A donzela sem mãosSe uma história é uma semente, então nós somos seu solo. O ato de ouvir umahistória nos permite vivenciá-la como se nós mesmas fôssemos a heroína que cedediante das dificuldades ou que as supera no final. Se ouvimos uma história de umlobo, depois disso saímos a perambular e a ter o conhecimento de um lobo por algumtempo. Se ouvimos uma história de uma pomba que afinal encontra seus filhotes,então, por algum tempo depois, algo fica se movendo por baixo do nosso própriopeito emplumado. Se se trata de uma história de resgate da pérola sagrada das garrasdo vigésimo dragão, sentimo-nos depois exaustas e satisfeitas. Num sentido muitoreal, ficamos impregnada de conhecimento só por termos dado ouvidos ao conto.Entre os junguianos, isso se chama "mística da participação" — um termotomado de empréstimo do antropólogo Lévy-Bruhl — e é usado para designar umrelacionamento no qual "a pessoa não consegue se distinguir como entidade separadado objeto observado". Entre os freudianos, é uma atitude chamada de "identificaçãoprojetiva". Entre os contadores de histórias, ela é chamada de "magia solidária" —querendo dizer a capacidade da mente de se afastar do seu ego por um tempo e sefundir com uma outra realidade, ali vivenciando e aprendendo idéias que ela nãopode aprender em nenhuma outra forma de consciência para depois trazê-las de voltaà realidade consensual.1"A donzela sem mãos" é um conto de fadas admirável no qual descobrimos osdedos de antigas religiões noturnas aparecendo no entretexto da história. O enredo sedesenrola de tal forma que os ouvintes participam das provas de resistência daheroína pois a história é tão extensa que demora para ser contada e demora aindamais para ser absorvida. Costumo contá-la durante o período de sete noites e àsvezes, dependendo dos ouvintes, durante sete semanas ou sete meses — dedicandocada noite, semana ou mês a cada provação da história — e existe um motivo paraisso.A história nos atrai para um mundo que está muito abaixo das raízes dasárvores. Dessa perspectiva, podemos ver que "A donzela sem mãos" fornece materialpara todo o processo da vida da mulher. Ela trata da maioria das principais jornadasda psique da mulher. Ao contrário de outros contos examinados nesta obra quetratam de uma tarefa específica ou de um aprendizado específico ocorrido numperíodo de dias ou de semanas, "A donzela sem mãos" cobre uma jornada de muitosanos — o percurso de toda a vida de uma mulher. Essa história é, portanto, especial; eum bom ritmo para sua assimilação consiste na sua leitura acompanhada de umagenerosa parcela de tempo dedicada a nos sentarmos com nossa musa para estudarsuas partes uma a uma."A donzela sem mãos" trata da iniciação da mulher para sua entrada nafloresta subterrânea através do rito da resistência. O termo resistir dá a impressão designificar "continuar sem interrupção" e, embora essa seja uma parte eventual dastarefas subjacentes ao conto, esse termo também significa "endurecer, tornar firme,robusto, fortalecer". É esse o principal impacto do conto bem como a característicaprodutiva da longa vida psíquica da mulher. Não continuamos só por continuar. Aresistência denota que estamos criando algo.289O ensino da resistência ocorre em toda a natureza. A planta das patas dosfilhotes de lobo são macias como barro molhado quando eles nascem. São só ospasseios, as perambulações, as migrações nas quais seus pais os levam que asenrijecem. Então, eles podem escalar e saltar sobre cascalhos cortantes, sobre urtigas,até mesmo sobre vidro quebrado, sem se machucar.Já presenciei mães lobas mergulhando seus filhotes nos córregos mais friosque se possam imaginar, correndo até que o filhote tenha as pernas tão cansadas quenão consiga mais acompanhar e depois correndo mais um pouco. Elas estãofortalecendo a pequenina criatura, nela investindo força e rápida capacidade derecuperação. Na mitologia, o ensino da resistência é um dos ritos da Grande MãeSelvagem, arquétipo da Mulher Selvagem. É seu ritual eterno o de fortalecer seusrebentos. É ela quem nos dá a têmpera, quem nos torna resistentes e poderosos.E o lugar em que esse aprendizado se realiza e essas qualidades são adquiridasé la selva subterránea, o mundo oculto do conhecimento feminino. É um mundoselvagem que fica subjacente ao nosso. Enquanto estamos lá, ficamos impregnadasdo conhecimento e da linguagem instintivos. A partir desse ponto privilegiado,compreendemos o que não conseguimos compreender com tanta facilidade a partirda perspectiva do mundo objetivo.A donzela no conto realiza algumas descidas. Quando ela completa um estágiode descida e de transformação, ela mergulha ainda em mais um. Esses estágiosalquímicos se completam cada um com um nigredo, perda, rubedo, sacrifício ealbedo, chegada da luz, cada um acompanhando o outro. Também o rei e a mãe do reitêm cada um seu próprio estágio. Todas essas descidas, perdas, descobertas efortalecimentos ilustram a iniciação perpétua da mulher na renovação do aspectoselvagem.A história da donzela sem mãos é, em diferentes partes do mundo, chamada de"Mãos de prata", "A noiva sem mãos" e "O pomar". Estudiosos do folclore computammais de cem versões da história. Na sua essência, a seguinte versão é encontrada emtoda a Europa central e oriental. No entanto, que a verdade seja dita, a profundaexperiência feminina subjacente ao conto se encontra em qualquer lugar onde hajaum anseio pela Mãe Selvagem.Minha tia Magdalena tinha um hábito matreiro para contar histórias. Elaapanhava seus ouvintes de surpresa começando um conto de fadas com "Issoaconteceu há uns dez anos" e depois passava a relatar um conto da era medievalperfeito, com cavaleiros, fossos e tudo o mais. Ou então ela dizia "Era uma vez, bemna semana passada..." e contava uma história do tempo em que os seres humanosainda não usavam roupa.Portanto, segue-se a história, "A donzela sem mãos".