One And Only

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Livorno, Itália 2022

     Eu gostaria de falar que os cristãos evangélicos são bem malucos, não são? Eles juram que existem pactos em coisas nada ver. Se há pactos? Há. Nunca vou dizer que não há. Mas os pactos não são exatamente o que se pensa, não é? Afinal, pra que vamos fazer pacto pra ter uma alma que vai vir para nosso lar de qualquer forma? Não, não queremos a alma. Ela já é nossa. Seríamos burros de fazer pacto pra ter uma alma que é nossa. Uma pessoa que está disposta a um pacto é porque sabe e tem a consciência de que vai ao meu lar. Ela não quer nem tentar ir para a casa lá de cima. Ela apenas quer fazer um trato de ganho e benefícios. Alguns irmãos meus gostam de escravos. Então, eles fazem um pacto de escravidão. Apenas isso. Não é nada tão como eles falam. Eles fazem ser exagerado e bobo, mas é simples e tranquilo. Ainda mais como eles falam sobre como tem o demônio em qualquer lugar. Se você usar uma blusa com uma estampa, é porque você tá dando a alma para o demônio. E nos filmes, um enquadramento, é o pacto com o demônio. Eles acham mesmo que vamos pedir para um cineasta que faz um trato de fama e fortuna para apenas fazer um enquadramento demoníaco. O que seria um enquadramento demoníaco? Eles falam que qualquer um porque não querem que os fiéis da igreja vejam televisão porque a televisão mostra o que eles querem ocultar. Mas, vendo que era lucrativo, eles começaram a ter os próprios programas na tv, permitindo aos fiéis assistirem somente a aquilo que eles fazem. 

