Capítulo Piloto.

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Durante a madrugada, um silêncio profundo envolvia o cômodo luxuoso, acompanhado da luz pálida que penetrava pelas enormes cortinas entreabertas. A única presença notável no ambiente era a cama branca, vasta como um oceano vestido em tecidos de alta qualidade, onde Kelvin Santana dormia, em um repouso tranquilo, encasulado em grandes edredons.

Inesperadamente, um ruído estridente cortou o ar como um grito surdo, rebatendo nas paredes suntuosas. O telefone cinza vibrava na pequena mesa de cabeceira, seu som metálico infernal despertando abruptamente o ruivo; com o coração batendo descompassado no peito, enquanto seus olhos se ajustavam à escuridão.

As mãos trêmulas recolheram a gola do pijama conjunto de seda e ergueu-se, estendendo o braço para ligar o abajur-coluna ao lado, o clarão suave e alaranjado revelando os contornos do ambiente.

Ao atender, o eco da voz do outro lado da linha parecia distante, mais distante do que nunca. As palavras carregadas de seriedade lutavam no ar e tonteavam sua mente. Seu esposo, Frank Santana — proeminente empresário e político de Nova Primavera —, acabara de falecer. 

A luz do abajur fraquejou, lançando sombras agitadas e sinistras.

Levantou-se do leito com uma calma aparente, como se toda aquela tragédia ainda não tivesse vindo à tona e se instalado em seu ser. A valer, sentia-se assistindo a tudo de fora do seu próprio corpo, como quando cobriu-se com um sobretudo bege, de pele legítima, e o toque suave contrastava com a aspereza do ar. Cruzou o dormitório, os passos soando ocos no chão de madeira.

O espelho no caminho refletiu o rosto belo e afilado, marcado por uma expressão quase impassível, como se pertencesse a outra pessoa. Quietamente, atravessou os corredores e adentrou o pequeno quarto da filha, Giulia, cujas paredes eram adornadas com tons suaves de rosa e repletas de bichos de pelúcia.

A menina dormia serenamente, e o olhar pairou sobre ela por um momento. Sentiu um gosto de desespero em seus lábios, curvados em uma expressão de quem beirava o choro. E, de fato, quase permitiu-se chorar, enquanto cobria suavemente a pequena com um cobertor, como se buscasse assegurar que o mundo lá fora não a perturbaria.

Saiu. Alcançou a porta de entrada e, ao abri-la, foi recebido por um vento gélido. A rua estava escura e muda, a luz fraca dos postes mal iluminava a calçada.

Rodrigo — seu amigo de longa data e advogado —, aguardava ao lado de um sedã escuro, com olhos carregados de pesar. Ele avançou e cumprimentou Kelvin com um aperto de mão firme, nenhuma palavra de consolo trocada, porque seriam inadequadas para alguém que detestava demonstrações de pena.

Com certeza, o ruivo odiava. No seu íntimo, ele nutria essa aversão às expressões emocionais. E a dificuldade em lidar com sentimentos, ao longo do tempo, tinha se aliado à convivência em um meio onde as fachadas de controle e compostura eram a moeda corrente. Pois era fato que, em sua esfera social, entre políticos e pessoas intragavelmente ricas, aquela aparência de impenetrabilidade era uma necessidade imperativa.

À medida que se aproximavam do local do acidente, placas de sinalização faziam os olhos castanhos claros arderem e uma linha de policiais militares mantinha uma barreira entre os carros que tentavam passar e a cena do desastre. O caminho da grande avenida estava interrompido por um caminhão tombado, obstruindo um dos lados da via.

Ao avistar os destroços retorcidos do SUV — cujo marido talvez valorizasse mais do que a própria vida —, um nó apertou sua garganta. O veículo estava irreconhecível, uma massa de metal retorcido e vidros estilhaçados. Sentiu-se obrigado a fechar os olhos por um momento ao imaginar o estado em que o corpo foi recolhido, uma tentativa inútil de conter a visão turva e a náusea.

A Rifa | AU! KELMIROOnde histórias criam vida. Descubra agora