Capítulo 04 - Lembranças

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- Algo mais? – Cristina rompeu o silêncio após Pane terminar sua narrativa.

- Sobre nossa questionável origem? Não, isso é tudo que sei. – Pane suspirou cansada.

- Certo. – Cristina coçava o pescoço com suas unhas um pouco compridas deixando algumas marcas vermelhas pela extensão – Então temos um problema a menos na sua lista. Não há mais nada a se questionar sobre isso.
Epanequini piscava diversas vezes como se estivesse com dificuldades de associar a frase.

- Como é? – Finalmente falou após alguns segundos – Está dizendo que isso tudo que contei é verdade?

- E por que não seria? – A atenção da mulher já estava inteiramente na jovem.

- Porque é algo impossível de se acontecer! – Pane arregalou os olhos – É mítico demais! Magos? Dragões?
Cristina e Taier trocam olhares entre si e a jovem até não conseguirem segurar o riso.

- Disse a garota que se transforma em animais. – Cristina provocou enquanto sorria.

Vendo que Epanequini franzia o cenho confusa, Taier tratou de se acalmar e pôs a falar:

- Diga-me, Pane: Você acredita em lendas?

- Onde quer me levar com isso? – O homem suspirou cansado enquanto revirava os olhos sobre o olhar ainda mais questionador da garota.

- Sim ou não?

- Bem, não.

- Por que?

- Óbvio: sabemos que não passam de história com lições para crianças, podendo ser boas ou más.

- Mesmo assim, acreditou que nos acharia um dia. – Taier já tinha seus olhos fixos no teto enquanto alisava a barba.

- Mas vocês são diferentes.

- O que nos difere? Falta de moral na história? – Riu divertido enquanto voltava sua atenção para Pane.

- Não! Bem, quero dizer... Ugh – Pane coçou a cabeça enquanto buscava pelas palavras.

- Veja bem, - Taier interrompeu o sofrimento da garota ainda com um sorriso no rosto – se há algo que posso dizer a você pela minha vasta experiência em viagens é que todas as lendas existem!

- Todas?

- Sem exceções!

- Só pode estar brincando... – sorriu torto.

- É como dizia um velho ditado: - Taier adotou uma postura mais séria encostando as costas na poltrona com os dedos entrelaçados e os olhos fechados – Onde há fumaça, há fogo!

- E por que não diz mais?

- Porque acrescentei a ele: ... mesmo que não esteja saindo da sua casa. – Taier abriu um dos olhos para ver a expressão da garota e se depara com sua face contorcida em confusão enquanto Cristina bufou uma risada ao seu lado.

- Não entendi. – Pane se manifestou.

- Olha, não é porque a fumaça não está saindo da sua casa que o fogo não exista... Argh – bufou – Não é porque lendas não existam no seu mundo que as torna inexistentes. Elas existem, mas podem ser que estejam em outro lugar.

Só se tornam lendas e contos porque foram avistadas por alguém que não compreende sua existência por não ser do mesmo mundo.

- Acho que entendi? – Pane tomba a cabeça de lado com uma sobrancelha arqueada enquanto Cristina se desdobrava em risos.

- Oh, querido! – A mulher abraçava a cabeça do esposo enquanto controlava a risada e ele exibia uma expressão carrancuda – Você é péssimo com isso! Deixe-me continuar daqui.

A mulher acaricia os cabelos do marido enquanto encara a jovem.

- No fim das contas, Pane, só mantenha a mente aberta para a possível existência de tudo que vaga em sua imaginação.

- Como o quê?

- Bom, não tem jeito melhor de explicar do que com algo concreto e, no momento, não há algo mais concreto do que meu passado. Ou como gosta de chamar, suas origens.

Os olhos da garota começaram a brilhar de entusiasmo, já que finalmente iria ouvir a verdade sobre quem eram e como chegaram a vida que levavam e como a família chegou no pensamento que tinha nos dias atuais.

- Olha, - Cristina continuou diante do olhar radiante da jovem a sua frente – eu poderia continuar a história de modo cronologicamente correto, mas não farei isso. Não se trata de uma questão dramática ou algo do tipo... – a mulher respirou fundo. Taier segurou uma das mãos da esposa e a levou para os lábios para depositar um beijo em seu dorso e começou a acariciar a mesma com o polegar – apenas não é necessário contar sobre essa parte da minha vida.

Ela sorriu fraco sobre o olhar curioso da garota.

- As únicas coisas que precisa saber sobre essa parte é que foi dolorosa; eu fui usada e vez por outra sou assombrada com vislumbres. – Continuou – Até hoje carrego cicatrizes visíveis e invisíveis comigo e um amargo que insiste em ficar.

Cristina respirou fundo.

- Então, - continuou – deixe-me avançar desse dia para um dos momentos da minha vida que mais gosto de lembrar e com detalhes. – Pane pode ver o sorriso da mulher se iluminar enquanto seus olhos vagavam para longe – Essas memórias me aquecem como nenhuma fogueira jamais fez por mim.

Taier envolveu com um dos braços a cintura da esposa enquanto se aninha ao corpo dela.

- Gosto dessa história. – Murmurou enquanto fechava os olhos âmbar e conquistava o sorriso de Cristina.

- Sou aquecida pela lembrança do afeto que recebi naquele lugar, mesmo que de um jeito diferente. Também sou aquecida fisicamente ao lembrar dos dias escaldantes atravessando dunas; noites frias em oásis e clima agradável quando encontrávamos uma floresta.

Deixe-me te apresentar a esses dias memoráveis, começando pelo dia que mudou nossas vidas.

Contos de Uma Peregrina - DesertoOnde histórias criam vida. Descubra agora