    Acho que o dia que mais ri foi quando um pastor que dizia e gritava que iria para o céu, mas, na verdade, iria vir pra cá porque, infelizmente, o Pai manda essas corjas pra cá, já que nem ele quer... Aquela criatura disse que o símbolo de uma gota era um pacto conosco e se usasse algo com uma gota estaria entregando a alma para nós. Porque a gota representa a gota do sangue de Cristo que caiu da lança demoníaca. Seria mais fácil dizer que a gota leva para o céu por ser símbolo do sacrifício, mas já que trás pra nós, nós pegamos, né? Quanta bobagem! Mas vou terminar esse fio dizendo que grande parte dos símbolos que eles dizem ser demoníacos não são nossos, são símbolos da fé humana em outras coisas e religiões que não são o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Como o Pai quer que se cultue apenas ele, quando o homem saiu e começou a crer em outras coisas, o Pai fez a proibição. A pena para a não obediência seria a morte, assassinato puro. Nós não ligamos para a cultuação, como se pinta por aí. Quem exige a cultuação é ele. Ele quer a cultuação dele e do homem, mas nos usa, por sermos rebeldes, como chamariz, pra ameaçar a criação considerada rebelde. É bem parecido como pais humanos usam da rebeldia inaceitável de alguém de fora para ameaçar os filhos a fazer o que eles querem. Não faça, senão vai se tornar igual a aquele ali. Como se aquele ali fosse um monstro. Nós somos os monstros. Mas quem mata pela imposição não somos nós. E são os representantes do Pai na Terra que usa de gotas, fios, riscos bobos pra falar coisas contra nós. Logo nós que não fazemos nada. Na verdade, não estamos nem aí. No final, a boca miúda nunca vai te contar, mas o Pai não aceita nem dez por cento em seu lar. Nem mesmo aqueles que gritam vão pra lá. Eles vão pra minha casa pra gente brincar.
    Estou andando por Livorno, pensando como os evangélicos são diferentes dos católicos, mesmo sendo todos seguidores do Pai. A Itália é o considerado lugar do Pai, não Jerusalém, como gostam de dizer. Gosto dessa cidade. Me lembra aos tempos antigos que não voltam mais. Os humanos costumam dizer que é uma cidade da época do Renascimento. Época boa! Pinturas e pintores safados. Da Vinci e seu namorado bem jovem, assim como sempre aconteceu e acontecerá quando você é um velho culto. Velhos cultos gostam de rapazinhos. Olha o Leandro Carecal. Nem mesmo a igreja poderia proibir que os pintores de suas capelas fossem apaixonados por homens. Michelangelo era tão discretos cheio de rancor. Queria dar uns socos no Da Vinci, já que o viadão foi até acusado de sodomia por sair transando com prostitutos numa suruba francesa. Ah, a França! Mas enfim... Penso que Mimi estava rancoroso também porque achava que um idoso não poderia namorar um novinho. Michelangelo podia ficar com novinhos, Da Vinci não. Dava uns beijos no intervalo das pinturas da Capela Cistina. Nada como um bom sexo após pra curar a dor nas costas de carregar a maior pintura de capelas já existentes. O homem era tão romântico que fez sonetos românticos para o amado que ele fazia amor após pintar Deus. Discreto como ninguém, recuperava as forças de um dia trabalhoso dando muito para seu namorado novinho e depois escrevia declarações de amor. Um romântico! Ele só socava o rosto de homens que mereciam. Os que ele amava, eram sonetos e muito amorzinho numa cama quentinha.
    Nada como andar por Livorno e olhar o renascimento por aqui e ali. Cidade linda! Perfeita! O Mar lindo por ali. Você caminha e se sente em um mundo paralelo. Gosto de lugares assim. A calmaria da Toscana. Livorno foi construída porque o porto de Pisa estava meio ruim das pernas. Então, construiu-se Livorno para ter o novo porto. Uma nova cidade com um porto novinho. Uma cidade toda fortificada na renascença italiana. E assim nasceu o novo ponto de navegação da Itália. Você não quer saber, mas vou contar. Quando a cidade começou a fazer comércio e saiu de ser apenas uma cidade fortificada, judeus, espanhóis muçulmanos, gregos, ingleses católicos e muitos exilados fizeram daqui seu lar. Mas a coisa ficou boa mesmo no fim de mil e quinhentos, quando surgiram as leis que deram a liberdade de culto e de religiosidade, além de uma política sobre os criminosos, menos quando o caso fosse homicídio e falsificações. Era um lugar que aceitava os expulsos de outros lugares por questões de raça, etnia, religiosas e políticas. Isso elevou a cultura da cidade. Diz-se que Livorno não tem apenas uma história, mas a história de todos os povos viventes nela.
    Eu gosto de fazer a rota do vinho, mas não vou ficar falando muito mais sobre a cidade, senão vão dizer que eu estou aqui apenas fazendo propaganda de uma cidade da Itália. Mas saiba que quando se visita Livorno, você também pode ir para Pisa, Florença ou até a ilha de Elba ou a ilha de Gorgona. É uma região linda cheia de cultura. É tanta história nesse lugar que a costa toda é chamada de Costa Etrusca porque os etruscos passaram por ela e deixaram vestígios.
Eu caminho pela costa e penso no pobre Amedeo Modigliani... Você deve se perguntar quem cargas d'água é esse homem? Bom, é assim... Foi um pintor. Quando se fala de Itália... Pintura tem que ser dita, né? E ele foi um bom pintor nascido aqui. Ele é famoso, mesmo que você não conheça. Ele tinha uma técnica própria que criou a escola Macchioli. Ele era um boêmio afeminado, mesmo sendo hétero. Pra não falar que só falo de pintor gay. Mas falando de um afeminado... E era um bebum. Quando decidiu partir de Paris para a Florença, disse... Vou beber a minha morte. E morreu não muito tempo depois de meningite aos trinta e cinco anos. Teve muitas mulheres. A que estava com ele em sua morte ficou grávida e se suicidou assim que soube de sua morte. Mas ele gostava muito de pintar mulheres nuas. Como um bom safado faz. Mas pintou outras coisas, pra não chamarem ele de apenas um tarado. Só que não adiantou, ele causou um escândalo quando pintou mais quadros de mulheres nuas mais reclinadas, sabe?
Gosto muito de passear pela orla do mar e sentir o vento tocando meus cabelos. Hoje, estou como uma mulher negra de lábios carnudos, sorriso bonito, olhos marcantes. Acho as mulheres negras muito bonitas. Meus cabelos estão soltos, crespos e bonitos. Uma mulher próximo do que seria uma Viola Davis. Não quis ser uma mulher jovem. Quis ser uma mulher que está viajando para passear e ver o lugar. Apenas um passeio aqui na terra dos humanos. Vejo o Scoglio Della Regina. É uma pequena ilha que foi pedida pela rainha da Etrúria Maria Luísa di Borbone. Ela mandou criar canais que levariam água ali e formariam uma bacia. Você anda pela ponte e chega até lá no meio. Tem estátuas, locais pra ir e passear. Mas não quero ir até lá. Quero andar pela orla.
    É bom estar aqui. O ar, o cheiro. A calmaria. Eu posso andar por aqui e ser apenas uma mulher em sua viagem. Ver o mar super azul e limpo. Caminhar e ter a liberdade de caminhar pelo mundo. Um mundo que não deveria ser apenas no homem. O Pai deveria ter dado a todos nós. Um exílio não é o mesmo que a liberdade. O homem não sabe o que possui. E destrói. Mas o Pai é misericordioso, finge que não vê. Mas nós fomos embora e não fomos ouvidos. Ele nos manda esses homens porque ele fala que somos nós os responsáveis pela destruição humana, não ele. Deus está sempre certo. É um pai abusivo. Você não pode contestar. Você tem que dizer, sim Senhor. O homem, não. É falso que ele explicou o homem do paraíso e deu a punição. O paraíso é aqui. E o homem destrói, mas não há punição. A falsa punição é mandar o homem para o nosso lar. Somos tão ruins que recebemos o homem que nós mesmos contestamos. Quem é que aceita mais o homem? O pai que deixa destruir? O pai que expulsa quando não faz exatamente tudo o que ele quer? Ou nós que abrimos as portas do nosso lar, assim como Livorno abriu para os não aceitos?
    - A senhora está aqui sentada há tanto tempo. - Olho para o lado e vejo uma jovem freira. Percebo que fez os votos recentemente e está para ir para o convento que vai ficar.
    - Sim, esse lugar é um lugar de paz. - Sorrio porque é sempre engraçado quando vejo alguém fiel ao Pai vindo até mim.
    - As criações do Senhor são uma benção. - Ela fala com sua voz suave e tranquila.
    - Sim. - Concordei para não contestar. Afinal, não é uma mentira. É uma benção, sim. - Você é muito jovem para ser freira.
    - Eu sinto que sempre fui. - Ela sorri com um sorriso feliz que me causa aversão.
    - Imagino... - Falo e olho com atenção para ela. 

