Capítulo 06 - Propriedade

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- Como são os monstros de que falaram? Quem eram eles? Por que te chamavam de Marechal? Quem é ela? Que o Major citou? E esse “sultão”? Você caça? Por que colocaram alquimistas como guerreiros?

Eu transbordava perguntas. Minha mente estava tão agitada quanto um cardume de peixes presos em uma rede fora da água.

Pude ouvir Artifae respirar profundamente desde a partida do grupo de militares e sua preparação para partir, colocando seus pertences sobre o cavalo que havia enselado.

- Da próxima vez, irei me certificar de que esteja trancada na jaula dos leões. – Disse sem expressão enquanto dava um nó na cela.

- Sabe muito bem que eu escaparia de lá como um rato! – Estufei o peito orgulhosa.

- Sei. – Cruzou os braços sobre o peito e se virou para me encarar -  E parece que saber de coisas de mais tem sido minha maldição. – Suspirou novamente.

Ao que parecia, minha expressão confusa o divertiu. Um pequeno sorriso desenhou seu rosto bronzeado enquanto afagava o topo da minha cabeça bagunçando alguns fios em silêncio.
Embora sorrisse, podia se ver a dor nele.

- Então... – rompi o silêncio capturando seu raro olhar gentil – posso ir com você?

Como se tivesse recebido uma descarga elétrica, retirou a mão da minha cabeça e sua feição se endureceu o deixando com uma carranca que beirava a irritação.

- Não! De jeito nenhum! – E assim voltou sua atenção para a garupa do cavalo.

-Ahm? Por que não?

- Porque não!

Iniciei minha sessão de incontáveis e repetidas súplicas para que meu mentor aprovasse minha partida junto à ele enquanto balançava seu braço junto com os pedidos.

Não posso esconder que me divertia ao provocar em Artifae outras expressões que não fossem sua carranca inexpressiva. Conseguia irritá-lo facilmente, mas houveram momentos em que tirei dele uma risada audível.
Eram momentos raros, mas existiram.

Estávamos uma confusão de braços pelas tentativas do meu mentor tentar me distanciar dele e me fazer ficar quieta, quando fomos interrompidos por alguém que limpou a garganta perto de nós, deixando-o tenso ao ver que era Mualim ao nosso lado.

- Parece que está pronto para partir. – Ele observava Artifae segurar minha cabeça para evitar que me aproximasse.

- Sim, partirei em breve. Deixarei uma relação das tarefas que estava executando e das que iria iniciar, para que possam dar procedência.

- Ótimo. – Mualim abaixou levemente o tronco para ficar a altura dos meus olhos – Não esqueça de passar os cuidados para ter com....

- Ela vai comigo! – Artifae interrompeu com sua voz fria e profunda enquanto puxava minha cabeça para seu tronco firme.

Esse contato fez com que meu estômago desse cambalhotas. Se já era difícil do meu mentor demonstrar o que sentia, o contato físico era algo muito mais distante do seu normal. Além disso, fez-me lembrar de algo que sentia falta, o contato de meu pai, Black. Dia após dia, mesmo com o silêncio em que convivíamos, Artifae era cauteloso e preocupado. Lembro de tê-lo pego me cobrindo nas noites frias das dunas enquanto ele se aquecia em sua pequena fornalha de ferreiro improvisada. Das cautelas de quando acordava exasperada após um pesadelo com fragmentos do meu passado. Embora sempre me divertisse com sua costumeira irritação quando chegava com algum machucado alegando que poderia ter sido muito pior.

Certa vez, estava treinando no trapézio e acabei falhando em concluir certa acrobacia, que me sentenciaria a uma queda certeira e repleta de ferimentos graves se não fosse pelos braços de Artifae que me seguraram antes de atingir meu destino. Foi naquele evento que pude notar que ele sempre esteve velando por mim, distante e silencioso.
Segurei sua camisa com força escondendo meu rosto em seu tronco, fazendo com que ele intensificasse seu contato.