=======================Era uma vez, há alguns dias, um homem que ficava na estrada e que aindapossuía uma pedra enorme de fazer farinha com a qual moía o cereal da aldeia. Essemoleiro estava passando por dificuldades e não lhe restava nada além da enormepedra de moinho num barracão e da grande macieira florida atrás da construção.Um dia, quando ele entrava na floresta com seu machado de gume de pratapara cortar lenha, um velho estranho surgiu de trás de uma árvore.290— Não há necessidade de você se torturar cortando lenha — disse o velho emtom engambelador. — Posso adorná-lo de riquezas se você quiser me dar o que estáatrás do seu moinho.— O que está atrás do meu moinho a não ser a macieira florida? — perguntou-se o moleiro, concordando com a proposta do velho.— Dentro de três anos, virei buscar o que é meu — disse o estranho, rindo àsocapa, e foi embora a mancar, desaparecendo por entre os troncos das árvores.O moleiro encontrou sua mulher no caminho. Ela havia saído correndo dedentro de casa, com o avental voando e o cabelo desgrenhado.— Marido, marido meu, quando bateu a hora, surgiu na nossa casa um relógiomais bonito, nossas cadeiras rústicas foram trocadas por cadeiras enfeitadas develudo, nossa pobre despensa está repleta de carne de caça, nossas arcas e baústransbordam de tão cheios. Diga-me, por favor, como isso aconteceu. — E neste exatomomento, anéis de ouro apareceram nos seus dedos e seu cabelo foi puxado e presonum arco dourado.— Ah — disse o moleiro, assombrado enquanto seu próprio gibão passava a serde cetim. Diante dos seus olhos, seus sapatos de madeira com o salto tão gasto queele caminhava inclinado para trás também se transformaram em finos sapatos. —Bem, isso foi um desconhecido — disse ele, ofegante. — Deparei-me com um homemestranho, com uma sobrecasaca escura, na floresta. E ele me prometeu enormefortuna se eu lhe desse o que está atrás do nosso moinho. Ora, mulher, claro quepodemos plantar outra macieira.— Ai, marido meu! — lamentou-se a mulher, dando a impressão de terrecebido um golpe mortal. — O homem de casaco escuro era o Diabo, e o que estáatrás do moinho é a árvore, sim, mas nossa filha também está lá varrendo o quintalcom uma vassoura de salgueiro.E assim os pais foram cambaleando para casa, derramando lágrimas sobreseus belos trajes. A filha permaneceu sem se casar durante três anos e tinha otemperamento como das primeiras maçãs doces da primavera. No dia em que oDiabo veio apanhá-la, ela se banhou, pôs um vestido branco e ficou parada numcírculo de giz que ela mesma traçara à sua volta. Quando o Diabo estendeu a mãopara agarrá-la, uma força invisível o lançou do outro lado do quintal.— Ela não pode mais se banhar — berrou ele. — Ou não vou conseguir meaproximar dela. — Os pais ficaram apavorados e algumas semanas se passaram emque ela não se banhou até que seu cabelo ficou emaranhado; suas unhas, negras; suapele, acinzentada; suas roupas encardidas e duras de sujeira.Então, com a donzela cada dia mais parecida com um animal, surgiu mais umavez o Diabo. No entanto, a menina chorou, e suas lágrimas escorreram pelas mãos epelos braços. Agora, suas mãos e seus braços estavam alvíssimos e limpos. O Diaboficou furioso.— Cortem-lhe fora as mãos, do contrário não vou poder me aproximar dela.— Você quer que eu corte as mãos da minha própria filha? — perguntou o pai,horrorizado.— Tudo aqui irá morrer — berrou o Diabo. — Você, sua mulher e todos oscampos até onde sua vista alcance.O pai ficou tão apavorado que obedeceu e, pedindo perdão à filha, começou aafiar seu machado de gume de prata. A filha conformou-se.— Sou sua filha. Faça o que deve fazer. E foi o que ele fez. No final ninguémpoderia dizer quem gritou mais alto, a filha ou o pai. Terminou, assim, a vida damenina da forma que ela conhecia.291Quando o Diabo voltou, a menina havia chorado tanto que os tocos querestavam dos seus braços estavam novamente limpos, e o Diabo foi mais uma vezatirado para o outro lado do quintal quando tentou agarrá-la. Lançando maldiçõesque provocavam pequenos incêndios na floresta, ele desapareceu para sempre, poishavia perdido todo o direito a ela.O pai havia envelhecido cem anos, e sua esposa também. Como autênticoshabitantes da floresta, eles continuaram como podiam. O velho pai fez a oferta demanter a filha num castelo de imensa beleza e riqueza pelo resto da vida, mas a filhadisse achar mais condizente que se tornasse mendiga e dependesse da bondade dosoutros para seu sustento. E assim ela fez com que atassem seus braços com gazelimpa e ao raiar do dia ela se afastou da sua vida como havia sido até então.Ela caminhou muito. O sol do meio-dia fez que o suor escorresse riscando asujeira no seu rosto. O vento desgrenhou tanto seu cabelo até que ele mais pareciaum ninho de cegonha com gravetos enfiados de qualquer jeito. No meio da noite, elachegou a um pomar real onde a lua fazia reluzir os frutos nas árvores.Ela não podia entrar já que o pomar era cercado por um fosso. Caiu, então, dejoelhos pois estava faminta. Um espírito etéreo vestido de branco surgiu e fechou acomporta para esvaziar o fosso.A donzela caminhou por entre as pereiras sabendo de algum modo que cadafruto perfeito havia sido contado e anotado, e que eles eram também vigiados.Mesmo assim, um ramo curvou-se bem baixo para que ela o alcançasse, fazendo ogalho estalar. Ela tocou a pele dourada da pêra com os lábios e comeu ali em pé aoluar, com os braços atados em gaze, os cabelos desgrenhados, parecendo uma mulherde lama, a donzela sem mãos.O jardineiro viu tudo mas reconheceu a magia do espírito que protegia adonzela e não se intrometeu. Quando ela acabou de comer aquela única pêra, ela seretirou atravessando o fosso e foi dormir no abrigo do bosque.No dia seguinte, o rei veio contar suas pêras. Ele descobriu que uma estavafaltando mas, olhando por toda a parte, não conseguiu encontrar o frutodesaparecido. Quando lhe perguntaram, o jardineiro tinha a explicação.