Capítulo 19

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Ainda não era noite quando Soen parou em frente aquela grande e feia porta de carvalho.

O ar quente parecia denso e eletrizado ao seu redor, o calor do verão irritando a pele enquanto relutava em ceder espaço ao outono. Nos corredores largos, a luz do sol se insinuava através das janelas estreitas dos cômodos vazios, a maioria das portas abertas para afugentar o calor.

Soen entrou sem se anunciar, tanto por não ser necessário, já que Garon monitorava até o movimento dos vermes em seu intestino, como porque ele se sentia em casa no escritório do feiticeiro, entre suas pilhas de documentos fúteis, suas estantes abarrotadas de livros velhos e sua lareira manchada de cinzas.

— Chegou antes da hora, Vossa Alteza — Atrás da escrivaninha, Garon ergueu os olhos azuis da pilha de papéis que analisava.

— É uma pena, mas estou sem tempo para jogar fora hoje — ele se aproximou para analisar os documentos que o conselheiro tinha em mãos.

Quase como em adoração, os dedos enrugados seguravam com delicadeza as folhas amareladas e envelhecidas, algumas com uma estranha coloração azulada e textura áspera. Todas elas pareciam conter esboços de demônios e anotações rabiscadas em latim, grego e outras línguas indefinidas.

Soen não deu uma segunda olhada nas anotações. Estava muito mais interessado nos esboços, todos de criaturas estranhas e símbolos alquímicos com estrelas, pentagramas, ferraduras flamejantes, meias luas e vários sóis espalhados de maneira organizada em cada página solta.

Percebendo a expressão protetora de Garon sobre aqueles papéis, Soen puxou um deles para inspecionar de perto seu conteúdo.

Tratava-se do estudo anatômico de uma aberração de aspecto humanoide, um demônio perverso rabiscado às pressas com carvão pelas mãos de um artista desleixado — ou talvez apenas estivesse com pressa —, mas habilidoso.

A coisa ostentava três cabeças desiguais, cada uma com diferentes feições monstruosas: uma cabra, um lagarto e algo que lembrava uma aranha. Todas lado-a-lado em um corpo nu e cheio de braços, vários olhos de diferentes tamanhos espalhados pelos rostos repulsivos, chifres retorcidos adornando as têmporas como dedos esqueléticos.

Se olhasse com atenção, Soen podia notar o esboço apagado de uma longa cauda reptiliana, brotando na base da coluna e se enrolando na parte interna da coxa logo abaixo do pênis, para então serpentear ao longo do par de pernas que terminava em cascos fendidos que substituíam os pés.

— Yen adoraria posar para um retrato como este — ele comentou enquanto devolvia o papel para um Garon desconfiado.

— Essas criaturas não são como o príncipe Yenned — Ficando de pé, o conselheiro organizou a papelada antiga com cuidado em uma pilha organizada —, mas não estamos aqui para falar sobre ele, Vossa Alteza. Venha, estou terminando os preparativos.

Soen permaneceu parado onde estava enquanto o bruxo deixava sua escrivaninha e começava a afastar os móveis que ocupavam espaço no centro do cômodo.

No ritmo lento e cadenciado de um velho franzino, Garon afastou algumas poltronas e empurrou sua escrivaninha de encontro a parede, fazendo força contra o cedro robusto e entalhado até que ele finalmente cedeu e deslizou para longe do grande tapete felpudo que revestia o piso de pedras lisas.

Apesar de sua aparência envelhecida, Soen sabia que o feiticeiro não tinha a idade que aparentava, mas foi uma surpresa descobrir que ele era capaz de afastar móveis maciços sem qualquer ajuda. Garon se limitou a gemer um pouco quando se abaixou para alcançar uma extremidade do tapete.

Labe MortemOnde histórias criam vida. Descubra agora