Vou para cozinha, o cheiro do café me recebe enquanto, minha mãe joga água fervendo sobre o pó, o líquido negro fumegando é colocado na caneca e entregue a mim.
Prefiro tomar com leite, porém aceito sem reclamar, o seu rosto cansado exibindo um riso sem graça me desanima, junto com os olhos inchados, que evitam me encarar.
Meu pai entra na cozinha enche seu copo e senta calado, os dois mal se olham, a tensão sufocante paira no ar nos forçando a um silêncio inquieto, desconfortável.
Nervosa mordo minha bochecha enquanto passo manteiga no pão fingindo não saber o que aconteceu, os fones de ouvidos não me impediram de ouvir seu choro de madrugada, na sua vigia esperando ele voltar para casa novamente bêbado da rua. Outra noite longa cheia de discussões.
- Que merda é essa ?! Esse café está horrível! - Meu pai soca a mesa irritado. - Você é uma inútil não sabe fazer nada.
- Quer que eu passe outro? - Oferece com a voz assustada.
- Não precisa, vou comer na padaria. -Sai batendo a porta - Não me espere para o almoço.
As lágrimas escorrem pelo seu rosto, minha mãe levanta-se indo até a pia secando rápido os olhos com as costas da mão, e se põe a lavar louça.
Jéssica e eu continuamos na mesa fingido não notar sua dor, fomos ensinadas desde de pequena a não ver e não falar das brigas em casa.
-Estão surdas!? O ônibus chegou! -Irritada minha mãe grita.
Nós duas saímos depressa, hoje confesso ser um alívio vir à escola.
Ainda faltam alguns minutos para o sinal tocar anunciando o início das aulas, entre as estantes caminho lentamente olhando as lombadas, estou em um momento de desespero: preciso de um livro que seja a porta para fugir dessa vida, uma passagem para o mundo da imaginação.
Quero um escape dessa realidade que me consome, algo que possa me envolver ao ponto de me esquecer.
Ler é empolgante, é por isso que amo, com a leitura posso ter outras vidas, conhecer outros mundos, descobrir novas realidades, viver aventuras, desafios. Imaginar ser o símbolo de uma revolução, lutar numa guerra, derrubar governos cruéis, salvar o mundo.
Ser uma mulher de sucesso, milionária, poderosa, tendo um romance ardente com meu rival , ou ainda ser a rainha do baile, linda, popular, encontrar o verdadeiro amor e ser feliz para sempre.
Já vivi mil vidas, porque eu li.
A hora da Estrela, esse título me chama a atenção, pego-o encantada com a capa, leio a sinopse e tenho certeza que é esse o escolhido.
No fundo da biblioteca sento-me no chão encostada na parede, a pouca luz que bate onde estou não me incomoda, na verdade traz um clima de aconchego, o silêncio ao redor me preenche e me sinto confortável na minha solidão absorta na história de Clarice Lispector.
- Ah... - Alguém tropeça em mim.
- Desculpe - Peço indo ajudar a pessoa que caiu, me assusto vendo que é Matheus, quando sua mão toca a minha meu corpo estremece.
- Não te vi... foi mal - Fala me olhando nos olhos.
- Como ia ver? Encolhida no chão, como um rato de biblioteca - A Sabrina é venenosa.
- Se você lesse mais talvez tivesse notas melhores - Isa rebate - A gente está aqui para achar alguma coisa para te fazer passar em história.
- Ler é chato, dá sono. - Sabrina choraminga.
- Bom dia crianças - Dona Terezinha aproxima-se, é uma senhora alta sempre com um sorriso em seu rosto gentil.- Posso ajudar?
- A gente precisa de um livro sobre A Guerra Fria para estudar - Isa toma frente e somem entre as estantes.
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Delírios de Marcela
Fiksi RemajaMarcela é uma garota romântica e sonhadora que encontra nos livros o seu refúgio particular. Sem julgamentos, é na literatura onde ela pode ser quem quiser: uma mulher empoderada e dona da própria empresa, uma super-heroína, uma grande atleta ou até...