sono, adormeço entregue a escuridão sem sonhos.

Logo o dia amanhece, como se tudo estivesse perfeito na mesa do café, minha mãe, meu pai, minha irmã e eu nos sentamos feito uma família unida e feliz, mal consigo tomar o leite com o nó que se forma na minha garganta de tantos sentimentos amargos que não posso engolir.

Termino o mais rápido possível de comer e vou para o ponto esperar o ônibus conversando minha vizinha, ao menos tenho a simpática senhora para animar um pouco minha manhã.

– Marcela obrigada, você é uma menina tão boa – Dona Maria me elogia.

– De nada, depois da escola eu passo na sua casa.

A senhora agradece mais uma vez e cantarolando vai para os fundos cuidar da sua horta.

Como de costume dona Maria veio conversar comigo, dessa vez reclamando das dores no corpo devido a idade, se queixando de não conseguir dar conta da bagunça de onde mora, entretanto vi na sua fala uma oportunidade e depressa me ofereci para ajudar nas tarefas domésticas na intenção de ficar longe da minha casa.

– Vai mesmo fazer isso?! – Jéssica questiona incrédula.

– Ela é velhinha, precisa de ajuda – tento me justificar, embora meu interesse não seja tão nobre.

– Sei... Você é uma boba – revira os olhos.

– E você uma chata – retruco insatisfeita.

– Vamos logo, a Dara tem algo importante para me contar – ignorando meu xingamento entra no ônibus.

Delírios de Marcela  Onde histórias criam vida. Descubra agora