1. Serena

1.1K 52 15
                                    

— Respira, Serena — A voz de Kátia sai picotada por conta da conexão ruim do wi-fi no estacionamento do shopping, o que devo lembrar: Foi uma péssima ideia, e que não me ajuda em nada a respirar conforme eu aparentemente preciso. Só faz meu coração acelerar ainda mais e a sensação de formigamento no meu estômago subir pra garganta, quase me fazendo vomitar no celular apoiado no porta copos ao lado do volante, a menos de trinta centímetros de mim.

Merda. Penso. Antes nele do que na cara da minha terapeuta.
Como exatamente as pessoas faziam isso antes de existir a terapia on-line? Eu odiaria vomitar na cara de alguém presencialmente.

— Eu preciso que você preste atenção em mim agora, Serena.

Eu odeio como ela repete meu nome no final de cada frase como se quisesse causar um impacto ou debochar do fato do significado do meu nome ser o completo oposto do que eu realmente sou: Um poço de ansiedade. Nada Serena.

Uma verdadeira fraude.

Estico meu corpo no banco, saindo da posição fetal em que estava congelada tentando regular meus batimentos cardíacos de alguma forma milagrosa e sem nenhum respaldo científico.

— Serena — Ela repete, aguardando meu contato visual forçado.

Parece que é necessário mover mil músculos pra que minha íris se desloque finalmente na direção do celular, encontrando os olhos do outro lado da tela. É um esforço quase sobrenatural, mas que de alguma forma me distrai dos meus batimentos cardíacos literalmente audíveis no silêncio do isolamento acústico do carro fechado.

— Eu sei que você tem uma certa resistência a isso — Ela começa, e eu já sei exatamente o que ela vai dizer.

Bom, pelo menos a primeira parte. A segunda, eu jamais imaginaria.

— Devido ao seu quadro de ansiedade estar se agravando nos últimos tempos, e você não estar mais conseguindo lidar com isso somente com a terapia, eu vou precisar te encaminhar para um psiquiatra. Tenho boas indicações.

— Mas eu não... — Me apresso em dizer o que já estava ensaiando na minha cabeça desde o primeiro "Respira, Serena" de hoje. Porque minha mente ansiosa já previa o que viria pela frente. Ela é muito boa nisso. O problema é que nem sempre acerta.

— Eu sei que não é o que você quer. Mas quero que você saiba que não é um problema recorrer a esse tipo de ajuda. Muito pelo contrário, muitas vezes é realmente necessário. Mas eu entendo a sua resistência, já que conheço bem a sua história...Então, eu tenho uma proposta pra você, que podemos tentar como uma última alternativa antes de eu enviar o encaminhamento do psiquiatra pro seu e-mail.

Franzo a testa e pisco duas vezes enquanto tombo a cabeça pro lado direito. O que no nosso dialeto particular ela já sabe que significa: Ok, pode continuar, manda bala.

— Academia — Kátia lança na minha cara como se fosse uma caixa de um ansiolítico pesado — Eu quero que você se matricule numa academia. E você tem dois meses pra sentir se um exercício físico regular vai fazer alguma diferença na sua saúde mental ou não. Caso não, aí partimos pro plano B. Ou P. No caso. De Psiquiatra.

Ela dá uma risadinha desnecessária no final de tudo, como se tivesse se achado genial pelo lance do Plano P. Não acho que brincar com coisa séria seja muito profissional. Mas eu e Kátia já temos esse tipo de intimidade. O que talvez não seja muito certo, também. Mas vamos lá, Serena: Você tá divagando de novo. Foco no que realmente importa aqui: Evitar o Plano P.

Não que eu tenha algo contra psiquiatras. Eu só não gostaria de precisar de um. Não depois de ter convivido tão de perto no último ano com alguém que teve uma experiência complicada com medicações controladas. Então se eu puder esgotar as possibilidades antes disso, estou disposta. Mesmo que não faça nenhum sentido, como o literalmente Plano A em questão. Não me parece claro como uma academia poderia alterar a química do meu cérebro da forma que eu preciso no momento.

