Rapariga-Cão

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A parente inusitada dos Lobisomens e das Peeiras


     Esta descrição é baseada na narrativa #2510 do Arquivo Português de Lendas (APL 2510).


     A típica contraparte feminina dos Lobisomens são as Peeiras ou Fadas dos Lobos, mulheres fadadas a proteger Lobos e a orientar Lobisomens. Porém, ao que parece, nem todas as mulheres com uma maldição igual ou semelhante à dos Lobisomens se têm tornado Peeiras. Houve um exemplo disso na Maia: a filha jovem de uma mulher chamada Alvira – não seria antes Elvira? – transformava-se num ser fantástico diferente – a Rapariga-Cão.

     A Rapariga-Cão era uma moça que saía de casa sob a forma de um cão preto todas as noites, após ela e a sua mãe irem para a cama. Ao contrário das Peeiras, não era vista na companhia de Lobos nem de Lobisomens. E desconheço a razão pela qual tinha essa maldição. A referida falta de ligação com os Lobos faz-me deduzir que a maldição não foi ativada pelo uivo do seu «lobo predestinado» (esta é uma das formas de uma rapariga se tornar uma Peeira). Talvez tivesse a maldição por ser a sétima filha de um casal que só teve filhas antes dela nascer (tal como as Peeiras, para além de um Lobisomem ser o sétimo filho de um casal que só teve filhos de sexo masculino antes); mas não se sei se teve irmãos ou não.

     O que é certo é que a Rapariga-Cão passava por sete freguesias e sete igrejas (presumidamente sem entrar nelas por ser costume estarem fechadas de noite). Isto porque o sete é um número com grande significado bíblico: em sete dias foi criado o mundo por Deus, sete são os dias da semana (com o último sendo abençoado por Deus como dia santo), sete são os pecados mortais, sete são os sacramentos, o Dia de Páscoa é no sétimo Domingo após o começo da Quaresma, o Dia de Pentecostes é no Sétimo Domingo após a Páscoa, etc. O sete é assim o cordão umbilical espiritual que liga muitos seres fantásticos ao nosso mundo, o dos homens vivos normais. Portanto, é possível que ela tivesse de percorrer sete locais do mesmo género para voltar à sua forma humana tal como os Lobisomens.

     A rapariga esteve amaldiçoada muitos anos, provavelmente sem ter memória das suas andanças noturnas, até ao dia em que a Alvira – chamemos então a mãe assim, mesmo que esteja o nome errado – se levantou e foi ao quarto da sua filha, mas não a viu. No dia seguinte, uma vizinha disse-lhe que via sair um cão preto da casa delas todas as noites, a uma certa hora. Esta informação fez a Alvira ficar então atenta ao que saía de casa por um tempo indeterminado.

     Viu a Rapariga-Cão sair de casa numa noite, sem saber que era a sua filha. Resolveu então esperá-la escondida. Quando este ser fantástico voltou, disse-lhe um ou dois impropérios, e espetou-lhe um aguilhão (ponta de ferro das varas compridas usadas para picar os Bois), provavelmente na testa, fazendo-lhe sangue e imobilizando-o de dor. Foi o que bastou para que a filha da Alvira voltasse a ser o que realmente era, à frente da mãe dela, e perdesse a sua maldição para sempre.

     Isto demonstra que a Rapariga-Cão era do mesmo género de seres fantásticos que os Lobisomens e as Peeiras: uma das formas de perderem as suas maldições é fazerem-nos sangrar com um objeto aguçado.



Fonte da imagem: IStockPhoto.com (site)

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