Gostava tanto de você

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A comitiva partiu de madrugada, antes do nascer do sol. Kelvin quase se sentia uma princesa sendo levado assim, mas, em vez de um cavalheiro, tinha Sidney dirigindo e Berenice que dormia o caminho todo. Além da outra caminhonete atrás com mais três guarda-costas. "Rams, nada vai acontecer", e pronto, três guardas. Ele conhecia bem Pontal, já tinha ido a trabalho e a lazer. Podia andar pelas vielas e pelos prédios altos sem problemas. Ramiro estava o subestimando.

Era quase tarde, perto do horário de almoço, quando os carros começaram a adentrar a parte alta. O ruivo olhava pela janela com os olhos brilhando, admirando as centenas de prédios enormes, numa mistura arquitetônica do moderno e clássico. Às vezes, o diploma servia para algo.

Pontal era exatamente a linha tênue entre civilização e barbárie. Não era propriamente uma cidade, já que não tinha prefeitura; era um conglomerado de pessoas, sonhos perdidos no meio do caminho da capital e centenas de cidades como Nova Primavera. Era perto o suficiente da capital para ter um shopping enorme que atendia dezenas de produtores rurais com artigos de luxo e extravagantes na parte alta da cidade. Entretanto, era longe o suficiente para, na parte baixa, onde ficavam as favelas, ocorrer um submundo de qualquer tipo de negócio. A parte da Cidade Solitária onde existiam comércio de contrabando desviado de artigos de luxo era grande o suficiente para alguém se perder e nunca mais voltar, provavelmente umas duas Novas Primaveras juntas ou mais. Mesmo não sendo recomendada, estava no roteiro de viagem de Kelvin.

Era por isso que era uma "cidade" tão atrativa. Nem sequer tinha uma delegacia de polícia; tinha alguns guardas numa unidade especial. Em termos de tamanho, era gigante. Na parte alta, tinha muito mais estrutura, com hospitais incríveis que aceitaram o plano de saúde da cooperativa, o qual Kelvin faria uma bateria de exames, com toda certeza, junto com Bere.

Levando tudo isso em consideração, assim que chegaram, foram à sede da Cooperativa La Selva da cidade e trocaram as 4x4 por carros mais populares. Tiveram que conversar com Hélio, e o ruivo achou o marido de Petra bonzinho e legal, até demais.

Kelvin estava quase irradiando alegria por ficar numa suíte master na parte alta da cidade. Ele já tinha estado ali centenas de vezes para atender clientes muito específicos e categóricos, mas nada nessa terra era igual a estar ali por ele mesmo.

O ruivo não tinha tempo a perder. Chegou no hotel e se preocupou em vestir uma roupa mais discreta porque, se Odilon, seu primo, ainda fosse o mesmo, era melhor ir de forma mais comportada.

Eles estavam no meio da rua, com uma comitiva de dois peões apenas, mais Sidney, no limite exato entre as partes da cidade, bem na frente da Academia de Odilon. O primo tinha escolhido o caminho certo da vida, feito as coisas direito, juntado grana em vários empregos e usado o dom que tinha para esportes na academia de artes marciais. Quando saíram dos fornos juntos e ficaram pelas ruas mendigando, eram muito unidos. Kelvin se lembra bem deles vendo um filme do Bruce Lee numa televisão de loja, e o do primo imitando os gestos, fazendo o pequeno Kelvin rir para ignorar a fome. Odi cuidou dele até onde pôde, quando na adolescência Kelvin começou a dar sinais de mais, o caminho deles não poderia seguir juntos, aí vieram as paradas.

Era ingênuo, e apenas um pirralho. Mas se lembra bem. Estava cansado das paradas de caminhão, não eram seguras. Se alguém apenas quisesse acabar com ele, poderia. Era um dia chuvoso quando Andrade o convidou para trabalhar no bar, pagou comida para Kelvin, não quis um programa, e ele falava bem, explicou o contrato, disse que Kelvin teria casa, comida e amigas. Parecia uma proposta segura, irrecusável. Ele foi burro.

Aí depois o fatídico episódio, uma fuga, que Kevin se escondeu na academia do primo, e as coisas não acabaram nada bem.

Odilon era seu primo por parte de pai, e eles eram idênticos, com a pele tão escura quanto a noite. Quando Kelvin nasceu, o pai foi embora: "Esse bicho de goiaba não tem como ser meu filho". A mãe dele dizia que o homem só queria uma desculpa para não assumir a família, que ela deveria ter sido infiel, mas que infelizmente Kelvin era filho daquele homem mesmo. Mas eles tinham um certo apego com a parte da família que ficou. Kelvin amava a mãe mais que tudo nesse mundo, porque mesmo no inferno dos fornos, ela cuidava dele como podia. Era uma mulher admirável e desde dos doze, quando não podia mais aguentar o calor, e acabou nas paradas, depois o bar, e depois o paraíso que era Ramiro, mesmo agora, ainda sentia falta dela.

PurgatórioOnde histórias criam vida. Descubra agora