— Eu não sei... — Estou pronta pra despejar todo o meu preconceito contra academias e pessoas que as frequentam em cima do pedaço frio de metal no porta copos, mas Kátia olha pro relógio de pulso, tomba a cabeça pro lado e fecha os olhos num sorriso forçado, o que no nosso dialeto sei bem que significa: fim da linha.

— Nos vemos na semana que vem, então? — Ela junta as palmas das mãos na frente do corpo como se fosse rezar por mim - o que seria ótimo porque estou mesmo precisando - mas sei bem o que significa: Vou desligar nos próximos 3 segundos. Você estando pronta, ou não.

— Até lá — Luto pra engolir as palavras prestes a serem despejadas de volta pra dentro e uso toda a minha energia pra transformar o desconforto em um sorriso forçado.

E em uma fração de segundo estou encarando a tela de fundo do meu celular. Os aplicativos piscando e acumulando números perturbadores de notificações que já me causam taquicardia antes mesmo que eu me permita clicar em seus balõezinhos piscantes e urgentes.

Seja lá o que de tão importante assim o mundo tenha pra tratar comigo, vai ter que esperar. Porque eu tenho uma missão urgente pra tratar com o mundo.

"Academia", digito no Google e espero a internet ruim carregar as opções mais próximas de mim.

"Você chegou ao seu destino", diz a voz robótica do GPS quando clico na Fit Club, que me custa alguns segundos pra entender, fica no shopping acima de mim nesse exato momento.

Ótimo. Vamos fazer isso como arrancar um curativo velho já praticamente enraizado de tão grudado na pele: De uma vez. Rápido e com um puxão certeiro pra não prolongar a dor mais do que o necessário.

Desço do carro, tranco, vou em direção às escadas rolantes e seguindo as instruções do site, viro à esquerda.

Fit Club, diz a placa em rosa neon e numa fonte familiar que não poderia ser mais óbvia, o que combina muito com aquele lugar.

— Dois meses — Digo baixinho, enquanto as portas automáticas se abrem e a recepcionista simpática atrás do balcão abre um sorriso maior do que o leque de possibilidades imaginário e misterioso que eu acabo de desbloquear na minha vida.

— Quebrar a Matrix — Digo, quando a moça sorridente me pergunta no que pode me ajudar.

Flex Mix? — Ela pergunta forçando os olhos na minha direção, como se tentasse ler meus lábios pra entender o que eu disse desafiando a música alta e o barulho irritante de pesos caindo no chão e aparelhos rangendo. — Temos sim, são aulas coletivas ótimas de alongamento que acontecem todos os dias. E está inclusa em todos os planos, assim como a musculação, avaliações físicas periódicas e acompanhamento com personal. Vamos fazer sua matrícula?

Olho ao redor e penso em dar meia volta e sair correndo pro carro, ou dizer que esqueci minha carteira e nunca mais voltar. Mas penso em Kátia, em todos os malditos cientistas que se dedicaram a comprovar cientificamente a importância da atividade física pra saúde mental, mesmo que eu não acredite neles. Olho na minha direção no espelho atrás da moça sorridente e vejo minha cara de acabada ao lado de um banner que diz: "Primeiro mês grátis para experimentar".

Legal. Se meu plano era ficar por dois meses, e eu tenho a possibilidade de ganhar um totalmente grátis, me parece um sinal gritante do destino do qual não tenho como fugir. Estou diante de uma situação clássica da matemática de garotas: Se você encontra uma oportunidade realmente boa para algo com o que você já planejava gastar, você não perde. Você a agarra com todas as forças porque se não, futuramente, quando você decidir comprar aquilo que deixou de aproveitar com um bom desconto, vai ter literalmente perdido dinheiro.

Desnecessariamente.

Não estou podendo me dar esse luxo.

PROJETO VERÃO (degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora