"A vida começa do outro lado do desespero."
(Jean-Paul Sartre.)
| ⊱ 01 ⊰ |
— Ou seja, Giulia e eu.
As íris pareciam fuzilar as paredes do consultório de advocacia, como se as tábuas de madeira polida escondessem alguma culpa sobre a dívida que o marido, agora falecido, deixara de presente. Ao mesmo tempo, o ruivo fingia não perceber o amigo evitando seu campo de visão.
— Exatamente. — Rodrigo fez movimentos de alinhar o terno cinza e a gravata vermelha listrada, como se fossem tiques nervosos.
— Quanto? — buscou uma Chanel de mão, preta.
Uma tensão sutil pairava no ambiente enquanto revirava a bolsa e exibia uma expressão quase rude. "Quase", porque era ofuscada pelos traços refinados que carregavam uma elegância natural. Ele era assim: pouco expressivo, de presença imponente — que contrastava com sua estatura — e, certamente, dono de uma beleza inigualável.
— Bem, o número exato ainda não é conhecido. Digamos que esteja na casa de centenas de milhões. — coçou o queixo para, em seguida, passar as mãos pelos cabelos baixos e crespos. — Algumas centenas...
O viúvo olhou o amigo finalmente, nos olhos. Puxou um cigarro que o outro, agilmente, acendeu com o auxílio de um isqueiro que reluzia, prateado. Soltou a primeira nuvem de fumaça em uma lufada.
— Mas o seguro pode pagar?
— Não, Frank cometeu uma violação de trânsito, e, acredite em mim, é um milagre a família do caminhoneiro não querer processá-lo.
— Ok, mas, pelo menos, o seguro de vida dele?
— Cancelei a pedido dele há uns seis meses. — Kelvin o fitou, prestes a esganá-lo. — Eu sei. Foi uma tolice. Eu tentei dissuadi-lo.
Rodrigo tamborilou os dedos na mesa, repuxando os lábios, como quem aceita a derrota.
— Mas ele disse que precisava do dinheiro.
— Vou apenas vender a nossa casa de praia. — afirmou, simplista.
— Me desculpe se eu estiver sendo muito insistente com isso tudo, mas você deve saber que as coisas chegaram ao fundo. Ao fim, à falência.
O moreno rodeou a pequena poltrona e escorou-se parcialmente na parede, levando uma das mãos ao queixo, em uma pose muito semelhante à réplica em miniatura da escultura de Rodin que descansava em uma das estantes.
— A casa está hipotecada e você não pode vendê-la, já que não é completamente sua.
— Vou vender meu carro, meu iate...
Sentia o sangue fervendo, não em raiva, em desespero. A angústia era tanta que precisou levantar-se pela primeira vez desde que tinha chegado ao escritório e sentado por ali, deixando as cinzas do cigarro caírem no carpete.
— Não acho que será suficiente, Kelvin...
— Então o que diabos você quer que eu faça? — o fio de voz saiu quase aterrorizado.
— Sei que você não pode vender a casa que mora, mas, todo o resto... Terá que vender.
[ ... ]
— Você não está com fome, senhor?
Quase meio-dia. A senhora, com os cabelos presos em diversos grampos e vestindo um conjunto com saia de lã clara, perguntou, enquanto retirava o prato de cristal ainda reluzente, evidenciando que nenhum alimento havia sido servido. O ruivo juntou as sobrancelhas como se ela houvesse lhe entregado um grande quebra-cabeça, que se moldava aos poucos em uma imagem perturbadora, ao fazer aquele questionamento.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Rifa | AU! KELMIRO
FanfictionKelvin Santana, ao perder o marido, descobre todos os podres do antigo parceiro, incluindo a enorme quantidade de dívidas que ele deixou. Desamparado no mundo, com uma filha pequena para cuidar e muitas contas para pagar, se vê obrigado a tomar a de...