Bato a porta e jogo o molho de chaves de qualquer jeito no buffet que fica bem na entrada de casa, e preciso de poucos segundos até perceber que ao contrário do que aconteceria na semana passada, hoje ninguém vai reclamar sobre isso e me fazer pendurar as chaves no porta-chaves magnético da parede.
Não é algo que me deixa feliz, como deveria. Ter a liberdade de poder jogar as chaves onde eu bem entendesse sem precisar pensar muito sobre isso era algo que eu imaginava que gostaria.
Bem...Não gosto.
Não é como imaginei. Não me serve de nada poder ter a liberdade de fazer o que eu quiser se eu não vou mais poder contar pra ela.
Fico paralisada por um bom tempo na porta depois de tirar meus tênis e perceber que em breve terei que encarar a parte mais difícil de todas: Apagar a existência dela nessa casa.
Olho pro par de sapatos cuidadosamente posicionados ao lado da porta, alinhados com meus tênis, e dói pensar que eles estão exatamente no mesmo lugar que ela os deixou, de onde seus pés saíram pela última vez. Eu não o movi um único centímetro. Pensar em tirá-los dali parece como profanar o túmulo de alguém. Como mexer em algo que não me pertence. Não parece certo.
E decido que tudo bem. Não precisa ser hoje, ainda.
Eu tenho tempo. Dizem que o tempo faz tudo ficar melhor, não é mesmo? Estou contando com isso com todas as minhas forças.
Meus olhos passeiam pela sala iluminada apenas por um abajur que faz uma semana que eu não desligo, o que a deixaria louca, com certeza. Quase posso ouvi-la resmungando: "Você acha que eu sou sócia da companhia elétrica?" seguida pela sensação da lâmpada sendo apagada e meus olhos precisando se acostumar com o novo nível de iluminação proveniente apenas da TV ligada na novela das nove.
Meu lado racional sabe que não faz sentido manter o abajur aceso, e inclusive me envia um alerta de que isso não vai ser nada bom pro meu bolso no final do mês. Mas um pedaço de mim provavelmente acha que se ficar ligado por tempo o suficiente, ela daria um jeito de se materializar aqui novamente só pra desligá-lo e me dar uma boa bronca.
Eu não acharia ruim.
O toque do meu celular soa abafado de dentro da bolsa da academia, ainda pendurada no meu ombro direito. Me jogo no sofá e reviro as roupas e a toalha molhada até encontrá-lo e conseguir atender.
— Oi, Serena — A voz do Dr. Carlos surge do outro lado da linha, e pelo seu tom eu já sei bem o que vai dizer, e, droga. Eu realmente achei que tivesse mais tempo.
— Boa noite, Dr. Carlos — Respondo. As mãos na cabeça e os cotovelos apoiados nas minhas pernas pra tentar segurar o tranco que sei que vem pela frente.
— Eu sinto muito pela sua perda, Serena — Sua voz é sincera, não que isso me sirva de alguma coisa. Mas é melhor que nada, com certeza. — Como você está?
— Ah, você sabe — Forço um tom casual, como se estivesse prestes a falar do clima ou da desvalorização do dólar nos últimos dias — Tentando me acostumar ainda, mas, bem, dentro do possível.
— Sua mãe era uma boa pessoa, Serena — Ele respira fundo antes de dizer — E eu sinto muito por tudo que você passou com ela nos últimos tempos. Perdi minha esposa pra mesma doença há alguns anos, e sei como todo o processo até chegar aí, onde você está agora, é extremamente doloroso. E eu queria poder te dizer que o tempo cura, mas, bom...Ele ameniza um pouco. Mas tem coisas que a gente nunca esquece.
Droga. Dr. Carlos acaba de aniquilar com uma dúzia de palavras toda a esperança que eu tinha depositado no milagroso poder curador do tempo.
— Obrigada — Digo, meio confusa se era algo pelo qual eu deveria mesmo agradecer ou reclamar — Eu acho.
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PROJETO VERÃO (degustação)
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