    Kornkamon é seu nome, mas era chamada de Mon. Ela foi criada no Vaticano. Pelo que vejo, veio aqui ver uma última vez seu lugar favorito antes de partir para o convento. Ela gosta do mar daqui e me viu sentada olhando. Quis uma companhia. Ela parece ser uma pessoa pura. Acredita mesmo na bondade do Pai. Rezou a vida toda por um mundo melhor. Chorou em catástrofes. Implorou ao Pai para ele salvar vidas. Rezou w perdoou por aqueles que a fizeram sofrer. Acredita que pode ajudar almas a subirem aos céus. E ela sente o mesmo que eu quando vê esse lugar. Não é tão diferente de mim. Foi isso o que a fez vir aqui. Ela viu e sentiu que eu sentia também. Uma ligação. Uma ligação... Mas que bobagem! Onde que uma mulher dessas vai ter uma ligação comigo? Eu nunca tive uma ligação em minha existência. Essa coisa de ligação é uma invenção dos homens que precisam se conectar com alguém. Que conexão poderia haver entre uma freira fiel ao Pai e uma demônia?

Convento, Itália 2023

      Naquele dia, nós conversamos naquela orla, olhando o mar. Não foi uma conversa longa. Longe disso. Ela só precisava se despedir e vir para cá. Mas ela é uma mulher que mexeu comigo. Eu tentei continuar minha existência fazendo o que eu sempre fiz, mas não conseguia mais pensar em outra coisa que não fosse ela. As mulheres humanas do mundo mundano, como dizem os homens evangélicos... Aquelas não me satisfaziam mais. A verdade é que elas pegavam levemente minha calcinha, puxavam e me deixavam apenas de sutiã e calcinha.
Eu olho para Mon ali pegando conchas e sorrindo. Ela ama o mar. Sei que sente falta daquele mar que vimos juntas. Ela nem sabe que fui eu que estava lá. Ela não pode nem imaginar que fui eu que olhei para ela olhando com tantos sentimentos para aquele lugar. A conexão... Nós temos um lugar nosso, afinal. Meu e dela. Perdi a conta de quantas vezes fui naquele lugar até vir pra cá. E eu sabia que os homens pensam que possuem um pacto com Deus no momento que nascem. O batismo é esse pacto. É um pacto sem escolha. Os outros escolhem por você. Você é apenas um bebê. Ela não sabe que não precisa manter um pacto que ela não escolheu. Os pactos que nós, demônios, fazemos são de escolhas adultas, maduras. Como um bebê poderia saber o que quer para a própria vida? Ela não precisa ficar aqui. Ela pode escolher ficar comigo naquele lugar nosso.

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