— Ontem à noite, dois espíritos esgotaram o fosso, entraram no jardim à luz doluar e um deles que era mulher e não tinha mãos comeu a pêra que se oferecia a ela.O rei disse que iria montar guarda naquela noite. Quando escureceu, ele veiocom o jardineiro e o mago, que sabia conversar com espíritos. Os três se sentaramdebaixo de uma árvore e ficaram vigiando. À meia-noite, a donzela veio flutuandopela floresta, com as roupas em farrapos, o cabelo desfeito, o rosto sujo, os braçossem mãos e o espírito de branco ao seu lado.Eles entraram no pomar da mesma forma que antes. Mais uma vez uma árvorecurvou-se graciosamente para chegar ao seu alcance, e a donzela sorveu a pêra queestava na ponta do ramo. O mago aproximou-se deles, mas não muito.— Vocês são deste mundo ou não são deste mundo? — perguntou ele.— Eu fui outrora do mundo — respondeu a donzela. No entanto, não sou destemundo— Ela é humana ou é um espírito? — perguntou o rei ao mago, e o magorespondeu que era as duas coisas. O coração do rei deu um salto, e ele se apressou achegar até ela.— Não renunciarei a você — exclamou ele. — Deste dia em diante, eu cuidareide você.No castelo ele mandou fazer para ela um par de mãos de prata, que foramamarradas aos seus braços. E foi assim que o rei se casou com a donzela sem mãos.292Passado algum tempo, o rei teve de ir combater num reino distante e pediu àmãe que cuidasse da jovem rainha, pois ele a amava de todo o coração.— Se ela der à luz um filho, mande me avisar imediatamente.A jovem rainha deu à luz um belo bebê, e a mãe do rei mandou um mensageiroaté o rei para lhe dar as boas novas. No entanto, a caminho, o mensageiro se cansoue, chegando a um rio, ficou cada vez com mais sono. Afinal, adormeceuprofundamente às margens do rio. O Diabo saiu de trás de uma árvore e trocou amensagem por uma que dizia que a rainha havia dado à luz uma criança que erametade cachorro.O rei ficou horrorizado com a notícia, mas mesmo assim mandou de volta umacarta recomendando que amassem a rainha e que cuidassem dela nesse terríveltranse. O rapaz que vinha trazendo a mensagem mais uma vez chegou ao rio e,sentindo a cabeça pesada como se tivesse comido todo um banquete, logo adormeceujunto à água. Foi quando o Diabo mais uma vez apareceu e trocou a mensagem para"Matem a rainha e a criança".A velha mãe ficou abalada com essa ordem e mandou um mensageiro pedindoconfirmação. Corriam os mensageiros de um lado para outro, cada um adormecendojunto ao rio enquanto o Diabo trocava as mensagens para outras que iam ficandocada vez mais apavorantes, sendo que a última dizia:"Guardem a língua e os olhos da rainha como prova de que ela está morta."A velha mãe não pôde suportar a idéia de matar a doce rainha. Em vez disso,ela sacrificou uma corça, arrancou sua língua e seus olhos e os escondeu. Em seguida,ela ajudou a jovem rainha a atar o bebê junto ao peito e, cobrindo-a com um véu,disse que ela precisava fugir para salvar a vida. As mulheres choraram e se beijaramna despedida.A jovem rainha vagueou até chegar à floresta maior e mais selvagem quejamais vira. Na tentativa de procurar um caminho, ela procurava passar por cima,pelo meio e por volta do mato. Quase ao escurecer, o mesmo espírito de branco deantes apareceu e a conduziu a uma pobre estalagem de gente simpática da floresta.Uma outra donzela vestida de branco levou a rainha para dentro e demonstrou saberseu nome. A criança foi posta num berço.— Como você sabe que sou uma rainha? — perguntou a donzela.— Nós da floresta acompanhamos esses casos, minha rainha. Agora descanse.E assim a rainha ficou sete anos na estalagem e se sentia feliz com sua criançae com sua vida. Aos poucos suas mãos lhe voltaram, primeiro como pequeninasmãozinhas de bebê, rosadas como pérolas, depois como mãos de menina e afinalcomo mãos de mulher.Enquanto isso, o rei voltou da guerra, e sua velha mãe se lamentou com ele.— Por que você quis que eu matasse dois inocentes? — Perguntou ela,mostrando-lhe os olhos e a língua da corça.Ao ouvir a terrível história, o rei cambaleou e caiu a chorar inconsolável. Amãe viu sua dor e contou que os olhos e a língua eram de uma corça e que ela haviamandado a rainha e o filho fugir pela floresta adentro.O rei jurou não mais comer nem beber e viajar até onde o céu continuasse azulpara encontrar os dois. Ele procurou por sete anos a fio. Suas mãos ficaram negras;sua barba, de um marrom semelhante ao do musgo; seus olhos, avermelhados eressecados. Todo esse tempo, ele não comeu nem bebeu nada, mas uma força maiordo que ele o ajudou a se manter vivo.Afinal, ele chegou à estalagem mantida pelo povo da floresta. A mulher debranco convidou-o a entrar, e ele se deitou de tão cansado. A mulher colocou um véusobre o rosto dele, e ele adormeceu. Quando ele chegou à respiração do sono mais293profundo, o véu se enfunou e escorregou aos poucos do seu rosto. Ao despertar, eleencontrou uma linda mulher e uma bela criança que o contemplavam, i— Sou sua esposa, e este é seu filho. — O rei queria acreditar, mas via que adonzela tinha mãos. — Com todas as minhas aflições e com meus bons cuidados,minhas mãos voltaram a crescer — disse a donzela. E a mulher de branco trouxe asmãos de prata que estavam guardadas como um tesouro numa arca. O rei ergueu-se eabraçou a mulher e o filho, e naquele dia houve uma alegria imensa na floresta.Todos os espíritos e os ocupantes da estalagem fizeram um belo banquete.Depois, o rei, e rainha e o filho voltaram para a velha mãe, realizaram um segundocasamento e tiveram muitos outros filhos, todos os quais contaram essa história paraoutros cem, que contaram essa história para outros cem, exatamente como vocêsfazem parte dos outros cem quem eu a estou contando.