- Não pode levá-la. – a raiva começava a se fazer presente na voz de Mualim – Ela faz parte do espetáculo e é propriedade da minha esposa.

- Propriedade? – Artifae manteve sua voz enquanto seu corpo expressava o contrário. Eu pude o sentir tremer, tão minimamente que me fez questionar se ele sempre teve aquele comportamento – Sua esposa apenas aparece para vê-la quando os ensaios estão acontecendo ou quando quer se gabar de sua generosidade. Além disso, costumo levar comigo tudo que está sobre minha responsabilidade, é minha política pessoal.

Levantei um pouco o rosto deixando um olho à mostra que me permitisse ver o riso presunçoso que se formou no rosto do ferreiro.

- Isso incluiria levar os animais, - continuou – mas seriam incômodos para a caçada, por isso levarei apenas Smarágdi conosco.

- Está maluco? – Mualin retrucou entre dentes.

- Estou mais são do que nunca, Mualim. Nosso trato se desfez e seguirei meu caminho.

- O trato não dizia que poderia levar o que é meu.

- O trato nunca disse nada sobre pertences, na verdade. Eu protegi o circo e você me escondeu. Como me acharam, não há mais necessidade desse trato existir, no entanto, Cristina nunca foi de propriedade de ninguém, por isso, irá comigo para que possa continuar seu aprendizado. Certo?

Artifae abaixou a cabeça para me encarar enquanto eu acenava freneticamente. Se eu pudesse me ver naquele momento, diria que eu estava cintilando.

- Ah, Artifae... – foi a vez de Mualim mostrar os dentes enquanto falava – se você não fosse quem é ...

O ferreiro soltou um breve suspiro.

- Exato, mas sou! Embora as cicatrizes do passado possam abrir ao reafirmar isso, sou Artifae, o Marechal da Corte Direta do Sultão e estou partindo para caçar.

Enquanto pronunciava seu cargo, pude ver seu peito inflar minimamente, até voltar o olhar para mim novamente.

- Vá arrumar suas coisas, Cristina, estamos de partida.

Acenei brevemente com a cabeça e corri para minha tenda deixando os dois para trás. Não demorou muito para que arrumasse minha sacola de viagem, já que não tinha muitos pertences naquela época, munida apenas de algumas roupas simples que usava na lida enquanto as mais glamorosas ficavam em posse da esposa de Mualim para os espetáculos. Assim, restaram-me, ainda, os antigos pertences de meus pais: seus diários e suas espadas.

As espadas estavam com Artifae que estava forjando uma espada para mim com as dele, pois, segundo ele, dava azar carregar armas que não escolheram quem as empunhava. Mesmo não sabendo se os reencontraria ou não, permiti que meu mentor utilizasse de seus conhecimentos e crenças para o futuro.

- Artifae! – Chamei-o com a cabeça para fora da tenda – As espadas?

- Já estão comigo. – Fitou-me sobre o ombro.

Voltei para a tenda e recolhi o restante que me pertencia.

Assim que saí da tenda, vi Mualim bufando como uma locomotiva enquanto se afastava e Artifae sorria presunçosamente enquanto selava o segundo cavalo. A carranca costumeira havia se ausentado, até me passava a imagem de uma simpática raposa da neve que encontrei uma vez.

Meu mentor terminou os últimos preparativos e partimos montados nos cavalos. Enquanto passávamos pelas entradas das tendas dos integrantes do circo, pude ver pelos cantos dos olhos as pessoas saírem para nos ver partir. Não virei o rosto para nenhuma delas. Por mais que tivessem me encontrado enquanto eu passava fome nas ruas e sofria com o clima desconhecido dos desertos, não os olhei na partida. Acredite em mim, existem lugares que você não quer deixar na memória nem a imagem do mesmo diminuindo enquanto parte para longe dele.

Contos de Uma Peregrina - DesertoOnde histórias criam vida. Descubra agora