Capítulo 20

162 24 1
                                    

O mundo se tornava um lugar mais suportável e o próprio corpo um lugar mais confortável para a própria alma quando ela podia falar. E falar envolvia mais que colocar palavras no papel ou usar a voz, as mãos, o corpo... para Kara, especialmente, envolvia o seu tempo, seu espaço e os seus sentimentos.

Era o que Lena dizia ser tudo tão relativo.

Escrever uma história nunca havia sido tão fácil. Tudo estava ali dentro pedindo para ser transformado naquilo que só ela saberia escrever. Sua protagonista deixara de ser uma pessoa e passara a ser o amor em uma de suas formas mais bonitas.

E nunca havia sido tão difícil escrever uma história. Nem sempre as palavras delineavam perfeitamente os traços de Lena, ou descreveriam muito bem as mudanças do ambiente quando ela estava, muito menos conseguiam expressar o quão relativo o tempo era quando ele passava e as mãos estavam dadas ou se o que tocavam eram os lençóis bagunçados sob os corpos em sintonia carregando corações desarmonizados.

A existência de pequenos detalhes fazia existir uma grande vontade de ser quem ela era.

Se o que tocava era Queen.

Se chovia.

Se bebia café forte ou chá.

Se lia um livro sentada na cama.

Se lia um livro de frente para a janela.

Se o que vestia era um vestido longo.

Se estava sentada em frente a pessoas que queriam tanto conhecê-la.

Se estava sentada em frente ao espelho olhando para a pessoa que queria conhecer.

Se o que escrevia era prosa ou poesia.

No fim das contas, era um grande privilégio deixar-se ser quem era, amar o que amava e estar onde estava.

Era um grande privilégio saber que o mundo estava ali para ela, mas era um privilégio maior ainda saber que ela estava ali para o mundo.

- Pensar demais às vezes pode fazer mal, sabia?

A voz que soou atrás dela a fez dar um sobressalto.

- Está aqui há muito tempo? - disse ao se recuperar do susto e sorrir.

- O suficiente para quase ouvir o que passa dentro da sua cabeça.

Lena imitou sua posição. Estavam apoiadas com os antebraços em um muro um pouco afastado do jardim, em um lugar que dava uma visão panorâmica da festa de casamento. Lá embaixo as pessoas dançavam e cantavam a plenos pulmões numa madrugada estrelada. As noivas estavam em uma espécie de embriaguez dessas causadas pelo alto nível de serotonina. Seus sorrisos quase rasgavam o rosto e os olhos talvez iluminassem mais a festa do que as lâmpadas.

- Seira um grande problema se meus pensamentos fossem altos...

- E quando você escreve faz o quê? - Lena tocou o braço dela com o cotovelo num leve empurrão.

- Nem Freud explicaria, meu bem - a olhou sorrindo e viu que ela já sorria.

- Ninguém seria capaz, realmente. Eu até te decifro, mas não te explico.

- Sabe que tive essa mesma dificuldade?

Kara se aproximou o suficiente para beijar o ombro de Lena e quando seus rostos ficaram na mesma altura, viu que o cenho dela estava franzido.

- De se explicar?

- Também.

- Entramos naquele espiral em que a resposta concreta nunca chega.

Paradoxo (SuperCorp)Onde histórias criam vida. Descubra agora