=======================O primeiro estágio — O pacto sem o conhecimentoNo primeiro estágio da história, o moleiro vulnerável e ambicioso faz um pactoinfeliz com o diabo. Ele pensava em enriquecer, mas depois percebe que o preço serámuitíssimo alto. Ele pensava estar dando sua macieira em troca da prosperidade, masdescobre que, em vez disso, deu sua filha ao diabo.Na psicologia arquetípica, consideramos todos os elementos de um conto defadas como descrições de aspectos da psique de uma única mulher. Portanto, aoexaminar essa história, como mulheres, precisamos nos perguntar logo no início qualé o pacto infeliz que toda mulher faz.Embora possamos ter respostas diferentes em dias diferentes, há uma respostaque é constante na vida de todas as mulheres. Embora detestemos admitir o fato, naesmagadora maioria das vezes o pacto mais infeliz das nossas vidas é o que fazemosquando nos privamos da nossa vida de conhecimento profundo em troca de uma vidaque é muito mais frágil; quando renunciamos aos nossos dentes, nossas garras,nossos sentidos, nosso faro; quando entregamos nossa natureza selvagem em trocada promessa de algo que parece rico mas que se revela vazio. Como o pai na história,entramos nesse pacto sem perceber a tristeza, a dor e o transtorno que ele trará paranós.Podemos ter boa vivência dos costumes do mundo, e, mesmo assim, quasetoda filha de Eva, se tiver uma chance, opta a princípio pelo pacto infeliz. Odesenvolvimento desse terrível pacto envolve um paradoxo enorme e significativo.Apesar de a escolha infeliz poder ser considerada uma reação auto-destrutiva emtermos psicológicos, é muito mais freqüente que ela se torne um divisor de águas, umevento que proporciona ampla oportunidade para a restauração da força da naturezainstintiva. Nesse sentido, embora haja tristeza e perda, o pacto infeliz, como onascimento e a morte, constitui um passo utilitário fora do penhasco planejado peloSelf com o objetivo de mergulhar a mulher profundamente na sua natureza selvagem.A iniciação da mulher começa com o pacto infeliz que ela fez há muito tempoenquanto ainda estava entorpecida. Ao escolher aquilo que a atraiu como sendo ariqueza, ela cedeu, em troca, seu domínio sobre algumas partes, e muitas vezes sobretodas as partes, da sua vida instintiva, criativa e cheia de paixão. Esse entorpecimentopsíquico feminino é um estado próximo ao sonambulismo. Durante sua vigência,andamos, conversamos e no entanto estamos dormindo. Amamos, trabalhamos, masnossas escolhas revelam a verdade acerca da nossa condição. Os aspectos294voluptuosos, curiosos, incendiários e bons da nossa natureza não estão em plenofuncionamento.É esse o estado da filha no conto de fadas. Ela é linda de se ver, uma criaturainocente. No entanto, ela poderia continuar a varrer o quintal por trás do moinhopara sempre —a de um lado para o outro — sem nunca desenvolver o conhecimento.Sua metamorfose não tem metabolismo.Portanto, a história começa com a traição grave, porém involuntária, dofeminino jovem, da inocente.2 Pode se dizer que o pai, que simboliza a função dapsique que deveria nos orientar no mundo objetivo, desconhece, na realidade, omodo pelo qual o mundo objetivo e o mundo interior funcionam em série. Quando afunção do pai da psique deixa de ter conhecimento sobre questões da alma, somostraídas com facilidade. O pai não percebe um dos fatos mais básicos queintermedeiam entre o mundo da alma e o mundo da matéria — ou seja, que muitascoisas que se apresentam a nós não são como aparentam ser à primeira vista.A iniciação que nos leva a esse tipo de conhecimento é aquela que nenhuma denós deseja, muito embora ela seja a que todas nós, mais cedo ou mais tarde,chegamos a receber. Há tantos contos — "A bela e a fera", "O Barba-azul" "Reynard, araposa" — que começam com o pai pondo a filha em perigo.3 No entanto, na psiqueda mulher, muito embora o pai caia numa armadilha fatal por não saber nada sobre olado sombrio do mundo ou do inconsciente, o momento horrível assinala um começodramático para ela, uma conscientização e astúcia futuras.Nenhum ente senciente neste mundo tem a permissão de permanecer inocentepara sempre. Para que possamos crescer, nossa própria natureza instintiva nos forçaa encarar o fato de que as coisas não são como parecem a princípio ser. A funçãocriativa selvagem nos força a aprender acerca dos numerosos estados do ser, dapercepção e do conhecimento. Esses são os inúmeros dutos através dos quais aMulher Selvagem fala conosco. Portanto, essa perda e essa traição são os primeirospassos vacilantes num longo processo iniciático que nos lança na selva subterránea.Ali, às vezes pela primeira vez em nossa vida, temos a chance de parar de nos chocarcom os muros criados por nós mesmas e, em vez disso, aprender a atravessá-los.Embora a perda da inocência das mulheres seja freqüentemente ignorada, nafloresta subterrânea a mulher que passou pela queda da própria inocência éconsiderada especial, em parte por ter sido ferida, mas muito mais porque persistiu,porque está se esforçando para entender, para descascar as camadas das suaspercepções e defesas a fim de ver o que está subjacente. Nesse mundo, sua perda deinocência é tratada como um rito de passagem.4 Ela é aplaudida por poder agora vercom mais clareza. São-lhe conferidos status e homenagens por ela ter sofrido econtinuado a aprender.Entrar num pacto infeliz é característico não só da psicologia da mulher jovem,mas vale para a mulher de qualquer idade que não tenha sido iniciada ou que estejadependente quanto a essas questões numa iniciação incompleta. Como uma mulherse envolve nesse tipo de pacto? A história começa com o símbolo do moinho e domoleiro. Como os dois, a psique é um triturador de idéias. Ela mastiga os conceitos eos desdobra em alimento. Ela recebe a matéria-prima, sob a forma de idéias,sentimentos, pensamentos e percepções, e a decompõe de modo a torná-la útil paranossa nutrição.Essa capacidade psíquica é muitas vezes chamada de processamento. Quandoprocessamos, selecionamos toda a matéria-prima da psique, tudo o que aprendemos,ouvimos, desejamos e sentimos