Capítulo 8 - A preservação do Self

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A identificação de armadilhas, arapucase iscas envenenadasA mulher brabaSegundo o Oxford English Dictionary, a palavra feral, em inglês, deriva dolatim fer... que significa "animal selvagem". No emprego mais comum da palavra, umanimal "brabo" é aquele que um dia foi selvagem, foi depois domesticado e voltou aoestado natural ou indomado.A mulher braba é aquela que um dia viveu num estado psíquico natural — ouseja, em perfeito estado mental selvagem — e que depois se tornou cativa de algumareviravolta dos acontecimentos, passando, assim, a ser excessivamente domesticada eamortecida nos seus instintos próprios. Quando essa mulher tem a oportunidade devoltar à sua natureza selvagem original, quase sempre ela é vítima de todos os tiposde armadilhas e venenos. Como seus ciclos e seus sistemas de proteção forammanipulados, ela corre riscos naquele que costumava ser seu estado selvagemnatural. Já não mais alerta e desconfiada, ela se torna presa fácil.Existe um padrão específico para a perda dos instintos. É essencial queestudemos esse modelo, que na realidade o decoremos, para que possamos protegeros tesouros das nossas naturezas básicas bem como os das nossas filhas. Nos bosquespsíquicos, há muitas armadilhas enferrujadas que ficam escondidas por baixo dasfolhas verdes do chão da floresta. Em termos psicológicos, o mesmo vale para omundo objetivo. Existem vários chamarizes aos quais somos suscetíveis:relacionamentos, pessoas e empreitadas tentadoras. Dentro da isca sedutora há,porém, algo afiado, algo que acabará com nosso espírito no momento em que dermosa primeira mordida.As mulheres brabas de todas as idades, e especialmente as jovens, têm umaenorme vontade de compensar períodos de fome e de isolamento. Elas se arriscamquando fazem esforços excessivos e irracionais para se aproximar de pessoas eobjetivos que não são benéficos, concretos ou duradouros. Não importa onde ou emque época elas vivam, há sempre arapucas à sua espera. Há sempre vidas menorespara onde as mulheres se vêem forçadas ou atraídas.Se você alguma vez foi capturada, se você alguma vez sofreu de hambre delalma, uma fome da alma, se você alguma vez se sentiu num alçapão e especialmentese você tem uma compulsão a criar, é bem provável que você tenha sido ou seja umamulher braba. A mulher braba tem em geral uma fome extrema por algo profundo e,muitas vezes, pode ingerir qualquer veneno disfarçado na ponta de uma flecha, nacrença de que ele é aquilo pelo qual sua alma anseia.Embora algumas mulheres brabas se desviem das armadilhas no últimoinstante com mínimas perdas de pêlo, um número muito maior cai nessas armadilhassem perceber, ficando temporariamente desorientadas, enquanto outras sãoalquebradas pelas armadilhas e ainda outras consigam se libertar e se arrastar daliaté uma caverna para cuidar dos seus ferimentos sozinhas.Para evitar esses ardis e engodos propiciados pelo tempo que a mulher passano cativeiro e na fome, precisamos ter a capacidade de prevê-los e de nos desviarmosdeles. Temos de voltar a desenvolver o insight e a prudência. Temos de aprender anos desviar. Para poder distinguir as opções corretas, temos de poder ver as erradas.161Existe uma história ilustrativa contada por velhas a respeito das aflições damulher esfaimada e braba. Ela é conhecida pelos títulos diversos de "As sapatilhas doDiabo", "Os sapatos ardentes do Diabo" e "Os sapatinhos vermelhos". Hans ChristianAndersen escreveu um conto de fadas baseado nessa antiga história, dando-lhe esteúltimo título. Como um verdadeiro contador de histórias, ele envolveu o enredobásico com uma boa parte da sua própria inteligência e sensibilidade étnica, mas oesqueleto da história é o mesmo.Segue-se uma versão germânico-magiar que minha tia Tereza costumava noscontar quando éramos crianças. Na sua versão da história, ela sempre começavadizendo: "Olhem para seus sapatos e agradeçam por eles serem sem graça... porque épreciso que se viva com muito cuidado quando os sapatos são vermelhos demais."==============================Os sapatinhos vermelhosEra uma vez uma pobre órfã que não tinha sapatos. Essa criança guardava ostrapos que pudesse encontrar e, com o tempo, conseguiu costurar um par de sapatosvermelhos. Eles eram grosseiros, mas ela os adorava. Eles faziam com que ela sesentisse rica, apesar de ela passar seus dias procurando alimento nos bosquesespinhosos até muito depois de escurecer.Um dia, porém, quando ela vinha caminhando com dificuldade pela estrada,maltrapilha e com seus sapatos vermelhos, uma carruagem dourada parou ao seulado. Dentro dela, havia uma senhora de idade que lhe disse que ia levá-la para casa etratá-la como se fosse sua própria filhinha. E assim lá foram elas para a casa da ricasenhora, e o cabelo da menina foi lavado e penteado. Deram-lhe roupas de baixo deum branco puríssimo, um belo vestido de lã, meias brancas e reluzentes sapatospretos. Quando a menina perguntou pelas roupas velhas, e em especial pelos sapatosvermelhos, a senhora disse que as roupas estavam tão imundas e os sapatos eram tãoridículos que ela os jogara no fogo, onde se reduziram a cinzas.A menina ficou muito triste, pois, mesmo com toda a fortuna que a cercava, osmodestos sapatos vermelhos feitos por suas próprias mãos haviam lhe dado umafelicidade imensa. Agora, ela era obrigada a ficar sentada quieta o tempo todo, acaminhar sem saltitar e a não falar a não ser que falassem com ela, mas uma chamasecreta começou a arder no seu coração e ela continuou a suspirar pelos seus velhossapatos vermelhos mais do que por qualquer outra coisa.Como a menina tinha idade suficiente para ser crismada no dia do sacramento,a senhora levou-a a um velho sapateiro aleijado para que ele fizesse um par desapatos especiais para a ocasião. Na vitrina do sapateiro havia um par de lindíssimossapatos vermelhos do melhor couro. Eles praticamente refulgiam. Pois, apesar desapatos vermelhos serem escandalosos para se ir à igreja, a menina, que só sabiadecidir com seu coração faminto, escolheu os sapatos vermelhos. A vista da velhasenhora era tão fraca que ela, sem perceber a cor dos sapatos, pagou por eles. O velhosapateiro piscou para a menina e embrulhou os sapatos.No dia seguinte, os membros da congregação ficaram alvoroçados com ossapatos da menina. Os sapatos vermelhos brilhavam como maçãs polidas, comocorações, como ameixas tingidas de vermelho. Todos olhavam carrancudos. Até osícones na parede, até as estátuas não tiravam os olhos reprovadores dos sapatos. Amenina, no entanto, gostava cada vez mais deles. Por isso, quando o bispo começou a162salmodiar, o coro a cantarolar, o órgão a soar, a menina não achou que nada dissofosse mais belo que os seus sapatos vermelhos.Antes do final do dia, a velha senhora já estava informada dos sapatosvermelhos da sua protegida.— Nunca, nunca mais use esses sapatos vermelhos! — ameaçou a velha. Nodomingo seguinte, porém, a menina não conseguiu deixar de preferir os sapatosvermelhos aos pretos, e ela e a velha senhora caminharam até a igreja como decostume.À porta do templo estava um velho soldado com o braço numa tipóia. Eleusava uma jaqueta curta e tinha a barba ruiva. Ele fez uma mesura e pediu permissãopara tirar o pó dos sapatos da menina. Ela estendeu o pé, e ele tamborilou na sola dossapatos uma musiquinha compassada que lhe deu cócegas nas solas dos pés.— Lembre-se de ficar para o baile — disse ele, sorrindo e piscando um olhopara ela.Mais uma vez, todos lançaram olhares reprovadores para os sapatos vermelhosda menina. Ela, no entanto, adorava tanto esses sapatos que brilhavam como ocarmim, como framboesas, como romãs, que não conseguia pensar em mais nada,que mal prestou atenção no culto. Estava tão ocupada virando os pés para lá e para cápara admirar os sapatos que se esqueceu de cantar.— Que belas sapatilhas! — exclamou o soldado ferido quando ela e a velhasenhora saíam da igreja. Essas palavras fizeram a menina dar alguns rodopios alimesmo. No entanto, depois que seus pés começaram a se movimentar, eles nãoqueriam mais parar; e ela atravessou dançando os canteiros e dobrou a esquina daigreja até dar a impressão de ter perdido totalmente o controle de si mesma. Eladançou uma gavota, depois uma csárdás e saiu valsando pelos campos do outro ladoda estrada.O cocheiro da velha senhora saltou do seu banco e correu atrás da menina. Elea segurou e a trouxe de volta para a carruagem, mas os pés da menina, nos sapatosvermelhos, continuavam a dançar no ar como se ainda estivessem no chão. A velhasenhora e o cocheiro começaram a puxar e a forçar, na tentativa de arrancar ossapatos vermelhos dos pés da menina. Foi um horror. Só se viam chapéus caídos epernas que escoiceavam, mas afinal os pés da menina se acalmaram.De volta à casa, a velha senhora enfiou os sapatos vermelhos no alto de umaprateleira e avisou a menina para nunca mais calçá-los. No entanto, a menina nãoconseguia deixar de olhar para eles e ansiar por eles. Para ela, eles eram o que haviade mais lindo no planeta.Não muito tempo depois, o destino quis que a velha senhora caísse de cama e,assim que os médicos saíram, a menina entrou sorrateira no quarto onde eramguardados os sapatos vermelhos. Ela os contemplou lá no alto da prateleira. Seuolhar tornou-se fixo e provocou nela um desejo tão forte que a menina tirou ossapatos da prateleira e os calçou, na crença de que eles não lhe fariam mal algum. Sóque, no instante em que eles tocaram seus calcanhares e seus dedos, ela foi dominadapelo impulso de dançar.E saiu dançando porta afora e escada abaixo, primeiro uma gavota, depois umacsárdás e em seguida giros arrojados de valsa em rápida sucessão. A menina estavanum momento de glória e não percebeu que enfrentava dificuldades até que tevevontade de dançar para a esquerda e os sapatos insistiram em dançar para a direita.Quando ela queria dançar em círculos, os sapatos teimavam em seguir em linha reta.E, como eram os sapatos que comandavam a menina, em vez do contrário, eles afizeram dançar estrada abaixo, atravessar os campos enlameados e penetrar nafloresta soturna e sombria.163Ali, encostado numa árvore, estava o velho soldado de barba ruiva, com obraço na tipóia e usando sua jaqueta curta.— Puxa — disse ele —, que belas sapatilhas!Apavorada, a menina tentou tirar os sapatos, mas por mais que puxasse, elescontinuavam firmes. Ela saltava primeiro num pé, depois no outro, para tentar tirá-los, mas o pé que estava no chão continuava dançando assim mesmo e o outro pé nasua mão também fazia seu papel na dança.E assim, ela dançava e dançava sem parar. Por sobre os montes mais altos epelos vales afora, na chuva, na neve e ao sol, ela dançava. Ela dançava na noite maisescura, no amanhecer e continuava dançando também ao escurecer. Só que não erauma dança agradável. Era terrível, e não havia descanso para a menina.Ela entrou no adro de uma igreja e ali um espírito guardião não quis permitirque ela entrasse.— Você irá dançar com esses sapatos vermelhos — proclamou o espírito — atéque fique como uma alma penada, como um fantasma, até que sua pele pareçasuspensa dos ossos, até que não sobre nada de você a não ser entranhas dançando.Você irá dançar de porta em porta por todas as aldeias e baterá três vezes a cadaporta. E, quando as pessoas espiarem quem é, verão que é você e temerão que seudestino se abata sobre elas. Dancem, sapatos vermelhos. Vocês devem dançar.A menina implorou misericórdia mas, antes que pudesse continuar a suplicar,os sapatos vermelhos a levaram embora. Ela dançou por cima das urzes, através dosriachos, por cima de cercas-vivas, sem parar. Ainda dançava quando voltou à suaantiga casa e viu pessoas de luto. A velha senhora que a havia abrigado estava morta.Mesmo assim, ela passou dançando. Dançava porque não podia deixar de dançar.Totalmente exausta e apavorada, ela entrou dançando numa floresta onde morava ocarrasco da cidade. E o machado na parede começou a tremer assim que pressentiuque ela se aproximava.— Por favor! — implorou ela ao carrasco quando passou pela sua porta. — Porfavor, corte fora meus sapatos para me livrar desse destino horrível.O carrasco cortou fora as tiras dos sapatos vermelhos com o machado, mas ossapatos não se soltaram dos pés da menina. Ela se lamentou, então, dizendo que suavida não valia mesmo nada e que ele deveria amputar-lhe os pés. Foi o que ele fez.Com isso, os sapatos vermelhos com os pés neles continuaram dançando florestaafora e morro acima até desaparecerem. A menina era, agora, uma pobre aleijada eteve de descobrir um jeito de sobreviver no mundo trabalhando como criada. E nuncamais ansiou por sapatos vermelhos.