A delicadeza com a qual o juiz pronunciou apenas meu primeiro nome, sem o "Senhorita" na frente, deveria ser proibida por lei. Porque aquilo me desestabilizou por completo – o que é irônico, porque ele queria me passar conforto e estabilidade.
Meu abalo pela única palavra que eu devo ter ouvido deixar seus lábios desvanece à medida que dores acentuadas acima de minha testa e em minhas unhas se fazem presentes.
Respiro fundo, tentando não gritar.
Tenho que, ao menos, parecer forte e…
Como diabos eu respirei fundo?
Arregalo os olhos. Consigo respirar sem qualquer dificuldade dentro da água. Quase como se eu tivesse sido criada dentro dela.
Junto as pálpebras com força, aguardando o que quer que vá acontecer em seguida.
Acho que vou desmaiar de novo.
Abro os olhos e procuro pelo dispositivo que mede meus batimentos. Estão rápidos, mas talvez não o suficiente para uma parada cardíaca.
— Cheshire…
Um novo flash atinge minha visão. Dessa vez, estou dentro de um tubo e uma pessoa – parece algum tipo de… cientista…? – me observa.
— Você é perfeita…
— Cheshire! — Encontro Alhaitham, pela primeira vez, preocupado. — Seus batimentos estão caindo. Está quase acabando.
Analiso o ambiente ao meu redor e, em seguida, meu próprio corpo.
Unhas afiadas e pretas substituíram as transparentes e ordinárias, e espécies de escamas adornam algumas partes de minha pele.
O quê…?
O estudioso se aproxima do meu tubo com um espelho, aproveitando que estou me autoanalisando.
Meus olhos me lembram os de Raven, amarelos com pupilas de serpente, e meus cabelos, pretos, também como os dele.
E…
Não.
— Um chifre?! — bolhas saem de minha boca quando exclamo em voz alta.
Ouço bem baixo uma risada.
Neuvillette ri suavemente de minha surpresa e aproxima-se de nós.
— Desculpe. — Limpa a garganta. — Mas é um tanto divertido vê-la espantando-se com os chifres quando praticamente tudo em seu corpo mudou.
Deve passar uma péssima impressão dizer que eu impliquei com Raven pelos chifres dele. O carma veio, e veio forte: meus chifres parecem maiores que os dele.
— Como se sente? — pergunta Alhaitham.
— Acho que bem.
— Mesmo com essa cauda?
— Cauda?! — Olho para trás e para os lados, procurando por ela, mas não a encontro. Franzo o cenho ao encará-lo. — Eu te desprezo.
Ele dá de ombros com uma leve risada.
— Parece que a transformação está concluída. Consegue sair da água?
Assinto e impulsiono meu corpo para cima. No minuto em que emerjo, uma dor alucinante atinge meu corpo e rapidamente mergulho de novo.
— O que é isso? — indago, na expectativa de que algum deles saiba me responder.
— Provavelmente um choque. Do mesmo modo que você sente isso ao entrar em contato com água, talvez aconteça o mesmo ao cortar tal contato.
— Então eu passarei por essas dores toda vez?!
— Se houver uma forma de a manter continuamente em contato com a água mesmo fora dela… é uma possibilidade. — Esfrega o queixo, pensativo. — Congiso projetar algo assim em alguns dias. Ou, na pior das hipóteses, algumas semanas.
— Algumas semanas?! Quer que eu fique aqui dentro sozinha por algumas semanas?!
— Não se preocupe, não estará sozinha. Lembre-se de que meu trabalho aqui só acaba quando encontrar uma solução funcional para seu problema. — Sorri. — Até lá, posso jogar comida para peixe em seu aquário.
— Se você chegar perto demais, eu juro que te mordo.
Neuvillette, que parecia pensativo até o momento, sobe às escadas que levam ao tubo e ajoelha-se no topo, encarando a água.
— Permita-me tentar algo, Senhor Alhaitham — pede, tocando-a com a ponta dos dedos enluvados.
De repente, várias gotas de água se formam, fugindo do tubo e se aglomerando na mão livre e fora da água do juiz. Quando o que quer que esteja acontecendo para, há uma espécie de pingente ali.
Neuvillette o mergulha, oferecendo-o a mim.
— Tente sair com isso em mãos.
Hesito por um momento.
Pego o pingente e impulsiono meu corpo para cima mais uma vez, saindo do tubo rapidamente e molhando o Iudex um pouco no processo.
Um sorriso vitorioso preenche minha feição enquanto sento-me na borda, com os pés ainda na água.
— Consigo respirar sem todo aquele drama... — Puxo uma grande lufada de ar como se para provar a mim mesma que minhas palavras são verdade.
Levanto-me e instintivamente abraço Neuvillette, agradecendo-o por me auxiliar com isso. E somente quando o sinto congelado, sem reação, percebo o que estou fazendo e me afasto.
— Desculpe... — murmuro. — E obrigada. — Observo a água em minhas mãos como se fosse um mero enfeite para um colar.
Ele sorri levemente e encosta a palma de uma mão nas costas da minha que segura o pingente, enquanto utiliza a outra para tocá-lo novamente. Dois fios de água saem e encontram-se após alguma distância, formando algo como uma corrente. Agora é, de fato, um colar.
Tomando-o de minha mão em um gesto rápido, o juiz empurra a corrente contra meu pescoço e ela apenas o atravessa, tornando-se o adereço mais fácil de ser encaixado do mundo.
Mais uma mudança atravessa meu corpo.
A dor em minhas unhas transforma-se em um simples incômodo quando elas encolhem novamente, sumindo junto das escamas.
Olho para meu reflexo na água: os chifres diminuíram e estão relativamente menores; meus fios continuam escuros como a noite e minhas pupila retornaram ao tamanho normal. É como se minha forma atual fosse uma mistura entre a minha versão terrestre e a minha versão aquática.
— Meu vocabulário para agradecimentos é relativamente curto, não sobram muitos mais para agradecê-lo pelo que tem feito por mim — digo, baixo, voltando a mirá-lo.
— Como o Iudex de Fontaine, meu dever é ajudá-la como cidadã com tudo ao meu alcance — explica, encarando-me diretamente nos olhos.
Um sentimento estranho faz-se presente em meu âmago. Demoro para perceber que suas mãos ainda estão sobre a minha. E ele também.
Há algo entre nós. Pode ser pequeno e não identificável, mas definitivamente há algo entre nós.
Haverá a possibilidade de permitirmos que o que quer que seja isso cresça e torne-se identificável?
Claire. Foi como ele me chamou.
Por que alguém tão politicamente correto e educado como Neuvillette se referiria a um desconhecido como eu pelo seu primeiro nome apenas?
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Underwater
Fiksi PenggemarUma instituição de pesquisas secretas que fora destruída quando a água do mar primordial subiu deixou seus vestígios: humanoides com afinidades aquáticas que detestam humanos. Como o único protetor de Fontaine, o mais novo substituto da Arconte Hydr...