Capítulo 14- Agir como sombra: Canto hondo, o canto profundo

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Agir como sombra significa ter um toque tão suave, um passo tão leve, quetorne possível uma movimentação livre pela floresta, observando sem ser observada.A loba segue como sombra qualquer um ou qualquer coisa que passe pelo seuterritório. É sua maneira de colher informações. É o equivalente de manifestar-se,transformar-se em algo como fumaça para voltar a se manifestar.Os lobos conseguem deslocar-se com a máxima delicadeza. O ruído queproduzem é semelhante ao de los angelos tímidos, dos anjos mais tímidos. Primeiro,eles recuam e seguem como sombra a criatura que lhes desperta a curiosidade.Depois, de repente, aparecem adiante da criatura, espiando com um olho dourado emetade da cabeça por trás de uma árvore. Subitamente, o lobo dá a volta e desaparecenum borrão de coleira branca e rabo empinado, só para voltar a surgir às costas dodesconhecido. Isso é agir como sombra.A Mulher Selvagem vem agindo assim com as mulheres humanas há anos. Oratemos um vislumbre dela. Ora ela volta a ficar invisível. No entanto, ela aparecetantas vezes na nossa vida e sob formas tão diferentes que nos sentimos cercadas porsuas imagens e seus impulsos. Ela nos chega em sonhos ou em histórias, pois querver quem somos e se já estamos prontas para nos reunir a ela. Se ao menos olharmospara as sombras que lançamos, veremos que elas não são sombras humanas, bípedes,mas que têm o lindo formato de algo livre e selvagem.Estamos destinadas a ser residentes permanentes no seu território, não apenasturistas, pois provimos dessa terra. Ela é ao mesmo tempo nossa terra natal e nossaherança. A força selvagem da psique da alma está nos seguindo como sombra poralgum motivo. Há um ditado dos tempos medievais que diz que, se você está emprocesso de descida, sofrendo a perseguição de uma grande força, e se essa forçaconseguir agarrar a sua sombra, você também irá se transformar numa força por simesma.A grande força selvagem das nossas próprias psiques quer pôr sua pata nanossa sombra, afirmando, dessa forma, que lhe pertencemos. Assim que a MulherSelvagem prender nossa sombra, voltamos a nos pertencer, sentimo-nos no nossoambiente e na nossa terra natal de direito.A maioria das mulheres não receia que isso ocorra. Na realidade, elas anseiampor essa reunião. Se elas pudessem neste exato instante encontrar o covil da MulherSelvagem, elas mergulhariam direto nele e saltariam felizes para o colo dela. Elas sóprecisam ser orientadas na direção certa, que é sempre para o fundo, o fundo donosso próprio trabalho, o fundo da nossa própria vida interior, o fundo do túnel queleva ao covil.Começamos nossa procura do selvagem, quer ainda meninas, quer já adultas,porque no meio de alguma empreitada selvática sentimos a proximidade de umapresença selvagem a nos dar apoio. Talvez tenhamos visto seu rastro atravessando aneve solta num sonho. Ou, em termos psíquicos, percebemos um galhinho quebradoaqui e ali, seixos virados de modo que seu lado úmido estivesse voltado para cima... esoubemos que algo de abençoado havia cruzado nosso caminho. Dentro da nossapsique, pressentimos ao longe o som de uma respiração conhecida, sentimos339tremores no chão e soubemos no nosso íntimo que algo de poderoso, alguémimportante, alguma liberdade selvagem dentro de nós estava se movimentando.Não poderíamos nos afastar dela mas, sim, acompanhá-la, aprendendo cadavez a saltar, a correr, a seguir como sombra tudo que por acaso chegasse ao nossoterritório psíquico. Começamos a seguir a Mulher Selvagem como sombra, e elaretribuiu carinhosamente, também nos seguindo como sombra. Ela uivou, e nóstentamos responder, mesmo antes de nos lembrarmos de como se falava sua língua emesmo antes de sabermos exatamente com quem estávamos falando. E ela esperoupor nós e nos incentivou. Esse é o milagre da natureza selvagem e instintual quetrazemos dentro de nós. Sem o conhecimento pleno, já sabíamos. Sem a visão total,compreendíamos que uma força amorosa e milagrosa existia para além dos limites doego em si.Quando criança, Opal Whitely escreveu a seguinte mensagem acerca dareconciliação