===========================A perda brutal nos contos de fadasÉ mais do que razoável que se pergunte por que motivo os contos de fadas têmfinais tão brutais. Trata-se de um fenômeno encontrado por toda a parte nasmitologias e no folclore. O horripilante fecho dessa história é típico dos finais dehistórias de fadas nas quais a protagonista espiritual é incapaz de completar umesforço de transformação.Em termos psicológicos, o episódio brutal comunica uma verdade psíquicaimperiosa. Essa verdade é tão urgente — e no entanto tão fácil de ser descartadaquando dizemos: "Ah, sim, é, entendo" e seguimos, mesmo assim, na direção da164nossa ruína — que é improvável que prestemos atenção ao aviso se ele for expressoem termos mais leves.No mundo tecnológico moderno, os episódios brutais dos contos de fadasforam substituídos por imagens nos comerciais da televisão como, por exemplo,aquelas que mostram uma fotografia de uma família com um dos membros eliminadoe com um rastro de sangue cobrindo a fotografia para mostrar o que acontece quandoa pessoa dirige alcoolizada, ou aquelas imagens que tentam convencer as pessoas anão usarem drogas ilícitas mostrando um ovo a borbulhar numa frigideira esalientando que é isso o que ocorre com o cérebro submetido a drogas. A imagembrutal é um velho recurso para fazer com que o self emotivo preste atenção a umamensagem muito séria.A verdade psicológica na história dos sapatinhos vermelhos é a de que a vidaexpressiva da mulher pode ser sondada, ameaçada, roubada ou seduzida a não serque ela se mantenha fiel à sua alegria básica e ao seu valor selvagem, ou que osresgate. A história chama a nossa atenção para armadilhas e venenos com os quaisnos envolvemos com excessiva facilidade quando estamos sem a proteção da almaselvagem. Sem uma firme participação da natureza selvagem, a mulher definha e cainuma obsessão pelo que a faça se sentir melhor, pelo que a deixe em paz e porqualquer um que a ame, pelo amor de Deus.Quando está esfaimada, a mulher aceita qualquer substituto que lhe sejaoferecido, incluindo-se aqueles que, como os placebos, não fazem absolutamentenada por ela e os que são destrutivos e perigosos, que a fazem gastar seu tempo e seutalento de modo revoltante ou que expõem sua vida a perigos físicos. Trata-se de umafome da alma que leva a mulher a optar por aquilo que a fará sair dançandodescontrolada — e a levará também perto demais da porta do carrasco.Portanto, para podermos compreender essa história com maior profundidade,precisamos ver como uma mulher pode se perder de forma tão drástica ao perder suavida selvagem e instintual. O jeito de nos mantermos fiéis ao que temos, o jeito dedescobrir o caminho de volta ao feminino selvagem, está em ver os erros que podecometer uma mulher presa numa armadilha dessas. Só então podemos voltar atráspara consertar os estragos. Só então podemos ter uma reunião.Como veremos, a perda dos sapatos vermelhos feitos à mão representa a perdada vitalidade passional e da vida que a própria mulher projetou para si, aliadas àadoção de uma vida domesticada em excesso. Isso acaba levando à perda dapercepção aguçada, que induz aos excessos, à perda do pé, a plataforma sobre a qualpousamos, nossa base, um aspecto profundo da nossa natureza instintual quesustenta a nossa liberdade."Os sapatinhos vermelhos" nos mostra como tem início uma deterioração e oestado a que chegamos se não tomamos qualquer iniciativa em defesa da nossaprópria natureza selvagem. Que não reste dúvida, quando a mulher se esforça porintervir e combater seus próprios demônios, quaisquer que sejam eles, essa é umaguerra das mais valiosas, tanto em termos arquetípicos quanto nos da realidadeconsensual. Muito embora ela possa, como ocorre na história, chegar ao fundo dopoço em decorrência da fome, do cativeiro, do instinto prejudicado, de escolhasdestrutivas e de todo o resto, lembrem-se de que no fundo é onde ficam as raízesvivas da psique. É ali que estão os alicerces selvagens da mulher. No fundo está omelhor solo para semear e ver crescer algo de novo. Nesse sentido, chegar ao fundodo poço, embora extremamente doloroso, é chegar ao terreno de semeadura.Apesar de que jamais desejaríamos os venenosos sapatinhos vermelhos esubseqüente definhamento para nós mesmas nem para ninguém mais, existe no seucentro ardente e destrutivo algo que mescla a ferocidade e a prudência na mulher que165dançou a dança maldita, que perdeu a si mesma e à sua vida criativa, que setransportou até o inferno numa cestinha barata (ou cara) e que, mesmo assim, dealgum modo se manteve fiel a uma palavra, um pensamento, uma idéia até poderfugir desses demônios por uma fresta no tempo e poder sobreviver para contar suahistória.Portanto, a mulher que perdeu o controle pela dança, que perdeu seuequilíbrio e seus pés e compreende esse estado de privação no final da história, temum conhecimento especial e valioso. Ela é como um saguaro, um belo cacto giganteque sobrevive no deserto. Esses cactos podem ser perfurados por muitos tiros, podemser entalhados, derrubados, pisoteados e ainda assim sobrevivem, ainda assimarmazenam a água que dá vida, ainda assim crescem loucamente e se recuperam como tempo.Apesar de os contos de fadas acabarem ao final de dez páginas, nossas vidasnão acabam junto. Nós somos coleções de muitos volumes. Na nossa vida, mesmoque um episódio represente um desastre total, sempre há um outro episódio à nossaespera e depois mais outro. Há sempre outras oportunidades para acertar, paramoldar nossa vida do jeito que merecemos que ela seja. Não percam tempoamaldiçoando alguma derrota. O fracasso é um mestre mais eficaz do que o sucesso.Ouçam, aprendam, insistam. É isso o que estamos fazendo com essa história.Estamos ouvindo sua mensagem antiqüíssima. Estamos aprendendo lições sobremodelos deteriorantes para podermos prosseguir com a força de quem sabepressentir as armadilhas, arapucas e iscas antes de nos defrontarmos com elas ou decom elas nos envolvermos.Comecemos a destrinchar essa significativa história compreendendo o queacontece quando a vida que mais valorizamos, não importa a impressão que ela causenos outros, a vida que mais amamos, é desvalorizada e reduzida a cinzas.============================Os sapatinhos vermelhos feitos à mãoNa história, sabemos que a menina perde os sapatos vermelhos criados por elamesma, aqueles que a faziam se sentir rica ao seu próprio modo. Ela era pobre,porém criativa. Estava encontrando seu jeito de ser. Havia passado da condição denão ter sapato nenhum à de ter sapatos que lhe proporcionavam um sentido de forçaespiritual apesar das dificuldades da sua vida concreta. Os sapatinhos feitos à mãosão símbolos da sua ascensão de uma existência psíquica insignificante para uma vidaemotiva projetada por ela mesma. Seus sapatos representam um passo enorme eliteral no sentido da integração da sua engenhosa natureza feminina na rotina do seudia-a-dia. Não importa que sua vida seja imperfeita. Ela tem sua alegria. Ela iráevoluir.Nos contos de fadas, podemos compreender essa personagem tipicamentepobre porém criativa, como um motivo psicológico daquele que é rico em espírito eque lentamente adquire maior conscientização e maior poder com o passar do tempo.Seria possível dizer que essa personagem retraía exata-mente todas nós, pois todasavançamos lentamente, mas com segurança.Sob o aspecto social, os sapatos transmitem um sinal: são um meio dedistinguir um tipo de pessoa de outro tipo. Os artistas costumam usar sapatos quesão completamente diferentes daqueles usados, digamos, por engenheiros. Os166sapatos podem expressar algo a respeito de como somos, às vezes até de quemaspiramos ser, da persona que estamos experimentando.O simbolismo arquetípico dos sapatos remonta à antiguidade, quando ossapatos eram um sinal de autoridade: os governantes os possuíam, os escravos não.Mesmo hoje em dia, grande parte do mundo moderno aprende a avaliarexageradamente a inteligência e a capacidade de uma pessoa com base no fato de eleou ela usar sapatos ou não, assim como no fato de essa pessoa que possui sapatosestar "bem-calçada" ou não.Essa versão da história tem origem nos frios países do norte nos quais ossapatos são vistos como instrumentos de sobrevivência. Quando os pés são mantidossecos e aquecidos, eles permitem a sobrevivência da pessoa em condições extremasde frio e umidade. Lembro-me de que minha tia me contava que roubar o único parde sapatos de uma pessoa no inverno era um crime equivalente ao assassinato. Anatureza apaixonada e criativa da mulher corre o mesmo risco se ela não puder seagarrar às suas fontes de alegria e crescimento. Elas são o seu calor, a sua proteção.O símbolo dos sapatos pode ser interpretado como uma metáfora psicológica.Eles protegem e defendem o que é a nossa base — os nossos pés. No simbolismo dosarquétipos, os pés representam mobilidade e liberdade. Nesse sentido, ter sapatospara cobrir os pés é ter convicção nas nossas crenças e ter os meios necessários parasegui-las. Sem sapatos psíquicos, a mulher é incapaz de transpor ambientessubjetivos ou objetivos que exijam perspicácia, bom senso, cautela e firmeza.A vida e o sacrifício andam juntos. O vermelho é a cor da vida e do sacrifício.Para levar uma vida vibrante, precisamos fazer sacrifícios de diversos tipos. Se vocêquer ir para a universidade, deverá sacrificar tempo e dinheiro e dedicar umaconcentração enorme a essa opção. Se você quiser criar, precisará sacrificar asuperficialidade, alguma segurança e, com freqüência, seu desejo de ser apreciada,para fazer vir à tona seus insights mais fortes, suas visões mais amplas.Os problemas surgem quando há muito sacrifício, mas nenhuma vida brotadisso tudo. Nesse caso, o vermelho é a cor da perda de sangue, em vez de ser a cor davida do sangue. É exatamente isso o que ocorre na história. Perde-se um tipo devermelho vibrante e amado quando os sapatinhos feitos à mão são queimados. Issodetona na menina um anseio, uma obsessão e, finalmente, uma dependência do outrotipo de vermelho: o das emoções baratas e velozes; o do sexo sem alma; aquele queleva a uma vida sem significado.Portanto, ao interpretar todos os aspectos do conto de fadas comocomponentes da psique de uma única mulher, podemos concluir que a confecção dossapatos vermelhos pela própria criança representa um feito importante: a meninaretira sua vida do status de escrava/descalça — a de quem cuida da própria vida, comos olhos voltados para o chão, sem olhar nem para a direita nem para esquerda —para uma conscientização que faz uma pausa para criar, que nota a beleza e sentealegria, que sente paixão e registra a satisfação... bem como tudo o que compõe anatureza essencial que chamamos de selvagem.O fato de os sapatos serem vermelhos indica que o processo será de uma vidavibrante, o que inclui o sacrifício. Isso é justo e correto. O fato de esses sapatos seremfeitos à mão e formados de retalhos demonstra que a criança simboliza o espíritocriativo, que, sendo órfã e não tendo recebido ensinamentos por quaisquer motivos,conseguiu reunir os pedacinhos e formar os sapatos usando sua percepção inata.Muito bem! Uma bela e veemente afirmação.Se ela tivesse sido deixada em paz, essa situação teria um progresso agradávelpara o self criativo. Na história, a menina está feliz com sua obra, com o fato de terconseguido executá-la, o fato de ter tido paciência para procurar e acumular retalhos,167para criar a forma, reunir os pedaços e combiná-los, para manifestar suas idéias. Nãoimporta que a princípio o resultado seja grosseiro. Muitos dos deuses da criação emtodas as culturas e através dos séculos não criaram com perfeição logo da primeiravez. A primeira tentativa pode sempre receber aperfeiçoamentos, assim como asegunda e muitas vezes a terceira e também a quarta. Isso não tem nada a ver com anossa habilidade e talento. É simplesmente a vida, evocativa e em evolução.Contudo, se a criança for deixada em paz, ela fará outro par de sapatosvermelhos, mais um e ainda outro, até que eles não saiam tão grosseiros. Ela iráprogredir. No entanto, ainda superior à sua maravilhosa exibição de engenhosidade eà capacidade de prosperar em circunstâncias difíceis, o fato notável é que essessapatos feitos por ela lhe proporcionaram uma alegria imensa, e a alegria é a seiva davida, o alimento do espírito e a vida da alma reunidos num só.A alegria é o tipo de sensação que a mulher experimenta quando ela põe aspalavras no papel daquele jeito exato, ou acerta as notas al punto, como queria, logoda primeira vez.Uau! É incrível. É o tipo de emoção que a mulher sente ao descobrir que estágrávida quando é isso o que deseja. É o tipo de alegria que a mulher sente quando vêas pessoas que ama se divertindo. É aquela alegria que ela sente quando realizoualguma coisa na qual insistiu muito, que envolveu sentimentos fortes, algo que a fezse arriscar, algo que a fez se esforçar e se superar para conseguir — talvez comelegância, talvez não, mas com sucesso. Criou aquele algo, aquele alguém, a arte, aluta, o momento: sua vida. Esse é o estado de ser natal e instintivo da mulher. AMulher Selvagem transparece nesse tipo de alegria. Situações comoventes dessanatureza convocam a Mulher Selvagem pessoalmente.No entanto, na história, como preferiu o destino, um dia, para se contrapordiretamente aos modestos sapatos vermelhos feitos de retalhos, à simples alegria deviver, chega rolando e estalando à vida da menina uma carruagem dourada.As armadilhasArmadilha n° l: A carruagem dourada, a vida desvalorizadaNo simbolismo dos arquétipos, a carruagem é uma imagem literal, um veículoque transporta alguma coisa de um lugar para outro. Nos temas de sonhos modernose no folclore contemporâneo, ela foi suplantada principalmente pelo automóvel, quedá a mesma "impressão" arquetípica. Do ponto de vista clássico, esse tipo de veículode "transporte" é compreendido como a disposição central da psique, que nostransporta de um lado da psique para o outro, de uma idéia para outra, de umpensamento para outro e de uma iniciativa para outra.O ato de subir na carruagem dourada da velha senhora nesse ponto é muitoparecido com a entrada na gaiola dourada. Ela supostamente oferece algo maisconfortável, menos estressante, mas na realidade sua função é a de cativeiro. Elaprende de um jeito imperceptível de imediato, já que a princípio os douradoscostumam ser ofuscantes. Imaginemos, portanto, que vamos descendo a estrada danossa vida, com nossos sapatos feitos por nós mesmas, e somos acometidas por umadisposição de ânimo que nos diz algo como "Talvez outra coisa fosse melhor; talvezalgo que não fosse tão difícil; algo que consumisse menos tempo, energia e esforço."Isso ocorre muitas vezes na vida das mulheres. Estamos no meio de umempreendimento e não importa como nos sintamos a respeito dele. Estamossimplesmente criando nossa vida à medida que avançamos e fazendo o melhor168possível. Logo, porém, somos inundadas por algo que nos diz, isso é muito difícil,mas olhe só aquela beleza logo ali; aquele negócio todo enfeitado parece ser maisfácil, mais bonito, mais irresistível. De repente, uma carruagem dourada se aproxima,a porta se abre, a escadinha cai e nós subimos. Fomos seduzidas. Essa tentaçãoocorre com regularidade, às vezes diariamente. E às vezes é difícil dizer não.Por isso, nós nos casamos com a pessoa errada porque nossa vida será maisfácil em termos econômicos. Desistimos de uma peça nova na qual estivemostrabalhando e voltamos a usar a velha e desgastada fórmula, porém mais fácil, queviemos tentando forçar nos últimos dez anos. Não levamos aquele belo poema aonível de refinamento máximo mas o deixamos no terceiro rascunho em vez detrabalhar nele mais um pouco.A passagem da carruagem dourada supera a alegria modesta dos sapatosvermelhos. Embora pudéssemos interpretar esse fato como a procura por parte damulher de bens e confortos materiais, muitas vezes ele exprime um mero desejopsicológico de não ter de se esforçar tanto com os aspectos básicos da vida criativa. Odesejo de facilitar a vida não é a armadilha, pois é natural que o ego tenha essedesejo. Ah, mas o preço. O preço é que é a armadilha. A armadilha se fecha quando amenina vai morar com a senhora velha e rica. Nessa casa, ela deverá ficar bem-comportada e em silêncio... Não lhe será permitido verbalizar nenhum anseio e, maisespecificamente, não lhe será permitida a realização desse anseio. É o início da fomeda alma para o espírito criativo.A psicologia junguiana tradicional salienta que a perda da alma ocorreespecialmente na metade da vida, por volta dos trinta e cinco anos de idade, ou poucodepois. No entanto, para as mulheres na cultura moderna, a perda da alma é umperigo a cada dia que passa, quer se tenha dezoito, quer oitenta anos, sejamoscasadas ou não, independente da nossa linhagem, instrução ou nível econômico.Muitas pessoas "instruídas" sorriem com superioridade quando ouvem falar que aspessoas "primitivas" possuem listas intermináveis de experiências e acontecimentosque na sua opinião podem roubar sua alma — desde ver um urso na época errada doano até entrar numa casa que não foi benzida depois de ali ter ocorrido uma morte.Embora muitos aspectos da cultura moderna sejam maravilhosos erevitalizantes, ela também possui maior quantidade de ursos em época errada e locaisnão-abençoados num único quarteirão do que em milhares de quilômetros quadradosde mato. O fato psíquico crucial continua a ser o de que nosso vínculo com osignificado, com a paixão, com o envolvimento e com a natureza profunda é algo queprecisamos proteger. Existem muitas coisas que tentam nos forçar, nos arrastar, nosseduzir para longe dos sapatos feitos à mão, que aparentam ser simples como quandodizemos: "numa outra hora, eu danço, planto, abraço, procuro, planejo, aprendo, façoas pazes, limpo... numa outra hora." Só armadilhas.Armadilha n° 2: A velha secarrona, a força senescenteNa interpretação dos sonhos e dos contos de fadas, compreende-se que aqueleque possui o "veículo de atitudes", a carruagem dourada, é o principal valor quepressiona a psique, que a força a seguir adiante, que a impulsiona na direção que lheapraz. Nesse caso, os valores da velha senhora proprietária da carruagem começam aconduzir a psique.Na psicologia junguiana tradicional, a figura arquetípica do idoso é às vezeschamada de força "senex". Em latim, senex significa "velho". Com maior propriedadee sem a atribuição de gênero, o símbolo do idoso pode ser compreendido como aforça senescente: aquilo que age de um modo peculiar aos idosos.1169Nos contos de fadas, essa força da idade é encarnada por uma pessoa idosa queé freqüentemente descrita como tendo apenas um aspecto, o que indica que oprocesso psíquico central está também se desenvolvendo apenas num aspecto. Emtermos ideais, uma mulher de idade simboliza a dignidade, a capacidade deorientação, a sabedoria, o autoconhecimento, a atenção às tradições, os limites bemdefinidos e a experiência... com uma boa dose de irreverência irritadiça, franca eencantadora para contrabalançar.No entanto, quando uma velha num conto de fadas usa esses atributos deforma negativa, como na história dos sapatinhos vermelhos, somos avisadas de quecertos aspectos da psique que deveriam ser mantidos aquecidos estão a ponto deserem congelados no tempo. Algo que normalmente vibra dentro da psique estáprestes a ser engomado e alisado, a ser espancado ou deformado ao ponto de não sermais reconhecido. Quando a menina entra na carruagem dourada da velha senhora eem seguida na sua casa, ela foi capturada exatamente como se, de propósito, tivesseenfiado a pata numa armadilha de dentes pontiagudos.Como vemos na história, o fato de ser adotada pela velha senhora, em vez dedignificar o novo, permite que a atitude senescente destrua a inovação. Em vez deorientar sua protegida, a velha senhora tentará mumificá-la. A velha senhora nessahistória não é sábia, mas se dedica, sim, à repetição de um único valor semexperimentos nem renovação.Através de todas as cenas localizadas na igreja, concluímos que esse valorúnico é o de que a opinião do coletivo importa mais do que qualquer coisa e deveriasuperar as necessidades da alma selvagem individual. Com freqüência, considera-seque o coletivo é a cultura2 que cerca um indivíduo. Embora isso seja verdade, adefinição de Jung era a de "muitos comparados com o indivíduo". Somosinfluenciados por inúmeros coletivos, tanto pelos grupos aos quais nos associamosquanto por aqueles dos quais não somos integrantes. Sejam os grupos que noscercam de natureza acadêmica, espiritual, financeira, profissional, familiar, quer dealguma outra natureza, eles impõem poderosas recompensas e punições a seusmembros e aos não-membros com idêntica aplicação. Eles operam de modo ainfluenciar e controlar todas as áreas possíveis — desde os nossos pensamentos até anossa escolha de parceiros e o trabalho da nossa vida. Eles podem também depreciarou desestimular os esforços que não se harmonizem com as suas preferências.Nessa história, a velha senhora é um símbolo da rígida guardiã da tradiçãocoletiva, de quem sustenta o status quo sem questioná-lo, do "comporte-se; não crieconfusão; não pense demais; não se superestime; não chame a atenção; seja maisuma cópia; seja simpática; aceite tudo, mesmo que não goste, mesmo que não seajuste a você, que não seja do tamanho certo e que machuque." E assim por diante.Obedecer a um sistema de valores tão desprovido de vida provoca uma perdaextrema de vínculo com a alma. Independente de quaisquer influências ou afiliaçõescom grupos, nosso desafio em defesa da alma selvagem e do nosso espírito criadorconsiste em não nos fundirmos com o coletivo, mas em nos distinguirmos dos quenos cercam, construindo pontes até eles à nossa escolha. Nós vamos decidir quaispontes irão se solidificar e ter muito movimento, e quais permanecerão em esboço evazias. E os grupos com os quais devemos nos relacionar serão aqueles queproporcionarem maior apoio à nossa alma e à vida criativa.Se a mulher trabalha na universidade, ela está num grupo acadêmico. Ela nãodeve se fundir com qualquer proposta apresentada por esse ambiente coletivo, masdeve, sim, acrescentar-lhe sua própria contribuição especial. Como criatura inteiraque é, a menos que tenha outras criações fortes na sua vida para contrabalançar isso,ela não pode permitir se transformar numa pessoa rabugenta e preconceituosa do170tipo que "faz seu trabalho, vai para casa, volta para o trabalho..." Se a mulher tentafazer parte de uma organização, associação ou família que deixe de examiná-la paraver do que ela é feita, que deixe de se perguntar o que faz essa pessoa funcionar e quenão se esforce para desafiá-la ou incentivá-la de nenhum modo positivo... suacapacidade de prosperar e criar fica reduzida. Quanto piores as circunstâncias, maisempurrada ela será na direção de uma terra estéril onde foi espalhado sal para quenada ali crescesse.A separação da vida e da mente de uma mulher de um pensamento coletivonivelador e o desenvolvimento dos seus talentos exclusivos estão entre as realizaçõesmais importantes que a mulher pode alcançar, pois esses atos impedem que tanto apsique quanto a alma caiam na escravidão. Uma cultura que promova genuinamenteo desenvolvimento individual não pode jamais ter uma classe de escravos de qualquergrupo ou sexo.Contudo, na história, a menina aceita os valores áridos da velha senhora. Amenina torna-se, assim, braba, por passar de um estado natural para um de cativeiro.Logo, ela será lançada na loucura dos diabólicos sapatos vermelhos, mas já sem seussentidos inatos e incapaz de perceber o perigo.Se nos afastarmos da nossa vida real e pulsante e entrarmos na carruagemdourada da velha senhora sem vida, estaremos na verdade adotando a persona e asambições dessa frágil perfeccionista. Então, como todo animal em cativeiro, caímosnuma tristeza que leva a uma anseio obsessivo, muitas vezes caracterizado como umainquietação sem nome. Daí em diante, corremos o risco de nos agarrar à primeiracoisa que promete fazer com que voltemos a nos sentir vivas.É importante que mantenhamos os olhos abertos e que consideremos comcuidado as ofertas de uma existência mais fácil, de uma estrada sem problemas,especialmente se nos for pedido em troca que entreguemos a nossa própria alegriacriadora a um forno crematório em vez de aquecê-la num fogo criado por nósmesmas.Armadilha n° 3: A queima do tesouro, hambre del alma, a fome da almaExiste o fogo que acompanha a alegria, e o fogo que acompanha a destruição.Um é o fogo da transformação; o outro, o fogo apenas da dizimação. No entanto,muitas mulheres renunciam aos seus sapatos vermelhos e concordam em se tornarlimpas demais, educadas demais, submissas demais à visão de mundo das outraspessoas. Estamos entregando nossos alegres sapatos vermelhos ao fogo destrutivoquando digerimos valores, propagandas e filosofias por atacado, incluindo-se aí as denatureza psicológica. Os sapatos vermelhos são reduzidos a cinzas quando pintamos,atuamos, escrevemos, agimos e somos de qualquer modo que diminua as nossasvidas, que enfraqueça a nossa visão, que alquebre os ossos do nosso espírito.É então que a vida da mulher é dominada pela palidez porque ela está comhambre del alma; é uma alma faminta. Tudo o que ela quer é ter de volta sua vidaprofunda. Tudo o que ela quer é aquele par de sapatos vermelhos feitos à mão. Aenorme alegria que eles representam poderia ter sido extinta no fogo da falta de usoou no da desvalorização do nosso próprio trabalho. Eles também poderiam ter ardidonas chamas do silêncio que impomos a nós mesmas.Uma quantidade excessiva de mulheres fez um voto terrível anos antes deserem capazes de um melhor discernimento. Ainda jovens, faltaram-lhes o apoio e oestímulo básicos; e assim, cheias de mágoa e resignação, elas pousaram suas canetas,calaram sua voz, desligaram seu canto, enrolaram suas telas e juraram nunca maisvoltar a tocar neles. A mulher que esteja em condições semelhantes entrou, sem171perceber, no forno junto com a vida da sua própria criação. Sua vida fica reduzida acinzas.É possível que a vida de uma mulher definhe no fogo do ódio a si mesma, poisos complexos corroem fundo e, pelo menos por algum tempo, conseguem manter amulher afastada do trabalho ou da vida que realmente importam para ela. Muitosanos se passam sem que ela ande, se mexa, aprenda, descubra, obtenha, assuma, semque se transforme.A imagem que a mulher cria para sua própria vida também pode ser destruídapelas chamas da inveja de outra pessoa ou pela simples atitude destrutiva dessapessoa para com ela. Não se espera que a família, os conselheiros, professores eamigos sejam destrutivos mesmo quando sentem inveja, mas a verdade é que algunsdeles decididamente são destrutivos, tanto de formas sutis quanto de formas não tãosutis. Nenhuma mulher pode permitir que sua vida criativa fique suspensa por um fioenquanto ela presta serviço a um amigo, mestre, pai ou parceiro num relacionamentoamoroso, que não lhe seja propício.Quando a vida da alma de uma pessoa fica reduzida a cinzas, a mulher perdeseu tesouro vital e começa a agir com a aridez da morte. No seu inconsciente, o desejopêlos sapatos vermelhos, por uma alegria imensa, não só continua, mas cresce,transborda, acaba conseguindo se equilibrar nos próprios pés e domina a mulher,faminto e brabo.Viver no estado de hambre del alma, de alma faminta, é sentir uma fomeinsaciável. Nessa situação, a mulher arde de fome por qualquer coisa que a faça voltara se sentir viva. A mulher que foi capturada não sabe o que fazer e aceita algumacoisa, qualquer coisa, que lhe pareça semelhante ao tesouro original, seja para o seubem ou não. A mulher que foi privada da sua verdadeira vida da alma pode dar aimpressão de estar "limpa e penteada", mas por dentro ela está repleta de dezenas demãos que imploram e de bocas vazias.Nesse estado, ela aceita qualquer alimento independente das suas condições edos seus efeitos porque está tentando compensar perdas anteriores. No entanto,mesmo que essa seja uma situação terrível, o Self selvagem insiste em tentar nossalvar. Ele sussurra, geme, chama, arrasta nossas carcaças descarnadas de um ladopara o outro nos nossos sonhos até que nos conscientizemos da nossa condição etomemos medidas no sentido de resgatar o tesouro.Podemos entender melhor a mulher que se afunda em excessos — sendo osmais comuns as drogas, o álcool e relacionamentos prejudiciais — e cuja forçapropulsora é a fome da alma, com a observação do comportamento do animalesfaimado e voraz. Como a alma faminta, o lobo sempre foi descrito como um serperverso, devorador, que ataca os inocentes e os desprotegidos, que mata por matar,que nunca sabe quando parar. Como se pode ver, o lobo tem uma reputação péssimae imerecida tanto nos contos de fadas quanto na vida real. Na verdade, os lobos sãoanimais sociais dedicados. A matilha como um todo é organizada instintivamente demodo que os lobos saudáveis matem apenas o que for necessário para asobrevivência. É somente quando algum trauma atinge um lobo isolado ou a matilhacomo um todo que esse padrão normal se relaxa ou se altera.Existem duas circunstâncias nas quais o lobo mata desenfreadamente. Nosdois casos, ele não está bem. Ele pode matar indiscriminadamente quando estádoente de raiva ou cinomose. Ele pode, também, matar indiscriminadamente apósum período excessivo de fome. A idéia de que a fome pode mudar o comportamentodos seres vivos tem grande significado para as mulheres de alma faminta porque, emnove entre dez casos, a mulher com um problema espiritual/psicológico que a faz cair172em armadilhas e se machucar seriamente é uma mulher cuja alma está sendoatualmente, ou foi no passado, submetida à fome.Entre os lobos, a fome ocorre quando há fortes nevascas e é impossível chegarà caça. O cervo e o caribu funcionam como limpa-neves. Os lobos seguem as trilhasque eles abrem na neve alta. No entanto, quando o cervo fica preso por nevascaspesadas, essa limpeza pára, e os lobos também ficam sem ter rastros a seguir. Aconseqüência é a fome. Para os lobos, a época mais propícia aos perigos da fome é oinverno. Para a mulher, a fome pode surgir a qualquer hora, vinda de qualquer lugar,até mesmo da sua própria cultura.Para o lobo, a fome geralmente termina na primavera, quando a neve começa aderreter. Depois de passar fome, a matilha pode se entregar a uma matançadesenfreada. Seus integrantes não comem a maior parte da caça morta, nem aescondem. Eles simplesmente a abandonam. Matam muito mais do que jamaisconseguiriam comer, muito mais do que jamais precisariam.3 Um processosemelhante ocorre quando uma mulher foi capturada e submetida à fome. Derepente, sentindo-se livre para ir e vir, fazer e ser, ela corre o risco de se entregar aexcessos irresponsáveis... e de se sentir no direito de fazê-lo. A menina no conto defadas também crê ter o direito de acesso aos perigosos sapatos vermelhos a qualquercusto. Há algo na fome que nos priva do raciocínio.Portanto, quando o tesouro da vida mais profunda da mulher foi reduzido acinzas, em vez de ter a motivação da expectativa, ela se vê possuída pela voracidade.Se não se permitia, por exemplo, que a mulher esculpisse, ela de repente podecomeçar a esculpir dia e noite, perdendo horas de sono, privando de alimento seucorpo inocente, prejudicando sua saúde e sabe-se lá mais o quê. Pode ser que ela nãoconsiga ficar acordada nem mais um segundo. Recorre, então, às drogas... pois quemsabe quanto tempo ainda irá continuar livre?Hambre del alma também implica a privação dos atributos da alma: acriatividade, a percepção sensorial e outros dons instintivos. Se uma mulher tem deser bem-educada e só se senta com os joelhos bem juntinhos; se ela foi criada demodo a baixar a cabeça diante da linguagem grosseira; se nunca lhe foi permitidobeber nada a não ser leite pasteurizado... quando ela se liberar, cuidado! De repente,pode não haver quantidade de gim que sacie sua sede; ela pode se esparramar comoum marinheiro embriagado; e seus palavrões podem fazer soltar a tinta das paredes.Depois da fome, vem o medo de que um dia desses voltemos a ser capturadas. Porisso, vamos aproveitar enquanto é tempo.4A aniquilação através de excessos, ou seja, os comportamentos exagerados, é areação da mulher que está faminta por uma vida que tenha significado e faça sentidopara ela. Quando uma mulher passou longos períodos sem seus ciclos ou sem suprirsuas necessidades criativas, ela começa a se exceder — seja no que for —: álcool,drogas, raiva, espiritualidade, opressão generalizada, promiscuidade, gravidezes,estudo, criação, controle, instrução, organização, forma física, comidas poucosaudáveis, para citar apenas algumas áreas em que os excessos são comuns. Quandoa mulher age assim, ela está procurando compensar a perda dos ciclos regulares deexpressão de si mesma, expressão da alma, da satisfação da alma.A mulher faminta resiste a muitos períodos de privação. Ela pode planejarescapar e, não obstante, considerar alto demais o preço da fuga, acreditando que elalhe exigirá muita libido, muita energia. A mulher pode também se sentirdespreparada sob outros aspectos, como por exemplo em termos espirituais,econômicos ou da sua própria formação. Infelizmente, a perda do tesouro e arecordação de longas temporadas de privação podem nos levar a racionalizar que os173excessos são desejáveis. E é claro que é um imenso alívio e prazer conseguirfinalmente apreciar uma sensação... qualquer sensação.A mulher recém-liberta da fome só quer gozar a vida, para variar. Suaspercepções embotadas no que diz respeito aos limites financeiros, espirituais, físicos,racionais e emocionais necessários para a sobrevivência colocam em risco suaexistência. Para ela, há em algum lugar um belo e perigoso par de sapatos vermelhos.Ela os apanhará onde os encontrar. É esse o problema da privação. Se alguma coisader a impressão de preencher o anseio, a mulher a agarrará, sem fazer perguntas.Armadilha n° 4: Danos aos instintos básicos, a conseqüência docativeiroOs instintos são algo difícil de definir, pois suas configurações são invisíveis e,embora pressintamos que eles fazem parte da/ natureza humana desde o início dostempos, ninguém sabe precisamente onde eles se localizariam em termosneurológicos nem de que modo exato eles nos influenciam. À luz da psicologia, Jungpropôs que os instintos seriam derivados do inconsciente psicóide, aquela camada dapsique na qual a biologia e o espírito talvez se encontrem. Depois de muito refletir,sou da mesma" opinião, e me arriscaria a propor que o instinto criador, em especial,tanto é a expressão lírica do Self quanto a simbologia dos sonhos.Etimologicamente, a palavra instinto deriva do latim instinguere, que significaincitar ou induzir uma inspiração inata, bem como de instinctus, que significa"impulso". A idéia do instinto pode ser valorizada como alguma coisa interna quequando mesclada com a previsão e a consciência, orienta os seres humanos nosentido de um comportamento integral. A mulher nasce com todos os instintosintactos.Embora pudéssemos dizer que a menina da história foi arrastada para umambiente novo, ambiente no qual sua falta de polimento é corrigida e as dificuldadeseliminadas da sua vida, na realidade seu processo de individualização pára, seuesforço no sentido do desenvolvimento é interrompido. E, quando a velha senhora,uma presença inibidora, considera a obra do espírito criador um lixo, em vez de umbem, e queima os sapatos vermelhos, a menina fica mais do que calada. Ela seentristece, que é o estado esperado quando o espírito criativo é isolado da vidaprofunda natural. Pior que isso, o instinto da criança para fugir dessa aflição ficaembotado a ponto de desaparecer. Em vez de ter como objetivo uma nova vida, elafica presa numa poça de cola psíquica. A recusa a tentar fugir, quando essa atitude éplenamente justificada, causa a depressão. Mais uma armadilha.Chamem a alma do que quiserem — a união com o lado selvagem, a esperançano futuro, uma corrente de energia, a paixão pela criação, um jeito de ser, de fazer, oser amado, o noivo selvagem, a "pluma pousada no sopro de Deus".5 Quaisquer quesejam as palavras ou imagens que empreguemos para descrever esse aspecto da nossavida, foi ele que foi capturado. É por isso que o espírito da psique fica tão desolado.Em estudos a respeito da vida de diversas espécies de animais selvagens emcativeiro, foi descoberto que, independente do carinho com que foram construídos osseus ambientes nos zoológicos, independente do amor, realmente verdadeiro, dosseus tratadores, muitas vezes os animais tornam-se incapazes de procriar, alteram-seseus apetites para o alimento e para o descanso, seu comportamento vital definha atéchegar à letargia, à irritabilidade ou à agressividade desmedida. Os zoólogos chamamesse comportamento no cativeiro de "depressão animal". Sempre que o animal éenjaulado, deterioram-se seus ciclos naturais de sono, de seleção do parceiro, doestro, dos cuidados consigo mesmo e dos cuidados com os filhotes, entre outros. À174medida que se vão perdendo os ciclos naturais, segue-se o vazio. O vazio não é cheio,como no conceito budista do vazio sagrado, mas, sim, um vazio como o de se estardentro de uma caixa vedada sem aberturas.Assim, quando a mulher entra nos domínios da velha e árida senhora, ela sofrede perda de decisão, confusão mental, tédio, depressão simples e súbitas crises deansiedade que são semelhantes aos sintomas que os animais apresentam quandoestão atordoados pelo cativeiro ou por traumas. Um excesso de domesticação geraimpulsos fortes e essenciais no sentido de brincar, de se relacionar, de saber lidar, deperambular, de comungar e assim por diante. Quando uma mulher concorda em serbem-educada demais, seus instintos por esses impulsos caem nas trevas do seuinconsciente mais profundo, fora do seu alcance imediato. Diz-se, então, que ela estácom seus instintos prejudicados. O que deveria vir naturalmente acaba não vindo ouvem só depois de muito esforço, muitos empurrões, muita racionalização e lutasconsigo mesma.Quando falo do excesso de domesticação como forma de cativeiro, não estoume referindo à socialização, o processo pelo qual as crianças são ensinadas a secomportar de um modo mais ou menos civilizado. O desenvolvimento social é deimportância crítica. Sem ele, a mulher não tem como progredir no mundo.No entanto, o excesso de domesticação se assemelha a proibir que a essênciavital saia dançando. Em seu estado saudável e característico, o Self selvagem não édócil e vazio. Ele é alerta e sensível a qualquer movimento ou momento. Ele não seprende a um modelo absoluto e repetitivo para toda e qualquer circunstância. Ele temopções criativas. A mulher cujos instintos estão prejudicados não tem escolha. Elasimplesmente fica impossibilitada de prosseguir.Há muitos modos de se estar impedida de prosseguir. A mulher cujos instintosestão feridos geralmente se denuncia por enfrentar muita dificuldade para pedirajuda, para reconhecer suas próprias necessidades. Seu instinto natural para a luta oupara a fuga é drasticamente reduzido ou mesmo extinto. São inibidos ou exagerados oseu reconhecimento das sensações de saciedade, de sabor estranho, de suspeita, decautela, e seu impulso no sentido de amar plena e livremente.Como na história, uma das agressões mais insidiosas ao Self selvagem consisteem receber ordens para agir corretamente, com a insinuação de que uma recompensase seguirá (um dia, quem sabe?). Embora esse método possa (dou ênfase especial aesse "possa") temporariamente convencer uma criança de dois anos a arrumar seuquarto (nada de brinquedo enquanto a cama não estiver feita),6 ele jamais funcionarána vida de uma mulher cheia de energia. Apesar de a coerência, a persistência e aorganização serem elementos essenciais à implementação de uma vida criativa, aordem da velha senhora para que ela se comporte elimina qualquer oportunidade deexpansão.Não é o bom comportamento, mas a atividade lúdica que é a artéria central, ocerne, o bulbo cerebral da vida criativa. O impulso para o lúdico é instintivo. Sem olúdico, não há vida criativa. Com o comportamento restrito ao "bom", não há vidacriativa. Quando estamos sentadas sem nos mexer, não há vida criativa. Quandofalamos, pensamos e agimos apenas com modéstia, não há vida criativa. Qualquergrupo, sociedade, instituição ou organização que incentive as mulheres a desprezar oque for excêntrico; a suspeitar do que for novo e in-comum; a evitar o que forinovador, vital, veemente; a despersonalizar o que lhe for característico, estará àprocura de uma cultura de mulheres mortas.Janis Joplin, uma cantora de blues da década de 60, é um bom exemplo deuma mulher braba cujos instintos se viram prejudicados por forças alquebradoras doespírito. Sua vida criativa, sua curiosidade inocente, seu amor pela vida, sua atitude175irreverente para com o mundo durante os anos do seu crescimento eramimpiedosamente criticados pelos seus mestres e por muitos dos que a cercavam nacomunidade batista de meninas brancas "bem-comportadas", no sul dos EstadosUnidos.Embora fosse excelente aluna e pintora talentosa, era repudiada pelas outrasmeninas por não usar maquiagem7 e pela vizinhança por ouvir jazz e gostar deescalar uma formação rochosa fora da cidade para ficar lá cantando com seus amigos.Quando afinal fugiu para o mundo dos blues, era uma pessoa tão carente que nãosabia mais dizer quando era a hora de parar. Ela não tinha limites no que diziarespeito a sexo, bebidas ou drogas.8Há algo em Bessie Smith, Anne Sexton, Edith Piaf, Marilyn Monroe e JudyGarland que apresenta o mesmo padrão de instintos prejudicados pela fome da alma:a tentativa de "se ajustar", a tendência à intemperança, a impossibilidade de parar.9Poderíamos trazer uma longa relação de mulheres talentosas de instintos feridos que,num estado de vulnerabilidade, fizeram escolhas infelizes. Como a criança dahistória, todas elas perderam seus sapatos feitos à mão em algum ponto do caminho ede algum modo chegaram aos perigosos sapatinhos vermelhos. Todas elas estavamcheias de mágoa por ansiarem por alimento para o espírito, por histórias para a alma,por vaguear naturalmente por aí, por enfeites que se adequassem às suas própriasnecessidades, pelo aprendizado de Deus e por uma sexualidade simples e sã. Noentanto, distraídas, elas escolheram os sapatos amaldiçoados — crenças, atos, idéiasque fizeram com que sua vida se deteriorasse cada vez mais — que as transformaramem espectros a dançar loucamente.Não se pode subestimar o dano causado aos instintos como raiz do problemaquando as mulheres parecem estar loucas, são possuídas por uma obsessão ouquando estão presas a modelos menos maléficos mas, ainda assim, destrutivos. Arecuperação do instinto ferido começa com o reconhecimento de que a capturaocorreu, de que uma fome da alma se seguiu, de que os limites normais de insight eproteção foram perturbados. É preciso reverter o processo que causou a captura damulher e a conseqüente fome. Antes de mais nada, porém, muitas mulheres passampêlos estágios que se seguem, como está descrito na história.Armadilha no 5: A tentativa de ocultar uma vida secreta, a divisãoNesse segmento da história, a menina está para ser crismada e é levada aosapateiro para comprar