com o poder selvagem.Today near eventime I did leadthe girl who has no seeinga little way into the forestwhere it was darkness and shadows were.I led her toward a shadowthat was coming our way.It did touch her cheekswith its velvety fingers.And now she toodoes have likings for shadows.And her fear that was is gone*Tudo que as mulheres foram perdendo pelos séculos afora pode serencontrado de novo se seguirmos sua pista nas sombras. E acendamos uma vela aGuadalupe, pois esses tesouros perdidos e roubados ainda lançam sombras nosnossos sonhos noturnos, nos sonhos diurnos da nossa imaginação, em históriasmuito antigas, na poesia e em qualquer momento de inspiração. As mulheres portodo o mundo — a sua mãe, a minha, você e eu, a sua irmã, a sua amiga, as nossasfilhas, todas as tribos de mulheres ainda desconhecidas — todas nós sonhamos com oque está perdido, com o que em seguida irá surgir do inconsciente. Todas sonhamosos mesmos sonhos no mundo inteiro. Nunca ficamos sem o mapa. Nunca ficamossem poder contar com a outra. Nós nos unimos através dos sonhos.Os sonhos são compensatórios. Eles fornecem um espelho para visualização doinconsciente profundo, que com grande freqüência reflete o que está perdido e o queainda é necessário para a reparação e o equilíbrio. O inconsciente produzconstantemente imagens ilustrativas. Portanto, como o lendário continente perdido,a selvagem terra dos sonhos ergue-se do nosso corpo adormecido, ergue-se gotejantee fumegante para criar o abrigo da terra natal para todas nós. Trata-se do continentedo nosso conhecimento. A terra do nosso Self.E eis o que sonhamos: sonhamos com o arquétipo da Mulher Selvagem,sonhamos com a reunião. Nascemos e renascemos desse sonho todos os dias ecriamos a partir da sua energia o dia inteiro. Nascemos e renascemos noite após noite*Hoje quase ao anoitecer levei/ a menina que não vê/ um pouco pela floresta adentro/ onde estava escuro e havia sombras./Levei-a até uma sombra/ que vinha na nossa direção./ A sombra tocou-lhe o rosto/ com seus dedos de veludo./ E agoratambém a menina/ veio a gostar das sombras./ E o medo que existia passou. (N. da T.)340desse mesmo sonho selvagem, e voltamos à luz do dia com um pêlo áspero na mão,com as solas dos pés negras de terra molhada, com o cabelo cheirando a mar, afloresta ou a fogão de lenha.É vindo dessa terra que voltamos para nossas roupas, para nossas vidas do dia-a-dia. Voltamos daquele local selvático para nos apresentarmos diante docomputador, diante da panela, da janela, do professor, do livro, do freguês.Instilamos o mundo selvagem no nosso trabalho, na criatividade no mundo dosnegócios, nas nossas decisões, na nossa arte, no trabalho das nossas mãos e do nossocoração, na nossa política, nos nossos planos, na vida familiar, na educação, naindústria, nas relações exteriores, nas liberdades, direitos e deveres. O femininoselvagem não é apenas sustentável em todos os mundos; é ele que sustenta todos osmundos.Vamos admitir. Nós, mulheres, estamos construindo uma terra natal; cadauma com seu próprio lote de terra extraída de uma noite de sonhos, um dia detrabalho. Estamos espalhando essa terra em círculos cada vez mais amplos, bemdevagar. Um dia, ela será uma terra contínua, uma terra ressuscitada de volta dosmortos. Mundo de la Madre, a terra natal psíquica, que coexiste e é equivalente emtodos os mundos. É um mundo feito da nossa vida, dos nossos gritos, do nosso riso,dos nossos ossos. É um mundo que vale a pena criar, no qual vale a pena viver; ummundo em que predomina uma sanidade honesta e selvagem.Quando pensamos em recuperação, podem vir à nossa mente pás mecânicasou carpinteiros, a restauração de uma antiga estrutura, e é esse o emprego modernodesse termo. No entanto, o significado mais antigo é o seguinte. A palavrareclamation*vem do francês antigo reclaimer, que significava "chamar de volta ofalcão que se deixou voar". Isso mesmo, fazer com que algo do mundo selvagem volteao ser chamado. Pelo seu significado, ela é portanto uma palavra excelente para nós.Estamos usando as vozes da nossa mente, da nossa vida e da nossa alma para chamarde volta a intuição, a imaginação; para invocar a Mulher