sapatos novos. O tema da crisma é um acréscimorelativamente moderno à história. Em termos arquetípicos, é provável que "Ossapatinhos vermelhos" seja um fragmento extremamente alterado de uma história oumito muito mais antigo que tratava do surgimento da menarca e da passagem parauma vida menos protegida pela mãe, já que a jovem teria aprendido na infância commulheres mais velhas do que ela a ficar alerta para o mundo concreto e a reagir aele.1 0Diz-se que nas antigas culturas matriarcais da Índia, do Egito, de partes daÁsia e da Turquia — que parecem ter influenciado o nosso conceito da alma femininapor milhares de quilômetros em todas as direções — a transmissão da henna e deoutros pigmentos vermelhos às mocinhas, para que pudessem tingir os pés com eles,era uma característica fundamental dos ritos de passagem.1 1 Um dos ritos depassagem mais importantes tratava da primeira menstruação. Esse rito celebrava atravessia da infanda para a profunda capacidade de gerar vida no próprio ventre, dedispor do poder sexual resultante e de todos os poderes femininos periféricos. Acerimônia apresentava o sangue em todos os seus estágios: o sangue uterino da176menstruação, o do parto, o do aborto, todos escorrendo na direção dos pés. Como sepode ver, os sapatos vermelhos originais eram plenos de significado.A referência ao dia do sacramento da crisma é também um acréscimo maisrecente. Trata-se de uma festa cristã que, na Europa, acabou por superar os festejosdo solstício de inverno da antiga cultura pagã. Durante as festividades pagãs, maisantigas, as mulheres praticavam a purificação ritual do corpo feminino e daalma/espírito feminino numa preparação para uma nova vida, tanto figurativaquanto literal, na primavera que viria. Esses ritos podiam conter o lamento grupaipelas perdas nos partos,1 2 incluindo-se a morte de um filho, o aborto natural, o partode natimortos, o aborto provocado e outros acontecimentos importantes na vidasexual e reprodutiva do ano anterior.1 3Nesse momento na história, ocorre um dos episódios mais reveladores darepressão psíquica. O voraz desejo da criança pela alma destrói as trancas do seucomportamento reprimido. Na sapataria, ela faz passar os estranhos sapatosvermelhos sem que a velha senhora note. Uma fome devoradora pela vida da almaveio à tona na sua psique, apanhando qualquer coisa que lhe caia nas mãos, pois elasabe que logo voltará a ser reprimida.Essa explosiva "ocultação" psicológica ocorre quando a mulher reprime grandeparte do self, empurrando-o para locais sombrios na psique. Segundo a psicologiaanalítica, a repressão de sentimentos, instintos e impulsos tanto negativos quantopositivos, forçando-os para o fundo do inconsciente, faz com que eles ocupem o reinoda sombra. Embora o ego e superego continuem tentando censurar os impulsos dasombra, a própria pressão causada por essa repressão se assemelha muito a umabolha na lateral de um pneu. Com o tempo, à medida que o pneu gira e se aquece, apressão por trás da bolha aumenta e provoca uma explosão, que libera todo o ar doseu interior.A sombra age de modo semelhante. É por isso que uma pessoa extremamentesovina pode surpreender a todos contribuindo de repente com milhões de dólarespara um orfanato. Ou é por isso que uma pessoa normalmente simpática é capaz deter um ataque e agir momentaneamente como um rojão enlouquecido. Concluímosque, quando se abre um pouco a porta para o reino da sombra e se permite que várioselementos saiam, aos poucos, para que nos relacionemos com eles, que descubramosuso para eles, que negociemos com eles, podemos reduzir a chance de sermossurpreendidas por ataques e explosões inesperadas dali provenientes.Embora os valores possam mudar de uma cultura para a outra, colocando,assim, "negativos" e "positivos" diferentes no reino das sombras, impulsos típicos quesão considerados negativos e, portanto, relegados às trevas são aqueles queestimulam a pessoa a roubar, a enganar, a assassinar, a agir com excesso de diversasmaneiras, e assim por diante nessa mesma linha. Os aspectos negativos da sombracostumam ser estranhamente interessantes e, ainda assim, de natureza entrópica,roubando o equilíbrio e a serenidade na disposição e na vida de indivíduos,relacionamentos e grupos maiores.A sombra pode, porém, conter aspectos divinos, exuberantes, belos epoderosos da individualidade. Para as mulheres, especialmente, o mundo sombrioquase sempre contém modos refinados de ser que são proibidos na sua cultura ouque nela recebem pouco apoio. No fundo do poço da psique de muitas mulheres estáa criadora visionária, a astuta reveladora da verdade, a vidente, a que pode falar bemde si mesma sem se censurar, que pode se encarar sem repulsa, que se esforça paraaperfeiçoar seu talento. Os impulsos positivos ocultos nas sombras da nossa culturana maioria das vezes estão relacionados à permissão para que a mulher crie uma vidaprópria, feita à mão.177Esses aspectos rejeitados, desvalorizados e "inaceitáveis" da alma e do self nãoficam simplesmente ali parados nas trevas, mas conspiram para decidir quando ecomo farão uma tentativa para alcançar a liberdade. Eles borbulham ali noinconsciente, em fervilhante ebulição, até que um dia, não importa se a tampa que oscobre esteja bem fechada ou não, explodem em todas as direções num caudaldescontrolado e com vontade própria.Nessas circunstâncias, como dizem no interior, é como tentar pôr dez quilos delama num saco de cinco quilos. O que irrompeu das trevas é difícil de ser controladodepois da explosão. Embora tivesse sido muito melhor ter descoberto um meio devivenciar a alegria proporcionada pelo espírito criativo de modo pleno e consciente,do que tê-la enterrado, às vezes a mulher fica contra a parede, e é esse o resultado.A vida sombria ocorre quando escritoras, pintoras, bailarinas, mães, cientistas,místicas, estudantes ou artífices param de escrever, de pintar, de dançar, de cuidardos filhos, de pesquisar, observar, aprender, praticar. Elas podem parar porqueaquilo a que dedicaram tanto tempo não saiu como esperavam, não obteve oreconhecimento merecido ou por inúmeras outras razões. Quando quem cria párapelo motivo que seja, a energia que chega naturalmente a ela é desviada para omundo oculto, a partir do qual ela vem à tona quando e onde consegue. Como amulher percebe que não pode se dedicar abertamente àquilo que deseja, ela começa alevar uma estranha vida dupla, simulando um comportamento à luz do dia, agindo deoutro modo quando tem a oportunidade.Quando a mulher começa a arrumar a sua vida para que caiba inteira numpequeno embrulho bem-feito, tudo o que consegue é forçar toda a sua energia vitalpara o lado da sombra. "É, estou bem", diz essa mulher. Olhamos para ela do outrolado do quarto ou no espelho. Sabemos que não está bem. Um dia, de repente,alguém nos diz que ela se juntou com um tocador de flautim e fugiu para Tippicanoepara tomar conta de um cassino. Ficamos nos perguntando o que aconteceu porquesabemos que ela detesta flautins e sempre quis ir morar nas ilhas gregas, não emTippicanoe, e nunca chegou a mencionar uma palavra sequer a respeito de cassinos.À semelhança de Hedda Gabler na peça de Henrik Ibisen, a mulher selvagempode fingir que leva uma "vida normal" enquanto range os dentes, mas há sempre umpreço ser pago. Hedda esconde uma vida perigosa e apaixonada, brincando com umex-amante e com a Morte. Por fora, ela parece se contentar em usar chapéus e ouvirseu marido insípido reclamar da monotonia da vida. A mulher pode ser educada atémesmo cínica por fora, enquanto sofre de uma hemorragia interna.Ou ainda, como Janis Joplin, a mulher pode tentar se adequar até nãoconseguir agüentar mais; e então sua natureza criativa, corroída e revoltada por tersido forçada a mergulhar nas sombras, entra em violenta erupção, rebelando-secontra os dogmas da "educação" com atitudes irresponsáveis que desdenham seupróprio talento e sua própria vida.Pode-se dar o nome que se quiser, mas ter uma vida secreta porque a vida realnão tem espaço suficiente para vicejar é prejudicial à vitalidade da mulher. Mulheresfamintas e em cativeiro escondem todo o tipo de coisa: músicas e livros proibidos,amizades, sensações sexuais, sentimentos religiosos. Elas escondem pensamentosfurtivos, sonhos de revolução. Elas roubam tempo dos seus parceiros e das suasfamílias. Escondem dentro de casa um tesouro. Tiram furtivamente o tempo paraescrever, para pensar, para a alma. Elas escondem um espírito no quarto de dormir;um poema antes do trabalho; um carinho ou um abraço quando ninguém estáolhando.Para escapar desse caminho polarizado, a mulher tem de abandonar asimulação. Esconder uma vida interior falsa nunca funciona. Ela sempre explode pela178lateral do pneu, quando menos esperamos. E aí, é a desgraça para todos. E melhorque despertemos, que nos levantemos, por mais caseira que seja nossa plataforma, evivamos com a maior intensidade possível, da melhor maneira possível, deixando delado a ocultação de falsos substitutos. Esperemos pelo que seja realmentesignificativo e saudável para nós.Na história, a menina consegue fazer passar os sapatos pela velha senhora depouca visão. Nesse ponto afirma-se que o próprio sistema de valores rígido eperfeccionista não possui a capacidade de ver bem, de estar alerta para o queacontece ao seu redor. É típico da psique ferida, assim como da cultura nas mesmascondições, não perceber a aflição pessoal do self. E assim a jovem faz mais umaescolha infeliz em meio a uma série de outras.Partamos do pressuposto de que seu primeiro passo para o cativeiro, a entradana carruagem dourada, tenha sido fruto da ignorância. Digamos que o abandono dasua própria criação tenha sido irrefletido, mas característico de quem não temexperiência de vida. Agora, porém, ela quer aqueles sapatos na vitrina do sapateiro e,paradoxalmente, esse impulso em busca de uma nova vida é certo e apropriado, masa verdade é que ela passou muito tempo na casa da velha senhora e, por isso, seusinstintos não dão o alarme quando ela escolhe esse perigo mortal. Na realidade, osapateiro conspira com a menina. Ele pisca e sorri com a sua triste opção. Juntos elesfazem passar os sapatos, sem que a velha perceba.As mulheres iludem-se dessa forma. Elas jogaram fora o tesouro, qualquer queele pudesse ter sido, mas ficam escondendo coisinhas ínfimas sempre que podem.Será que elas escrevem? Escrevem, mas em segredo. E, assim, não têm apoio, nemfeedback. A estudante universitária está procurando se superar? Está, mas sozinha,de tal modo que não pode obter ajuda ou orientação. E o que dizer da mulherambiciosa que finge não o ser, mas que tem uma dedicação sincera a realizações parasi mesma, para sua gente, seu mundo? Ela tem sonhos vigorosos, mas se limita acontinuar lutando em silêncio. É fatal não ter uma confidente, não ter um guia, nãoter nem mesmo uma torcida ínfima.É difícil ocultar fragmentos de vida desse jeito, mas as mulheres o fazem todosos dias. Quando a mulher se sente obrigada a viver às ocultas, ela está pondo parafuncionar um modo de subsistência mínima. Ela oculta a vida para que "eles" nãoouçam, quem quer que "eles" sejam na sua vida. Superficialmente, ela aparentadesinteresse e tranqüilidade mas, sempre que surge uma réstia de luz, sua almaesfaimada dá um salto, persegue a forma de vida mais próxima, alegra-se, dá coices,avança loucamente, dança como uma boba, fica exausta e depois tenta se esgueirar devolta à cela sombria antes que alguém perceba sua ausência.As mulheres infelizes no casamento agem assim. As mulheres forçadas a sesentirem inferiores agem assim. As mulheres cheias de vergonha, as que temem serpunidas, expostas ao ridículo ou à humilhação agem assim. As mulheres cominstintos feridos agem assim. Esconder o que se faz só é bom para a mulher nocativeiro se ela esconder o que for certo, só se o que ela esconder for exatamente oque a levará à libertação. No fundo, o ato de esconder fragmentos de vida que sejamcorajosos, benéficos e que dêem satisfação faz com que a alma fique ainda maisdeterminada a erradicar a mentira para ter a liberdade de viver a vida abertamentecomo bem lhe aprouver.Vejamos. Há algo na alma selvagem que não nos permite sobreviver parasempre com migalhas. Porque na realidade é impossível para a mulher que luta pelaconscientização respirar um pouquinho de ar puro e se contentar com isso só.Lembre-se de quando você era criança e descobriu que era impossível cometersuicídio prendendo a respiração? Embora você procure continuar só com um179pouquinho de ar ou sem ar nenhum, os seus pulmões parecem querer gritar, ealguma força impetuosa e imperativa faz com que você acabe inspirando o máximo dear possível. Você sorve o ar, você o engole, até voltar a respirar normalmente.Felizmente existe um mecanismo semelhante na alma/psique. Ele nos dominae nos força a respirar fundo o ar puro. Na realidade, sabemos que não podemossubsistir de verdade se sorvermos a vida em goles mínimos. A força selvagem na almada mulher exige que ela tenha acesso a tudo. E assim podemos ficar em estado dealerta e assimilar tudo o que for certo para nós.Na história, o sapateiro é um prenúncio do velho soldado, que mais tardetransmite vida aos sapatos que dançam até enlouquecer quem os calça. Há muitospontos coincidentes entre esse personagem e o que sabemos da simbologia antigapara que o consideremos um mero espectador. O predador natural no interior dapsique (e também aquele pertencente à cultura) é um mutante, uma força capaz de sedisfarçar, da mesma forma que as armadilhas, arapucas e iscas envenenadas sãodisfarçadas para seduzir os desavisados. Devemos levar em consideração que eletransforma em brincadeira o ato de enganar a velha senhora.Não, é provável que ele seja cúmplice do soldado, que é obviamente umadescrição do diabo disfarçado.1 4 Nos velhos tempos, o diabo, o soldado, o sapateiro, ocorcunda e outros eram imagens usadas para retratar as forças negativas tanto nanatureza da terra quanto na natureza humana.1 5Embora