Selvagem. E ela aparece.As mulheres não podem fugir a isso. Se for preciso haver uma mudança, nóssomos essa mudança. Nós temos dentro de nós La Que Sabé, Aquela Que Sabe. Sequisermos mudanças internas, cada mulher deverá empreender a sua. Se quisermosque haja mudanças no mundo, nós, mulheres, temos nossos próprios meios de ajudara realizá-las. A Mulher Selvagem sussurra as palavras e os meios, e nós obedecemos.Ela esteve correndo, parando e esperando para ver se vamos alcançá-la. Ela tem algo,tem muitas coisas, a nos mostrar.Por isso, se você estiver a um passo de escapar, de assumir riscos — se ousaragir de modo proibido, procure cavar para encontrar os ossos enterrados mais fundo,fazendo frutificar os aspectos naturais e selvagens da mulher, da vida, dos homens,das crianças, da terra. Use seu amor além dos seus bons instintos para saber quandorosnar, quando atacar, quando aplicar um golpe violento, quando matar, quandorecuar, quando ladrar até a madrugada. Para viver o mais próximo possível da forçaespiritual selvagem, a mulher precisa sacudir mais a cabeça, ser mais exuberante, termais faro na sua intuição, ter mais vida criativa, enfiar mais a mão na massa, ter maissolidão, ter mais companhia de mulheres, levar uma vida mais natural, ter mais fogo,elaborar mais as palavras e as idéias. Ela precisa de um maior reconhecimento porparte das suas irmãs, de mais sementes, mais rizomas, mais delicadeza com oshomens, mais revolução na vizinhança, mais poesia, mais descrição de fábulas e fatos*Reclamation em inglês significa a recuperação de um terreno pela drenagem, pela irrigação ou por outros métodos. (N. daT.)341do feminino selvagem. Mais grupos de costura terroristas e mais uivos. Muito maiscanto hondo, muito mais canto profundo.Ela precisa sacudir o pêlo, percorrer as trilhas conhecidas, afirmar seuconhecimento instintivo. Todas nós podemos afirmar pertencer ao antigo clã dascicatrizes, ostentar orgulhosas as marcas de combate do nosso tempo, escrevernossos segredos nas paredes, não aceitar sentir vergonha, abrir o acesso à saída. Nãovamos nos desgastar com a raiva. Pelo contrário, vamos extrair forças dela. Acima detudo, sejamos espertas e usemos nossos talentos femininos.Tenhamos em mente que não se pode esconder o que há de melhor. Ameditação, a instrução, todas as análises de sonhos, todo o conhecimento dos verdescampos divinos não têm nenhum valor se forem guardados para a própria pessoa oupara uma dúzia de escolhidos. Portanto, apareça. Apareça, onde quer que esteja.Deixe pegadas fundas porque você pode fazer isso. Seja a velha na cadeira de balançoque embala uma idéia até que ela volte a remoçar. Tenha a coragem e a paciência damulher na história do urso da meia-lua, que aprende a ver além da ilusão. Não sedistraia queimando fósforos e fantasias como a pequena menina dos fósforos.Não desista até encontrar a família à qual pertence, como o patinho feio.Despolua o rio criativo para que La Llorona encontre o que lhe pertence. Como adonzela sem mãos, deixe que o coração paciente a guie floresta afora. Como La Loba,colha os ossos dos valores perdidos e cante para devolvê-los à vida. Perdoe tantoquanto puder, esqueça um pouco e crie muito. O que você faz hoje influencia suasdescendentes no futuro. As filhas das filhas das suas filhas irão provavelmentelembrar-se de você e, o que é mais importante, seguir seu exemplo.Os recursos da vida com a natureza instintiva são muitos, e as respostasmudam à medida que você muda e o mundo muda e por isso não se pode dizer:' 'Façaisso e aquilo nessa ordem exata, e tudo ficará bem.'' No entanto, durante toda aminha vida sempre que encontrei lobos, tentei decifrar como conseguem viver, namaioria das vezes, em tamanha harmonia. Assim, tendo como objetivo a paz, sugiroque você comece agora mesmo com qualquer item da lista. Para quem estiver seesforçando, pode ser de grande ajuda começar pelo número dez.NORMAS GERAIS PARA A VIDA DOS LOBOS1. Coma2. Descanse3. Perambule nos intervalos4. Seja leal5. Ame os filhos6. Queixe-se ao luar7. Apure os ouvidos8. Cuide dos ossos9. Faça amor10. Uive sempre

Mulheres que Correm com os LobosOnde histórias criam vida. Descubra agora