pudéssemos sentir um orgulho justificado da alma com coragemsuficiente para tentar apanhar secretamente alguma coisa, qualquer coisa, sobcircunstâncias de tamanha carência, a verdade é que essa atitude por si só não podeser o único aspecto da questão. Uma psicologia abrangente deve incluir não só ocorpo, a mente e o espírito, mas também, e de modo idêntico, a cultura e o ambiente.A partir dessa perspectiva, é preciso que perguntemos a cada estágio como acabouacontecendo que qualquer mulher específica tenha a sensação de precisar ser servil,retrair-se, humilhar-se e implorar por uma vida que, para começo de conversa, já lhepertence. Um exame das pressões criadas em cada camada do mundo objetivo e dosubjetivo irá evitar que a mulher imagine ser uma opção construtiva apanhar emsegredo os sapatinhos do diabo.Armadilha no 6: O recuo diante do coletivo, a rebelião na sombraA menina calça os sapatos vermelhos às escondidas, vai até a igreja, não prestanenhuma atenção ao alvoroço ao seu redor, é desprezada pela comunidade. Oshabitantes da aldeia a denunciam. Ela é repreendida. Os sapatos vermelhos sãoretirados. É, porém, tarde demais. Ela foi fisgada. Não se trata ainda de umaobsessão, mas a questão é que o coletivo inspira e reforça sua fome interna ao exigirque ela capitule diante de seus valores estreitos.Pode-se tentar levar uma vida secreta, mas mais cedo ou roais tarde osuperego, um complexo negativo e/ou a própria cultura a atacarão. E difícil esconderalgo proibido que lhe inspira voracidade. É difícil ocultar prazeres furtivos mesmoquando eles não são benéficos.A natureza das culturas e dos complexos negativos consiste em se abater sobrequalquer discrepância entre o consenso sobre o que é o comportamento aceitável e oimpulso divergente do indivíduo. Da mesma forma que algumas pessoas ficamfuriosas com uma única folha caída na entrada de casa, o julgamento negativo semune das suas serras para amputar qualquer membro que não se harmonize com otodo.180Ocasionalmente, o coletivo pressiona a mulher para ser uma santa, ser umapessoa esclarecida, ser politicamente cor-reta, ser controlada, para que cada uma dassuas iniciativas resulte numa obra-prima. Se recuarmos diante do coletivo, cedendoàs pressões no sentido de um conformismo irracional, estaremos protegidas doisolamento, mas, ao mesmo tempo, estaremos também traindo nossas vidasselvagens e as colocando em risco.Há quem pense que já se foi o tempo em que chamar uma mulher de selvagemequivalia a xingá-la. Se ela foi rebelde, ou seja, se agiu de acordo com a natureza doseu self profundo, ela foi classificada de "errada" ou "má". Não é verdade que essetempo já passou. O que mudou foram os tipos de comportamento considerados"descontrolados" no caso das mulheres. Por exemplo, em diversas partes do mundohoje em dia, se uma mulher toma uma posição política, social ou ambientalista, émuito freqüente que suas motivações sejam examinadas para detectar se ela "perdeuo controle", ou seja, se enlouqueceu.Para uma criança selvagem nascida numa comunidade de valores rígidos, aconseqüência normal é a de passar pela vergonha de ser evitada. É uma atitude emque a vítima é tratada como se não existisse. O ostracismo retira da pessoa que dele évítima o interesse espiritual, o amor e outras necessidades psíquicas. A idéia é deforçar a vítima a se ajustar, e se isso não acontecer, destruí-la espiritualmente e/ouexpulsá-la da aldeia para que definhe e morra nos ermos.Se uma mulher é repudiada, quase sempre isso ocorre porque ela fez algo ouestá a ponto de fazer algo relacionado ao selvagem, freqüentemente algo tão simplesquanto a expressão de uma crença ligeiramente diversa da corrente ou quanto o usode uma cor não-aprovada — questões insignificantes assim como questões maiores.Precisamos lembrar que não se trata de a mulher reprimida se recusar a se ajustar,mas ela não poder se ajustar sem morrer. Sua integridade espiritual está em jogo, eela tentará se livrar de todas as formas possívei0ls, mesmo daquelas que a coloquemem risco.Temos um exemplo recente. De acordo com a CNN, no início da Guerra doGolfo, as mulheres muçulmanas da Arábia Saudita, proibidas de dirigir por motivosreligiosos, entraram nos carros e saíram dirigindo. Depois da guerra, as mulheresforam levadas a tribunais que condenaram seu comportamento e, finalmente, apósmuitos interrogatórios e censuras, libertaram as mulheres para a custódia dos seuspais, irmãos ou maridos, que tiveram de prometer mantê-las sob controle no futuro.É um caso em que a marca de vida transmitida e propiciada pela mulher nummundo louco é definida como escandalosa, insensata e descontrolada. Ao contrárioda menina na história, que permite que a cultura circundante a empurre parasituações ainda mais áridas, às vezes a única alternativa a adotar diante de umacoletividade ressequida consiste em perpetrar um ato impregnado de coragem. Esseato não tem necessariamente de provocar um terremoto. A coragem significa seguir ocoração. Há milhões de mulheres que realizam atos de enorme coragem todos os dias.Não é só o ato singular que reformula uma coletividade encarquilhada, mas tambéma continuidade desses atos. Como me disse uma vez uma monja budista, "A águaconsegue furar a pedra".Além disso, existe um aspecto muito oculto na maioria dos grupos queestimula a repressão à vida criativa, profunda e selvagem das mulheres: o estímulointerno a uma cultura para que as mulheres se denunciem umas às outras esacrifiquem suas irmãs (ou seus irmãos) a restrições que não refletem os valores danatureza feminina. Essas restrições abrangem não só o incentivo a que uma mulherdenuncie uma outra, expondo-a a punições por se comportar de um modo feminino epleno, por registrar um horror adequado às circunstâncias ou a discordância quanto a181alguma injustiça, como também o estímulo a que as mulheres mais velhas sejamcúmplices nas violências físicas, mentais e espirituais perpetradas contra as maisjovens, indefesas ou menos poderosas, aliado ao incentivo às mulheres mais jovensno sentido de que ignorem e desdenhem as necessidades de mulheres que sejammuito mais velhas do que elas.Quando a mulher se recusa a dar apoio à coletividade árida, ela está serecusando a reprimir seu raciocínio selvagem, e seus atos seguem o mesmo caminho.A história dos sapatinhos vermelhos na sua essência nos ensina que a psiqueselvagem precisa ser devidamente protegida — através de uma inequívoca valorizaçãode nós mesmas, com uma defesa veemente dos seus interesses, com uma recusa a sesubmeter a situações psíquicas pouco saudáveis. Aprendemos, também, que o ladoselvagem, por sua energia e beleza, está sempre na mira de alguém, de algumainstituição, de algum grupo, seja com o objetivo de transformá-lo em troféu, seja como objetivo de submetê-lo a limitação, alteração, domínio, eliminação, reformulaçãoou controle. O lado selvagem precisa sempre de um guarda junto ao portão, oupoderá ser utilizado para fins impróprios.Quando o coletivo é hostil à vida natural da mulher, em vez de aceitar osrótulos desrespeitados ou pejorativos que lhe são aplicados, ela pode e deve, como opatinho feio, resistir, agüentar e procurar aquilo a que ela pertence — epreferivelmente sobreviver a quem a rejeitou, vicejando e criando mais do que eles.O problema com a menina dos sapatinhos vermelhos está em que ela, em vezde se fortalecer para a luta, está na terra dos sonhos, encantada pela seduçãodaqueles sapatos vermelhos. O que há de mais importante na rebeldia é a forma queela assume para ser eficaz. O fascínio da menina pelos sapatinhos vermelhos narealidade impede uma rebeldia significativa, uma que promova a mudança, quetransmita uma mensagem, que provoque um despertar.Eu gostaria de poder afirmar que a esta altura não existem mais todas essasarmadilhas para as mulheres, ou que elas já estão tão calejadas que detectam essasarmadilhas de longe. No entanto, isso não acontece. Nós ainda temos o predador nanossa cultura, e ele ainda tenta sabotar e destruir toda a conscientização e todas astentativas de alcançar a totalidade. Há uma grande verdade no ditado de que epreciso batalhar de novo pela liberdade a cada vinte anos. Às vezes, a impressão é deque é preciso lutar por ela a cada cinco minutos.No entanto, a natureza selvagem nos ensina que devemos enfrentar os desafiosà medida que eles se apresentem. Quando os lobos são atormentados, eles não saemdizendo, "Ah, não! De novo!!!" Eles saltam, investem, correm, desaparecem, fingem-se de mortos, pulam na garganta do agressor, fazem o que tiver de ser feito. Portanto,não podemos ficar escandalizadas com a existência de entropia, deterioração, temposdifíceis. É preciso compreender que as armadilhas preparadas para capturar a alegriada mulher irão sempre se alterar e mudar de aparência, mas na nossa próprianatureza selvagem nós iremos encontrar a energia absoluta, a libido exigida por todosos atos de coragem que forem necessários.Armadilha no 7: A simulação, a tentativa de ser boa, a trivialização doanormalSegundo a história, a menina é punida por usar os sapatos vermelhos para ir àigreja. Agora, embora ela fique olhando para os sapatos no alto da prateleira, ela nãoos toca. Até então ela tentou sem sua vida profunda, o que não funcionou. Emseguida, ela tentou ocultar uma vida dupla, o que também não funcionou. Agora,num último recurso, ela "tenta ser boazinha".182O problema com a decisão de "ser boazinha" está em que essa atitude nãoresolve a questão sombria subjacente, e mais uma vez ela se erguerá como umtsunami, como uma onda gigantesca, que desce veloz, destruindo tudo o que estiver àfrente. Ao "ser boazinha", a mulher fecha os olhos a tudo que for empedernido,deformado ou maléfico à sua volta e simplesmente tenta "conviver" com essesaspectos. Seus esforços no sentido de aceitar esse estado anormal prejudicam aindamais seus instintos selvagens para reagir, mostrar, mudar, combater o que não estácerto, o que não é justo.Anne Sexton escreveu sobre o conto de fadas dos sapatinhos vermelhos umpoema a que deu o mesmo título.I stand in the ringin the dead cityand tie on the red shoes...They are not mine.They are my mother's.Her mother's before.Handed down like an heirloombut hidden like shameful letters.The house and the street where they belongare hidden and all the women, too,are hidden...*Tentar ser boa, disciplinada e submissa diante do perigo interno ou externo,ou a fim de esconder uma situação crítica psíquica ou no mundo objetivo, elimina aalma da mulher. É uma atitude que a isola do que sabe; que a isola da sua capacidadede agir. Como a criança na história, que não expressa em voz alta suas objeções, quetenta esconder sua privação, que tenta dar a impressão de que nada está dentro dela,as mulheres modernas passam pela mesma perturbação, a trivialização do que éanormal. Esse distúrbio está disseminado em todas as culturas. A trivialização doanormal faz com que o espírito, que em circunstâncias normais saltaria para corrigira situação, afunde no tédio, na complacência e acabe, como a velha senhora, nacegueira.Existe um importante estudo que esclarece a perda do instinto de autodefesanas mulheres. No início da década de 1960, alguns cientistas1 6 realizaramexperiências com animais para tentar determinar algo a respeito do "instinto de fuga"nos seres humanos. Numa das experiências, eles fizeram uma instalação elétrica nametade direita de uma grande jaula, de modo que um cão preso nela recebesse umchoque cada vez que pisasse no lado direito. O cão aprendeu rapidamente apermanecer no lado esquerdo da jaula.Em seguida, o lado esquerdo da jaula recebeu o mesmo tipo de instalação, quefoi desligada no lado direito. O cão logo se reorientou, aprendendo a ficar no ladodireito da jaula. Então, todo o piso da gaiola foi preparado para dar choquesaleatórios, de tal modo que, onde quer que o cão estivesse parado ou deitado, eleacabaria levando um choque. Ele a princípio aparentou estar confuso e depois entrou*Estou parada na arena / na cidade morta / e calço os sapatos vermelhos... / Eles não são meus. / Sãoda minha mãe. / Da mãe dela antes. / Passados de mãe para filha como bens da família / masescondidos como cartas vergonhosas. / A casa e a rua às quais pertencem / estão ocultas e todas asmulheres, também, / estão ocultas... (N. da T.)183em pânico. Finalmente, o cão desistiu^ se deitou, aceitando os choques à medida quesurgissem, sem tentar fugir deles ou descobrir de onde viriam.No entanto, a experiência não estava encerrada. No próximo passo, a jaula foiaberta. Os cientistas esperavam que o cão saísse dali correndo, mas ele não fugiu.Muito embora pudesse abandonar a jaula quando bem entendesse, ele ficou alideitado recebendo os choques aleatórios. A partir dessa experiência, os cientistaslevantaram a hipótese de que, quando um animal é exposto à violência, eleapresentará a tendência a se adaptar a essa perturbação, de tal forma que, quando aviolência pára ou ele tem acesso à liberdade, o instinto saudável de fugir éextremamente reduzido, e em vez de escapar o animal fica paralisado.1 7Em termos da natureza selvagem das mulheres, é essa trivialização daviolência, assim como o que os cientistas subseqüentemente denominaram"aprendizado da impotência", que não só influencia as mulheres a ficar com parceirosalcoólatras, patrões exploradores e grupos que se aproveitam delas e as importunam,mas também faz com que elas se sintam incapazes de se erguer para apoiar aquilo emque acreditam profundamente: sua arte, seu amor, seu estilo de vida, sua preferênciapolítica.A trivialização do que é anormal, mesmo quando existem claros indícios deque essa atitude seja prejudicial a nós mesmas,1 8 aplica-se a todos os maus-tratosinfligidos às naturezas instintiva, espiritual, criativa, emocional e física. As mulheresenfrentam essa questão sempre que são desorientadas de modo a fazer qualquer coisaque não seja a defesa da sua vida profunda de projeções invasivas, culturais,psíquicas ou de outra natureza.Em termos psíquicos, nós nos acostumamos aos golpes dirigidos às nossasnaturezas selvagens. Nós nos adaptamos à violência perpetrada contra a naturezaselvagem e sábia da Psique. Tentamos ser boazinhas enquanto trivializamos oanormal. Perdemos, conseqüentemente, nosso poder de fuga. Perdemos nosso poderde lutar pelos elementos da alma e da vida que mais valorizamos. Quando estamosobcecadas pelos sapatinhos vermelhos, todo tipo de fato importante do ponto de vistacultural, pessoal ou ambiental é deixado de lado.Há uma tal perda de significado quando renunciamos à vida feita à mão que épermitida toda sorte de danos à psique, à natureza, à cultura, à família e assim pordiante. Os danos à natureza são concomitantes com o desnorteamento da psique dosseres humanos. A natureza e a psique não são separadas e não podem ser assimconsideradas. Quando um grupo fala nos erros da vida selvagem e um outro grupoalega que a vida selvagem foi, sim, vítima, há algo de radicalmente errado nisso tudo.Na psique instintiva, a Mulher Selvagem contempla do alto a floresta e vê nela um larpara si mesma e para todos os seres humanos. Outros podem, porém, olhar a mesmafloresta e imaginá-la sem nenhuma árvore, enquanto seus bolsos estão abarrotadosde dinheiro. Essas circunstâncias representam graves fendas na capacidade de viver edeixar viver para que todos possam viver.Quando eu era menina, na década de 1950, nos primeiros tempos dastragédias industriais destruidoras da Terra, uma barcaça de petróleo afundou nabacia de Chicago do lago Michigan. Depois de um dia na praia, as mães esfregavamseus filhinhos com a força que geralmente reservavam para os pisos de madeira,porque as crianças estavam imundas com manchas de óleo.O desastre fez vazar uma substância pegajosa que se espalhou numa finacamada, como enormes ilhas flutuantes, tão extensas e largas quanto um quarteirãode cidade. Quando essas "ilhas" colidiam com o cais, elas se partiam em gotículas queafundavam na areia e chegavam à praia por baixo das ondas. Durante anos a fio, osbanhistas não podiam nadar sem saírem emporcalhados. Crianças que construíssem184castelos na areia de repente escavavam sem querer um punhado de óleo viscoso. Osnamorados não podiam mais rolar na areia. Os cães, as aves, a vida aquática e osseres humanos, todos sofreram. Lembro-me de que minha impressão era a de que aminha catedral havia sido bombardeada.O dano ao instinto, a trivialização do anormal, foi o que permitiu que aquelasmães limpassem as manchas do derramamento de petróleo, e mais tarde, de outrospecados cometidos por fábricas, refinarias e siderúrgicas, da pele dos seus filhinhos,da sua roupa, de dentro do corpo dos seus amados da melhor maneira possível e,embora confusas e preocupadas, elas conseguiram efetivamente podar sua raivajustificada. Nem todas, mas a maioria delas já estava acostumada a não ser capaz deinterferir em acontecimentos chocantes. Havia punições assustadoras para a quebrado silêncio, para a fuga da jaula, para quem identificasse injustiça, para quem exigissemudanças.Podemos concluir, a partir de acontecimentos semelhantes ocorridos durantenossa vida, que, quando as mulheres não falam, quando é insuficiente o número depessoas a falar, a voz da Mulher Selvagem se cala e, com isso, o mundo também secala de tudo que é natural e selvagem. Acabam também se calando os lobos, ursos eaves de rapina. Os cantos, danças e criações. O amar, consertar e manter. O ar, a águae as vozes da consciência.No entanto, naquela época, muito embora as mulheres estivessem todascontaminadas pelo anseio de uma liberdade ilimitada, elas continuavam a passardetergente na louça, a usar produtos cáusticos na limpeza, permanecendo, naspalavras de Sylvia Plath, "atadas às máquinas de lavar roupa Bendix". Nelas, asmulheres lavavam e enxaguavam suas roupas em água quente demais para o contatocom a pele e sonhavam com um mundo diferente.1 9 Quando os instintos estão feridos,os seres humanos trivializam uma agressão após a outra, atos de injustiça edestruição que afeiam a elas mesmas, à sua prole, aos seres amados, à sua terra e atémesmo aos seus deuses.Com a recuperação do instinto ferido, rejeita-se essa trivialização do que érevoltante e violento. À medida que o instinto se restaura, a Mulher Selvagemretorna. Em vez de entrar dançando na floresta usando os sapatos vermelhos até quetoda a sua vida passe a ficar torturada e desprovida de significado, podemos voltar àvida feita à mão, à vida plenamente atenta, podemos refazer os nossos própriossapatos, caminhar o nosso caminho, falar a nossa própria fala.Embora seja verdade que há muito a se aprender com a dissolução das nossasprojeções (você é perverso, você me magoa) e com o exame de como somos perversascom nosso próprio self, como magoamos a nós mesmas, definitivamente esse nãodeveria ser o final da investigação.A armadilha escondida dentro da armadilha consiste em Pensar que tudo estáresolvido com a dissolução da projeção e com a descoberta da conscientização em nósmesmas. Isso às vezes é verdade; e às vezes não. Em vez de aplicar esse paradigma deexclusão — ou há algo de errado lá fora, ou algo de errado comigo — é mais útilaplicar um modelo de acréscimo. Essa é a questão interna, e essa é a questão externa.Esse paradigma permite um exame completo e é muito mais saudável em todos ossentidos. Esse paradigma dá apoio às mulheres para que questionem o status quocom confiança e para que não olhem apenas para si mesmas mas também para omundo que as está pressionando por acaso, inconscientemente de propósito. Oparadigma do acréscimo não se destina a ser usado como um modelo para atribuirculpa a si mesma ou a outros, mas é, sim, um meio de avaliar e julgar aresponsabilidade, tanto interna quanto externa, e o que precisa ser alterado,procurado, esboçado. Ele impede a fragmentação da mulher que procura restaurar185tudo que está ao seu alcance, sem negligenciar suas necessidades e sem se isolar domundo.Não se sabe como muitas mulheres conseguem se manter nesse estado, maselas estão vivendo uma vida pela metade, um quarto de vida ou uma fração aindamais ínfima. Elas conseguem, mas podem ficar amarguradas até o final dos seus dias.Elas podem se sentir sem esperanças e muitas vezes, como um bebê que chorou echorou sem que nenhuma ajuda humana se oferecesse, elas podem adotar umsilêncio mortal, desesperançado. Seguem-se o cansaço e a resignação. A jaula estátrancada.Armadilha no 8: A dança descontrolada, a obsessão e dependênciaA velha senhora cometeu três erros de avaliação. Embora no nível do idealespere-se que ela seja o guardião, o guia da psique, ela está cega demais para ver averdadeira natureza dos sapatos pelos quais ela própria pagou. Ela é incapaz deperceber que a menina ficou encantada por eles ou mesmo de detectar o caráter dohomem de barba ruiva que está esperando perto da igreja.O velho de barba ruiva tamborilou nas solas dos sapatos da menina, e avibração dessas cócegas pôs os pés da menina a dançar. Ela dança agora, ah, comodança, só que não consegue parar. Tanto a velha senhora, que supostamente deveriaagir como guardião da psique, quanto a menina, que deveria exprimir a alegria dapsique, estão completamente desvinculadas de todo instinto e bom senso.A menina já tentou tudo: adaptar-se à velha senhora, não se adaptar, serdissimulada, "ser boazinha", perder o controle e sair dançando, dominar-se e tentarvoltar a ser boazinha. Nesse ponto, sua terrível privação do espírito e do significadomais uma vez a força a apanhar os sapatinhos vermelhos, a calçá-los e a começar suaúltima dança, a dança que a levará para o vazio da inconsciência.Ela trivializou uma vida árida e cruel, instalando, com isso, na sua sombra umanseio ainda maior pelos sapatos da loucura. O homem de barba ruiva transmitiuvida a alguma coisa, mas não à menina: aos sapatos torturantes. A menina começaentão a desperdiçar sua vida num redemoinho que, como qualquer tipo dedependência, não gera a abundância, esperança ou felicidade mas, sim, trauma, medoe esgotamento. Para ela não há descanso.Quando ela tenta entrar rodopiando no adro de uma igreja, há ali um espíritoguardião que não lhe permite a entrada. O espírito lança-lhe a seguinte maldição:"Você irá dançar com esses sapatos vermelhos até que fique como uma alma penada,como um fantasma, até que sua pele pareça suspensa dos ossos, até que não sobrenada de você a não ser entranhas dançando. Você irá dançar de porta em porta portodas as aldeias e baterá três vezes a cada porta. E, quando as pessoas espiarem quemé, verão que é você e temerão que seu destino se abata sobre elas. Dancem, sapatosvermelhos. Vocês devem dançar." O espírito guardião a encerra, portanto, numaobsessão que é análoga a uma dependência física.A vida de muitas mulheres criativas seguiu esse modelo. Quando eraadolescente, Janis Joplin tentou se adaptar aos costumes da sua cidadezinha. Maistarde, ela se rebelou um pouco, escalando os morros à noite e cantando lá de cima,andando na companhia de "artistas". Depois que seus pais foram chamados à escolapara dar conta do comportamento da filha, ela começou uma vida dupla, agindo nasuperfície com modéstia, mas atravessando escondida a fronteira para ouvir Jazz. Elaentrou para a universidade, adoeceu gravemente em virtude da dependência àsdrogas, "recuperou-se" e tentou levar uma vida normal. Aos poucos, ela voltou abeber, formou uma pequena banda, envolveu-se com drogas e assumiu de vez os186sapatos vermelhos. Ela dançou e dançou até morrer de overdose aos vinte e sete anosde idade.Não foi a música, o canto nem a vida criativa finalmente liberada de JanisJoplin que a mataram. Foi a falta de instinto para reconhecer as armadilhas, parasaber quando basta, para criar limites para a defesa da saúde e do bem-estar, paraentender que os excessos quebram alguns ossinhos psíquicos, depois outros maiores,até que finalmente todo o esqueleto de sustentação da psique cai por terra e a pessoavira uma massa amorfa em vez de uma força poderosa.Ela precisava somente de uma sábia imagem interna à qual pudesse se agarrar,um resquício de instinto que durasse até que ela pudesse dar início ao longo trabalhode reformulação do instinto e da percepção íntima. Ela só precisava dar ouvidos à vozselvagem que vive dentro de todas nós, a que sussurra, "fique aqui o bastante... fiqueo tempo necessário para reanimar sua esperança, para abandonar seu sangue-frioterminal, para renunciar a meias-verdades defensivas, para se insinuar, para abrircaminho com precisão ou com violência; fique aqui o suficiente para ver o que é bompara você, para se fortalecer, para fazer aquela tentativa que terá sucesso; fique aqui osuficiente para completar a corrida, não importa quanto tempo demore ou de queforma isso ocorra".A dependênciaNão é a alegria da vida que mata o espírito da menina na história dossapatinhos vermelhos; é a sua falta. Quando a mulher não tem consciência da própriaprivação, das conseqüências do uso de veículos e substâncias mortíferas, ela estádançando, dançando sem parar. Sejam eles o negativismo, os relacionamentosinfelizes, as situações de exploração, sejam eles as drogas ou o álcool — eles são comoos sapatos vermelhos; é dificílimo livrar a pessoa deles depois que eles se instalaram.Nessa dependência compensatória dos excessos, a velha senhora da psiquedesempenha um papel importantíssimo. Ela foi cega como ela só. Agora adoece. Ficaimóvel, deixando um perfeito vazio na psique. Agora não há mais ninguém para daruns conselhos à psique desvairada. A velha senhora acaba morrendo mesmo, nãodeixando absolutamente nenhum local seguro na psique. E a menina dança. Aprincípio, ela vira os olhos de êxtase mas, logo, quando os sapatos a deixam exaustade tanto dançar, seus olhos viram de horror.Dentro da psique selvagem estão os instintos de sobrevivência mais ferozes decada mulher. No entanto, a menos que ela pratique sua liberdade interna e externacom regularidade, a submissão, a passividade e o tempo passado no cativeiroembotam seus dons inatos de visão, de percepção, confiança e outros, aqueles de queela precisa para ser independente.A natureza instintiva nos diz quando basta. Ela é prudente e protege a vida. Amulher não pode compensar toda uma vida de traições e mágoas entregando-se aexcessos de prazer, de raiva ou de rejeição. Espera-se que a velha senhora na psiquemarque o tempo, espera-se que ela diga quando. Nessa história, a velha senhora estáliquidada, arrasada.Para nós é às vezes difícil perceber quando estamos perdendo os nossosinstintos, pois com muita freqüência trata-se de um processo insidioso que não secompleta num único dia, mas que se estende por um longo período. Da mesmaforma, a perda ou amortecimento do instinto é muitas vezes apoiada pelo ambientecultural, e ocasionalmente até por outras mulheres que suportam a perda do instintocomo um meio de corroborar o fato de pertencerem a uma cultura que não mantémum habitat propício à mulher natural.2 0187A dependência começa quando a mulher perde sua vida feita à mão e cheia designificado e passa a ter uma fixação em resgatar de qualquer forma qualquer coisaque lembre essa vida. Na história, a menina insiste em tentar se reunir aos diabólicossapatos vermelhos, muito embora eles cada vez mais a façam perder o controle. Elaperdeu seu poder de discriminação, sua capacidade de perceber a verdadeiranatureza das coisas. Devido à perda da sua vitalidade original, ela se dispõe a aceitarum substituto fatal. Na psicologia analítica, diríamos que ela abdicou do Self.A dependência e a ferocidade estão relacionadas. A maioria das mulheresesteve em cativeiro pelo menos por um curto período, e algumas por um tempointerminável. Algumas só foram livres in utero. Todas perdem parte do instintodurante esse período. Em algumas, fica prejudicado o instinto a respeito de quem éuma boa pessoa, e com freqüência essa mulher é induzida ao erro. Em outras, acapacidade de reagir à injustiça se vê radicalmente reduzida, e elas muitas vezes setransformam em mártires relutantes, prontas para a retaliação. Em outras ainda, oinstinto de fugir ou enfrentar é enfraquecido, e elas se transformam em vítimas. Alista ainda continua. Por outro lado, a mulher em pleno uso de sua mente selvagemrejeita as convenções que não sejam propícias nem sensatas.A dependência de substância química é uma verdadeira armadilha. As drogas eo álcool são muito parecidos com um amante violento que nos trata bem a princípio edepois nos espanca; pede desculpas, é gentil por algum tempo e de repente volta anos espancar. A armadilha consiste em tentar ficar, levando em conta o lado bom,enquanto procuramos ignorar o lado negativo. Isso está errado. Nunca poderiafuncionar.Janis Joplin começou também a realizar os desejos selvagens de outraspessoas. Ela assumiu uma presença arquetípica que os outros não tinham coragemsuficiente para assumir. Eles aplaudiam nela a rebeldia como se ela pudesse libertá-los sendo selvagem no lugar deles.Janis fez mais uma tentativa de se adequar antes de começar seu longomergulho no comportamento obsessivo. Ela se juntou às fileiras de outras mulheresvigorosas, porém feridas, que se descobriram funcionando como xamãs para asmassas. Elas, também, ficaram exaustas e caíram dos céus. Frances Farmer, BillieHoliday, Anne Sexton, Sylvia Plath, Sara Teasdale, Judy Garland, Bessie Smith, EdithPiaf e Frida Kahlo — é triste que a vida das nossas figuras-modelos de mulheresselvagens e artísticas preferidas tenha terminado de forma trágica e prematura.Uma mulher braba não tem força suficiente para assumir, no lugar de todomundo, um arquétipo extremamente almejado sem entrar em colapso. A mulherbraba está em processo de cura. Não costumamos pedir a um convalescente quecarregue um piano escada acima. A mulher que está voltando precisa ter tempo parase fortalecer.As pessoas que são apanhadas e levadas pelos sapatos vermelhos semprecomeçam pensando que qualquer substância da qual estejam dependentes representauma forma ou outra de salvação. Às vezes isso lhes dá uma sensação de poderfantástico, ou uma falsa sensação de que têm energia para ficar acordadas a noiteinteira, para criar até o amanhecer, para ficar sem comer. Ou talvez a dependênciapermita que elas durmam sem temer demônios internos, acalme seus nervos, ajude aque elas não se importem tanto com tudo aquilo com que tanto se importam ou,talvez, as ajude a não querer mais amar nem ser amada. No entanto, no final dascontas, a dependência só cria, como vemos na história, uma paisagem borrada quegira com tal velocidade que no fundo não se está vivendo uma vida de verdade. Adependência2 1 é uma Baba Yaga enlouquecida que devora crianças perdidas e as deixaà porta do carrasco.188Na casa do carrascoA tentativa de tirar os sapatos, tarde demaisQuando a natureza selvagem quase foi exterminada, nos casos mais extremos,é possível que uma deterioração esquizóide e/ou uma psicose possam dominar amulher.2 2 De repente ela pode simplesmente ficar na cama, recusar-se a se levantar,vaguear de um lado para outro de roupão, esquecer distraída cigarros acesos, três emcada cinzeiro, chorar sem conseguir parar, passear descabelada pelas ruas,abandonar a família de repente para vaguear por aí. Ela pode ter tendências suicidas;ela pode se matar acidentalmente ou de propósito. No entanto e muito mais comum éo fato de a mulher simplesmente ficar entorpecida. Ela não se sente nem bem nemmal; apenas não sente nada.E o que acontece com a mulher quando suas vibrantes cores psíquicas sãomescladas? O que acontece quando se misturam o vermelho-escarlate, o azul-safira eo amarelo-topázio? Os pintores sabem. Quando alguém mistura cores vibrantes, oresultado é uma cor chamada lama. Não a lama que é fértil, mas uma lama que éestéril, sem cor, estranhamente pálida, que não emite luz. Quando o pintor cria lamana tela, ele precisa começar tudo de novo.Essa é a parte difícil; é aí que os sapatos têm de ser arrancados à força. Dói omovimento de se isolar da dependência destrutiva. Ninguém sabe por quê. Seria de seesperar que as pessoas sentissem alívio. Seria de se esperar que elas se sentissemsalvas no último instante. Seria de se esperar que elas se alegrassem. Mas não, elasentram em pânico, ouvem dentes rangendo e descobrem que são os seus própriosdentes que fazem esse barulho. Sentem que estão sangrando de certo modo, apesarde não se ver nenhum sangue. No entanto, é essa dor, essa separação, essa situaçãode não ter em que se afirmar, de não ter uma casa para onde voltar, é exatamente issoque é necessário para recomeçar, para voltar à vida feita à mão, aquela elaborada pornós com cuidado e atenção a cada dia.É, a dor chega quando a pessoa se vê separada dos sapatinhos vermelhos. Essaseparação é, porém, a nossa única esperança. Ela vem repleta de bênçãosincondicionais. Os pés vão crescer de novo; vamos descobrir nosso próprio caminho;vamos nos recuperar; um dia vamos voltar a correr, saltar e pular. Quando issoacontecer, a nossa vida feita à mão estará pronta. Nós a assumiremos e nosencheremos de espanto por termos tido a sorte de ter mais uma oportunidade.O retorno à vida feita à mão, a cura dos instintos feridosQuando um conto de fadas termina como esse, com a morte ou a mutilação doprotagonista, nós nos perguntamos como o fim poderia ter sido diferente.Em termos psíquicos, é bom criar um local intermediário, uma estaçãosecundária, um lugar bem-escolhido, quando se escapa da fome. Não é demais tirarum ano ou dois, para avaliar os nossos ferimentos, procurar orientação, ministrar osmedicamentos, meditar sobre o futuro. Um ano ou dois é um tempo limitado. Amulher braba é aquela que está tentando voltar. Ela está aprendendo a acordar, aprestar atenção, a parar de ser ingênua, desinformada. Ela apanha a vida naspróprias mãos. Para reaprender os instintos femininos profundos, é essencial, paracomeçar, que se veja como eles foram destituídos.Quer os danos tenham sido sofridos pela sua arte, pelas suas palavras, estilosde vida e pensamentos, quer pelas suas idéias, e se você tiver tricotado um pulôver de189muitas mangas para si mesma, acabe com esse emaranhado e siga adiante. Para alémdos anseios e desejos, para além dos métodos cuidadosamente ponderados queadoramos discutir e urdir, há uma simples porta à espera de que a cruzemos. Dooutro lado, há pés novos. Vá até lá. Rasteje até lá se for necessário. Pare de falar e dese atormentar. Simplesmente aja.Não temos controle sobre quem nos põe neste mundo. Não podemosinfluenciar a fluência com a qual nos criam; não podemos forçar a cultura a se tomarhospitaleira instantaneamente. No entanto, as boas notícias consistem em podermosreviver nossas vidas, mesmo depois de feridas, mesmo num estado feroz, mesmo queestejamos no cativeiro.O projeto psicológico para voltar ao nosso self de direito é o seguinte: tenhaextrema prudência e cuidado no sentido de se soltar aos poucos na selva, instalandouma estrutura ética ou de proteção com a qual você tenha acesso a meios para medirse há um excesso de alguma coisa. (Geralmente você já é bastante sensível paradetectar quando há falta de alguma coisa.)Portanto, a volta à psique livre e selvagem deve ser empreendida com ousadia,mas também com ponderação. Em psicanálise, gostamos de dizer que, para quealguém possa realmente ajudar/promover curas, é tão importante aprender o quenão fazer quanto o que fazer. A volta ao estado selvagem depois do cativeiro exige asmesmas precauções. Examinemos esse movimento mais de perto.As armadilhas, arapucas e iscas envenenadas deixadas para a mulher selvagemsão específicas à sua cultura. Relacionei aqui algumas que são comuns à maioria dasculturas. Mulheres com formações religiosas e étnicas diversas terão outros insightsespecíficos. O que estamos compondo é um mapa da floresta que habitamos, ondemoram os predadores e qual é seu modus operandi. Diz-se que uma única lobaconhece cada criatura do seu território num raio de quilômetros. É esseconhecimento que lhe permite viver com a maior liberdade possível.A recuperação do instinto perdido e a cura do instinto ferido estão realmenteao nosso alcance, pois tudo volta quando a mulher presta mais atenção, ouvindo,olhando e pressentindo o mundo ao seu redor e, depois, agindo como vê os outrosagindo, com competência, eficácia e dedicação. A oportunidade de observar outrosque tenham instintos intactos é vital para esse resgate. Com o tempo, a observação, aatenção e o comportamento integrado transformam-se num modelo de ritmopróprio, um ritmo que se pratica até que ele seja reaprendido e volte a se tornarautomático.Se a nossa natureza selvagem foi ferida por alguma coisa, nós nos recusamos anos deitar para morrer. Nós nos recusamos a trivializar esse ferimento. Invocamos osnossos instintos e fazemos o que tem de ser feito. A Mulher Selvagem é, por natureza,veemente e talentosa. No entanto, por ter sido separada dos seus instintos, ela étambém ingênua, acostumada à violência, adaptável a ficar isolada tanto do paiquanto da mãe. Os amantes, as drogas, a bebida, o dinheiro, a fama e o poder nãotêm como abrandar os danos sofridos. No entanto, uma volta gradativa à vidainstintiva tem condição de fazer isso. Para tal, a mulher precisa de uma mãe, umamãe selvagem "boa o suficiente". E adivinhem quem está esperando para ser essamãe? A Mulher Selvagem gostaria de saber o que está fazendo com que você demoretanto para chegar até ela, para realmente estar com ela, não apenas de vez emquando, mas com regularidade.Se você estiver lutando para fazer algo a que dê valor, é importantíssimo que secerque de pessoas que dêem apoio inequívoco ao seu trabalho. É tanto umaarmadilha quanto um veneno ter supostos amigos que sofrem dos mesmos males masnão têm nenhum desejo verdadeiro de se curar. Esses tipos de amigos incentivam a190pessoa a agir de modo escandaloso, fora dos seus ciclos naturais, fora de sincroniacom suas necessidades profundas.Uma mulher braba não pode se dar o luxo de ser ingênua. Por estar voltando àsua vida inata, ela deve considerar os excessos com um olhar cético e ficar alerta paraos custos que eles representam para a alma, a psique e o instinto. Como os filhotes delobo, vamos decorar as armadilhas, como são feitas e de que modo são armadas. Édessa forma que permanecemos livres.Mesmo assim, os instintos não recuam sem deixar ecos e rastros desentimento, que podemos seguir para resgatá-los.Embora uma mulher possa estar presa às garras de veludo da propriedade edas restrições, quer ela esteja a um passo da destruição decorrente dos excessos, quertenha apenas começado a mergulhar neles, ela ainda assim ouve os sussurros do deusselvagem no seu sangue. Mesmo nas piores circunstâncias, como as descritas nahistória dos sapatinhos vermelhos, até os instintos mais prejudicados podem sercurados.Para corrigir tudo isso, vamos ressuscitar a Mulher Selvagem na nossanatureza inúmeras vezes, sempre que o pêndulo estiver muito inclinado numadireção ou na outra. Vamos saber quando há motivos para preocupação, pois emgeral o equilíbrio amplia a nossa vida enquanto o desequilíbrio a limita.Uma das coisas mais importantes que podemos fazer é compreender a vida,toda a vida, como um corpo vivo em si, provido de respiração, de renovação decélulas, mudança de pele e resíduos. Seria tolice se imaginássemos que o nosso corponão tivesse resíduos mais de uma vez a cada cinco anos. Seria um absurdo pensarque, só porque comemos ontem, não deveríamos ter fome hoje.Trata-se de um disparate idêntico imaginar que, uma vez solucionada umaquestão, ela permanece resolvida; que, depois que aprendemos algo, continuamosconscientes disso para todo o sempre. Não, a vida é um imenso organismo que crescee diminui em áreas diferentes, com ritmos diferentes. Quando somos como o corpo,dedicando-nos ao crescimento, atravessando as piores situações, apenas respirandoou descansando, estamos muito vivas, estamos imersas nos ciclos da MulherSelvagem. Se pudéssemos perceber que a tarefa consiste em continuar trabalhando,seríamos muito mais brabas e muito mais pacíficas.Para manter a nossa alegria, às vezes temos de lutar por ela. Temos de nosfortalecer e ir fundo, combatendo da forma que considerarmos mais astuta. A fim denos prepararmos para o sítio, podemos ter de abdicar de muitos confortos por algumtempo. Podemos viver sem a maioria das coisas por longos períodos, praticamentesem qualquer coisa, mas não sem a nossa alegria, não sem aqueles sapatos vermelhosfeitos à mão.O verdadeiro milagre da individuação e resgate da Mulher Selvagem está emque todas nós começamos o processo antes de estarmos prontas, antes de termos aforça suficiente, o conhecimento suficiente. Começamos um diálogo compensamentos e sentimentos que tanto nos tocam com delicadeza quanto trovejaradentro de nós. Reagimos antes de saber falar a língua, antes de saber as respostas eantes de saber exata-mente com quem estamos falando.No entanto, à semelhança da mãe loba que ensina seus filhotes a caçar e a tercuidado, é essa a forma pela qual a Mulher Selvagem ganha corpo através de nós.Começamos a falar com a sua voz, adotando seu ponto de vista e seus valores. Ela nosensina a enviar a mensagem da nossa volta a quem for como nós.Conheço alguns escritores que têm este lema colado acima da suaescrivaninha. Conheço uma que o leva dobrado dentro do sapato. É um trecho de um191poema de Charles Simic que serve de orientação definitiva para todas nós. "Quemnão sabe uivar não encontrará sua matilha."2 3Se você quiser reconvocar a Mulher Selvagem, recuse-se a ficar no cativeiro.2 4Com os instintos aguçados para ter equilíbrio, salte para onde bem entender, uive àvontade, apanhe o que estiver à mão, descubra tudo o que puder, deixe que seusolhos revelem seus sentimentos, examine tudo, veja o que puder ver. Dance usandosapatos vermelhos, mas certifique-se de que eles sejam os que você mesma fez à mão.Você será uma mulher cheia de vida.

Mulheres que Correm com os LobosOnde histórias criam vida. Descubra agora