durante um determinado período. Decompomos tudoisso, perguntando, "Como posso fazer o melhor uso disso?" Empregamos, então,essas idéias e energias processadas para implementar nossas tarefas mais profundas295e para sustentar nossas diversas iniciativas criativas. Desse modo, a mulher mantém-se robusta e ativa.No entanto, na história, o moinho não está em funcionamento. O moinho dapsique está inativo. Isso quer dizer que nada está sendo feito com toda a matéria-prima que entra na nossa vida diariamente, e que não está sendo obtida nenhumacompreensão a respeito dos grãos de conhecimento do mundo real e do mundooculto que atingem o nosso rosto. Se o moleiro5 não tem trabalho, a psique parou dese nutrir em termos de importância crítica.A moagem do grão está relacionada ao impulso criativo. Qualquer que seja omotivo, a vida criativa da psique da mulher está estagnada. A mulher que se senteassim tem a impressão de não estar mais sendo impregnada pelas idéias, de não estarsendo mais aquecida pelo fogo da inventividade, de não estar mais moendo fino parachegar ao âmago das coisas. Seu moinho está silenciado.Parece haver um entorpecimento natural que acomete os seres humanos numcerto estágio da vida. Ao criar minha família e a partir do meu trabalho com o mesmogrupo de crianças talentosas ao longo de anos, percebi que essa espécie de sono seabate sobre as crianças aproximadamente aos onze anos de idade. É aí que elascomeçam a fazer avaliações precisas nas suas comparações com os outros. Duranteesse período, seus olhos deixam de ser francos, passando à dissimulação; e, apesar deelas estarem sempre em movimento como feijões saltadores mexicanos, muitas vezesestão morrendo de um resfriamento terminal. Quer estejam sendo excessivamentedesdenhosos, quer estejam se comportando bem demais, em nenhum dos doisestados elas se demonstram sensíveis ao que ocorre no fundo do seu íntimo, e umentorpecimento aos poucos encobre a natureza sensível, os olhos cheios de vida.Imaginemos, ainda, que durante esse período algo nos é oferecido em troca denada. Que, de algum modo, nós nos forçamos para chegar a acreditar que, secontinuarmos dormindo, sairemos ganhando. As mulheres sabem o que issosignifica.Quando a mulher renuncia aos seus instintos que lhe indicam a hora certapara dizer sim ou não, quando ela renuncia ao seu insight, sua intuição e outrostraços de natureza selvagem, ela se encontra, então, em situações que prometem ouromas que acabam gerando dor. Algumas mulheres desistem da sua arte em troca deum grotesco casamento por interesse, abandonam o sonho de uma vida para ser umaboa esposa, boa filha ou boa menina, ou renunciam à sua verdadeira vocação a fim delevar o que elas esperam que venha a ser uma vida, mais aceitável, mais plena e maisdigna.Por esses meios e por outros perdemos nossos instintos. Em vez de nossasvidas se encherem com a possibilidade de iluminação, somos encobertas por umaespécie de "obscurecimento". Nossa capacidade exterior de penetrar na natureza dascoisas bem como nossa visão interior estão em sono profundo de tal forma que,quando o diabo chega e bate à porta, nós vamos até ela, como sonâmbulas, edeixamos que ele entre.O diabo simboliza a força sinistra da psique, o predador, que nessa histórianão é reconhecido pelo que é. Esse diabo é um bandido arquetípico que precisa daluz, que a deseja e a rouba. Em tese, se a luz lhe fosse dada — ou seja, uma vida com apossibilidade do amor e da criatividade — o diabo não seria mais o diabo.Nessa história, o diabo se apresenta porque a doce luz da jovem o atraiu. Sualuz não é qualquer uma, mas a de uma alma virginal presa num estado desonambulismo. Ah, que petisco! Sua luz refulge com uma beleza de partir o coração,mas ela não tem consciência do seu valor. Uma luz dessas, quer se trate do brilho davida criativa da mulher, da sua alma selvagem, da sua beleza física, da sua296inteligência, quer da sua generosidade, sempre atrai o predador. Uma luz dessas queé também alheia e desprotegida é sempre um alvo.Trabalhei com uma mulher de quem os outros sempre tiravam vantagem, fosseo esposo, os filhos, a mãe, o pai, fosse algum desconhecido. Ela estava com quarentaanos e ainda se encontrava nesse estágio de pacto/traição do seu desenvolvimentointerno. Com sua mansidão, sua voz carinhosa e receptiva, sua atitude simpática, elanão só atraía aqueles que queriam roubar uma brasa, mas também reunia-se diantedo seu fogo espiritual uma multidão tão numerosa que a impedia de receber qualquercalor.O pacto infeliz feito por ela foi o de nunca dizer não, para ser amada comconstância. O predador da sua própria psique lhe oferecia o ouro de ser amada, se eladesistisse dos seus instintos que diziam que já bastava. Ela percebeu plenamente oque estava fazendo consigo mesma quando teve um sonho em que estava de quatrono meio de uma multidão, tentando alcançar através da floresta de pernas uma coroapreciosa que alguém havia jogado num canto.O lado instintual da psique estava chamando sua atenção para o fato de que elahavia perdido a soberania sobre sua própria vida e de que seria um trabalho árduovoltar a conquistá-la. Para reaver sua coroa, essa mulher tinha de reavaliar seutempo, sua generosidade, sua atenção para com os outros.A macieira florida da história simboliza um belo aspecto das mulheres, o ladoda nossa natureza que tem suas raízes afundadas no universo da Mãe Selvagem, deonde recebe alimento. A árvore é o símbolo arquetípico da individuação. Ela éconsiderada imortal, pois suas sementes sobreviverão a ela, seu sistema radicularprotege e revitaliza e ela abriga toda uma cadeia alimentar. Como a mulher, a árvoretambém tem suas estações e seus estágios de crescimento. Ela tem seu inverno; temsuas primaveras.Nos pomares de maçãs da região de Northwoods nos Estados Unidos, osfazendeiros chamam suas éguas e cadelas de girl; e suas macieiras floridas, de lady.As árvores dos pomares são as jovens nuas da primavera — o "primeiro perfume",como costumávamos dizer. De todas as coisas que mais representavam a primavera, afragrância dos cachos das flores do pomar superavam os tordos enlouquecidos quesaltavam de um lado para o outro fazendo saltos mortais triplos no quintal esobrepujavam as novas lavouras que surgiam como minúsculas chamas de fogo verdena terra negra.Havia, também, um ditado sobre as macieiras: "Novos na primavera, frutosamargos; do outro lado, doces como calda". Isso queria dizer que a maçã tinha umanatureza dual. No final da primavera, o fruto estava bonito e redondo, e como quesalpicado pelo sol nascente. No entanto, ainda estava ácido demais para ser comido.Ele deixaria todos os nervos em pé, com repulsa. Mais tarde na estação, porém,morder uma maçã era como morder uma bala recheada de calda.A macieira e a donzela são símbolos intercambiáveis do Self feminino, e o frutoé um símbolo de nutrição e maturação do nosso conhecimento desse Self. Se nossoconhecimento acerca dos hábitos da nossa própria alma não estiver maduro, nãopoderemos nos nutrir com ele, pois esse conhecimento ainda não está pronto. Comoocorre com as maçãs, a maturação leva tempo, as raízes precisam procurar seu chãopelo menos uma estação deve passar, às vezes algumas. Se o sentido da alma virginalcontinuar não sendo testado, nada mais pode ocorrer nas nossas vidas. Se pudermosadquirir raízes subterrâneas, podemos amadurecer, nutrindo a alma, o Self e apsique.A macieira florida é uma imagem da fecundidade, sim. Mais do que isso,porém, ela simboliza o impulso criador densamente sensual e o amadurecimento das297idéias. Tudo isso é obra das curanderas, as mulheres das raízes, que moram nasprofundezas dos penhascos e das montañas do inconsciente. Elas mineram ali oinconsciente profundo e nos passam o produto do seu trabalho. Nós elaboramos oproduto que elas nos dão e em conseqüência disso um fogo vigoroso, instintos astutose conhecimentos profundos ganham vida, e nós nos desenvolvemos e crescemostanto no mundo interior quanto no objetivo.Aqui temos uma árvore que simboliza a abundância da natureza livre eselvagem na psique da mulher, e no entanto o valor disso não é compreendido pelapsique. Seria possível dizer que a psique inteira tem os olhos fechados às vastaspossibilidades da natureza feminina. Quando falamos da mulher-árvore, queremosfalar da energia feminina de florescimento que nos pertence e que chega a nós emciclos, refluindo e voltando até nós com regularidade exatamente como a primaverapsíquica se segue ao inverno psíquico. Sem a renovação desse impulso deflorescimento nas nossas vidas, a esperança é encoberta, e a terra das nossas mentese corações permanece imóvel. A macieira florida é nossa vida profunda.Percebemos a devastadora desvalorização, por parte da psique, do valor dajovem essência do feminino quando o pai diz da macieira, "claro que podemosplantar outra". A psique não reconhece sua própria deusa-criadora encarnada naárvore florida. O jovem self é permutado sem que se perceba seu valor ou seu papelcomo mensageiro da Mãe Selvagem. No entanto, é esse corte no fluxo doconhecimento que gera o princípio da iniciação da resistência.O moleiro desempregado passando por dificuldades havia começado a cortarlenha. E um trabalho pesado o de cortar lenha, não é? Ele envolve muito esforçofísico. No entanto, esse corte de lenha representa vastos recursos psíquicos, acapacidade de fornecer energia para as próprias tarefas, de desenvolver as própriasidéias, de trazer o seu sonho, qualquer que ele seja, para o seu alcance. Portanto,quando o moleiro começa a cortar lenha, poderíamos dizer que a psique começou afazer o trabalho extremamente árduo de produzir luz e calor para si mesma.No entanto, o pobre ego está sempre procurando uma saída fácil. Quando odiabo sugere aliviar o moleiro do trabalho pesado em troca da luz do femininoprofundo, o moleiro ignorante aceita o trato. É assim que selamos nosso destino. Nasprofundezas hibernais da nossa mente, somos duronas e sabemos que não existenada que se assemelhe a uma transformação sem esforço. Sabemos que teremos dearder até o chão, de uma forma ou de outra, para depois nos sentarmos nas cinzas doque um dia pensamos ser e avançar a partir dali.Ocorre, porém, que um outro lado da nossa natureza, uma parte mais desejosada ociosidade, espera que isso não seja verdade, espera que o trabalho duro terminepara poder voltar ao sono. Quando o predador chega, já estamos preparadas para ele,e nos sentimos aliviadas ao imaginar que talvez exista um jeito mais fácil.Quando fugimos do corte de lenha, as mãos da psique é que são cortadas...pois sem o trabalho psíquico, as mãos psíquicas definham. No entanto, esse desejo deum pacto que evite o trabalho pesado é tão humano e tão comum que ésurpreendente encontrar uma pessoa viva que não o tenha aceitado. A opção é tãofreqüente que, se fôssemos dar um exemplo atrás do outro de mulheres (ou homens)que desejam parar de cortar lenha para ter uma vida mais fácil, perdendo assim suasmãos — ou seja, seu domínio sobre sua própria vida — bem, demoraríamos muitonisso.Por exemplo, a mulher que se casa por motivos errados e poda sua vidacriativa. A mulher que tem uma preferência sexual e se força a aceitar outra. Amulher que quer ser ou fazer algo de importante, e que fica em casa contando clipesde papel. A mulher que quer viver a vida, mas que coleciona pequenos fragmentos de298vida como se fossem pedacinhos de barbante. A mulher que tem sua própriaidentidade, mas que entrega um braço, uma perna ou um olho ao primeiro namoradoque se apresente. A mulher que tem um excesso de criatividade radiante e convidasuas amigas vampiras para uma sessão de esgotamento. A mulher que precisaprosseguir com a sua própria vida, e algo dentro dela lhe diz, "não, estar presa é estarsegura". Tudo isso é o diabo dizendo, "dou-lhe isso se você me der aquilo", o pactosem o conhecimento.Portanto, o que deveria ser a árvore florida e nutritiva da psique perde seupoder, seus botões, sua energia; é iludida; é forçada a renunciar ao seu potencial, semcompreender o pacto em que entrou. O drama inteiro quase sempre começa e firmasua posição fora da consciência da mulher.Deve-se, porém, realçar o fato de ser assim que todo mundo começa. Nessahistória, o pai representa o ponto de vista do mundo objetivo, o ideal coletivo quepressiona as mulheres a serem murchas em vez de exuberantemente selvagens.Mesmo assim, não há vergonha nem culpa no fato de você ter renunciado aos seusramos floridos. É, sem dúvida, você sofreu. E pode ter dado anos, até mesmo décadas,em troca de nada. No entanto, existe uma esperança.A mãe no conto de fadas informa a toda a psique o que ocorreu. Ela diz:"Acordem! Vejam o que fizeram!" E todo mundo acorda tão rápido que chega a doer.6Mesmo assim, a notícia é boa, pois a mãe fraca da psique, que antes ajudava a diluir ea embotar a função dos sentidos, acabou de perceber o horrível significado do pacto.Agora, a dor da mulher chega ao consciente. Quando a dor é consciente, ela podefazer algo a respeito. Ela pode usá-la para seu aprendizado, para seu fortalecimento,para se tornar uma mulher que sabe.Com o passar do tempo, haverá notícias ainda melhores. Aquilo que foi dadopode ser resgatado. Pode ser restaurado ao seu lugar correio na psique. Vocês verão.O segundo estágio — A mutilaçãoNo segundo estágio da história, os pais voltam trôpegos para casa, derramandolágrimas sobre seus belos trajes. Exatamente três anos depois, o diabo vem apanhar asua filha. Ela se banhou e pôs um vestido branco. Ela fica parada num círculo de gizque traçou à sua volta. Quando o diabo estende a mão para segurá-la, uma forçainvisível o atira do outro lado do quintal. Ele lhe ordena que não se banhe. Eladegenera para uma condição animalesca. No entanto, chora nas próprias mãos, emais uma vez o diabo não consegue tocá-la. Ele então determina que o pai lhe corteas mãos para que ela não possa chorar sobre elas. O pai obedece, e assim termina suavida como era até então. Entretanto, ela chora nos tocos dos braços, e mais uma vez odiabo não consegue dominá-la, o que o faz desistir.A filha saiu-se muito bem, considerando-se as circunstâncias. Mesmo assim,ficamos entorpecidas quando passamos por esse estágio e percebemos o que nos foifeito, como cedemos diante da vontade do predador e do pai apavorado de tal formaque acabamos mutiladas.Depois disso, nosso espírito reage movimentando-se quando nos movemos,procurando alcançar quando procuramos alcançar, caminhando quandocaminhamos, mas sem nenhum sentimento no que faz. Ficamos entorpecidas quandopercebemos o que acabou ocorrendo. Ficamos horrorizadas por cumprir o pacto.Pensamos que nossos constructos paternos interiores deveriam estar sempre alerta,solidárias com a psique em flor e protetoras para com ela. Descobrimos agora o queacontece quando elas não estão.299Passam-se três anos entre o acordo e a volta do diabo. Esses três anosrepresentam um tempo em que a mulher não tem plena consciência do fato de queela própria é a vítima do sacrifício. Ela é o holocausto oferecido em troca de algo semvalor. Na mitologia, o período de três anos é a época do aumento de pressão, comonos três anos de inverno que precedem Ragnarok, o crepúsculo dos deuses namitologia escandinava. Em mitos como esses, três anos de alguma naturezadecorrem, vem então a destruição e, em seguida, daquela devastação nasce um novomundo de paz.7Esse número de anos simboliza o tempo em que a mulher se pergunta o que iráacontecer agora; em que ela gostaria de saber se o que mais teme — ser totalmenteenvolvida por uma força destrutiva — vai realmente ocorrer. O símbolo do númerotrês nos contos de fadas obedece ao seguinte modelo: a primeira tentativa não écerto; a segunda também não; da terceira vez, ah, agora algo vai acontecer.Logo energia suficiente será despertada, uma quantidade suficiente de ventoda alma começará a soprar, levando a nau psíquica a navegar para bem longe. Lao-tsé8 diz: "De um vêm dois, e de dois, três. Mas de três, vêm dez mil." Quandochegamos à terceira potência de qualquer coisa, ou seja, ao momento transformador,os átomos saltam, e onde havia a lassidão agora existe o movimento.Ficar sem marido três anos pode ser compreendido como um estado deincubação da psique, um estado no qual seria muito difícil e perturbador ter um outrorelacionamento. A tarefa desses três anos consiste no máximo fortalecimentopossível, no uso de todos os recursos psíquicos em proveito da própria pessoa, namáxima consciência possível. Isso implica sairmos do nosso sofrimento para ver oque ele significa, como funciona, que modelo ele segue; para examinar outras pessoascom o mesmo modelo, que conseguiram passar bem por tudo isso, e imitar o que fizersentido para nós.É esse tipo de observação do tormento e das soluções que induz a mulher aficar consigo mesma, e isso é correto, pois, como descobrimos mais adiante nahistória, a missão da donzela é a de encontrar o noivo no mundo oculto, não nestemundo. Em retrospectiva, as mulheres consideram que a preparação para suadescida iniciática vai se desenrolando ao longo de muito tempo, às vezes de anos, atéque afinal e de repente lá caem elas penhasco abaixo para dentro das corredeiras, namaioria das vezes empurradas, mas de vez em quando com um mergulho gracioso doalto dos rochedos... só que isso é raro.Esse período de tempo é às vezes caracterizado pelo tédio. As mulherescostumam dizer que seu estado de espírito é tal que elas simplesmente nãoconseguem detectar o que é que elas desejam, quer se trate do trabalho, do amor, dotempo, quer se trate do trabalho criativo. É difícil a concentração. É difícil serprodutiva. Essa inquietação nervosa é típica do estágio espiritual dodesenvolvimento. Somente o tempo, e não muito adiante de nós, irá nos levar aoabismo do qual precisamos cair ou mergulhar ou sobre o qual precisamos saltar.A essa altura na história, vemos um fragmento das antigas religiões noturnas.A jovem banha-se, veste-se de branco, traça um círculo de giz à sua volta. Trata-se deum velho ritual das deusas o de banhar-se — o de purificar-se — de usar o vestidobranco — o traje da descida à terra dos mortos — e o de traçar um círculo de proteçãomágica — o pensamento sagrado — à sua volta. Tudo isso a donzela faz num estadocomo que hipnótico, como se estivesse recebendo instruções de um tempo muitoremoto.Existe um ponto crítico para nós quando estamos esperando por aquilo quetemos certeza de que irá representar nossa destruição, nosso fim. Isso faz com quenós, como a donzela, voltemos nossos ouvidos para uma voz distante proveniente de300tempos ancestrais, uma voz que nos diz como nos mantermos fortes, como manter oespírito simples e puro. Uma vez, no meu próprio desespero, sonhei com uma voz queme dizia para tocar o sol. Depois do sonho, a cada dia, onde fosse, eu aplicava minhascostas, a sola do pé ou a palma da mão nos retângulos de luz — superfíciesensolaradas — nas paredes, pisos e portas. Eu me encostava e descansava nessasformas douradas. Elas agiam como turbinas para meu espírito. Não sei dizer comoisso acontecia; só sei que acontecia.Se prestarmos atenção às vozes de sonhos, às imagens, às histórias e à nossaarte, àquelas que vieram antes e a cada uma de nós, algo nos será oferecido, atémesmo diversas coisas que são rituais, que fazem parte de ritos psicológicosindividuais, que servem para firmar esse estágio do processo.9O esqueleto dessa história vem do tempo em que se diz que as deusaspenteavam o cabelo das mortais e as amavam profundamente. Nesse sentido,portanto, compreendemos que as descidas nesse conto são aquelas que atraem amulher para o passado remoto, para suas linhagens ancestrais no mundosubterrâneo. É essa a missão que nos aguarda, a de voltar através das névoas dotempo até o lar de La Que Sabé. Ela tem para nós vastos ensinamentos do seu mundoque serão de grande valor para nossos espíritos e para nossa existência no mundoobjetivo.Nas religiões antigas, a purificação e a preparação para a própria mortetornam a pessoa imune ao mal, colocam-na fora do seu alcance. Ao nos abrigarmossob a proteção da Mãe Selvagem — o círculo de giz — permitimos que a descidapsicológica continue sem desvios da sua trajetória, sem que nossa vitalidade sejadestruída pela diabólica força oponente da psique.E aqui estamos nós, vestidas e com o máximo de proteção possível, à espera donosso destino. A donzela chora, no entanto, chora nas próprias mãos. A princípio,quando a psique chora inconscientemente, não conseguimos ouvi-la, a não" ser poruma sensação de desamparo que se abate sobre nós. A donzela continua a chorar.Suas lágrimas são a germinação daquilo que a preservará, daquilo que purifica oferimento recebido.C. S. Lewis escreveu sobre o frasco de lágrimas de criança que cura qualquerferimento com apenas uma gota. As lágrimas, na mitologia, derretem o coraçãoenregelado. Na história "A criança da pedra",1 0 do povo inuit, as lágrimas mornas deum menino fazem com que uma pedra fria se quebre, liberando um espírito protetor.Na história de "Mary Culhane", o demônio que se apoderou de Mary não pode entrarem nenhuma casa onde haja lágrimas derramadas com sinceridade pois essas eleconsidera "água benta". Desde o início da história, as lágrimas cumpriram trêsfunções: chamaram os espíritos para o lado de quem chora, afastaram os quequeriam abafar e amarrar a alma pura e curaram os males decorrentes de pactosinfelizes.Há épocas na vida de uma mulher em que ela chora e não consegue parar dechorar e, mesmo que tenha o auxílio e o apoio dos seres amados, ainda assim elachora. Algo nesse pranto mantém o predador afastado, mantém longe a vantagem ouo desejo mórbido que irá destruí-la. As lágrimas fazem parte do conserto de rasgos napsique pelos quais a energia vinha vazando sem parar. A questão é séria, mas o piornão ocorre — nossa luz não é roubada — porque as lágrimas nos tornam conscientes.Não há a menor chance de se voltar a adormecer quando se está chorando. O sonoque nos chega nessas circunstâncias é apenas repouso para o corpo físico.Às vezes a mulher diz: "não agüento mais chorar, estou cansada, quero pararcom isso." No entanto, é a sua alma que está gerando as lágrimas, e elas são a suaproteção. Por isso, ela precisa continuar até a hora em que acabe essa necessidade.301Algumas mulheres ficam assombradas com a quantidade de água que seu corpoproduz quando elas choram. Isso não irá durar para sempre, só até que a almaconsidere terminada sua sábia expressão.O diabo tenta se aproximar da moça e não consegue, porque ela se banhou echorou. Ele admite que seu poder está enfraquecido com essa água benta e exige queela não mais se banhe. No entanto, em vez de evitá-la, a falta de banho surte o efeitooposto.1 1 Ela começa, então, a se parecer com uma força animal, com a naturezaselvagem subjacente, e isso também é uma proteção. Pode ser nesse estágio que amulher passe a se interessar menos ou de modo diferente pela sua aparência. Elapode sair por aí vestida mais como um emaranhado de gravetos do que como umapessoa. À medida que ela contempla sua provação, muitas preocupações anterioresrecuam para segundo plano."Bem", diz o diabo, "se eu descascar sua camada civilizada, eu talvez possaroubar sua vida para sempre." O predador deseja degradá-la, enfraquecê-la com suasproibições. O diabo acha que, se a donzela não tomar banho e ficar imunda, elepoderá roubá-la de si mesma. O que acontece, porém, é exatamente o contrário, poisa mulher suja de fuligem, a mulher de lama, é amada pela Mulher Selvagem einequivocamente protegida por ela.1 2 Aparentemente o predador não compreendeque suas proibições somente a aproximam cada vez mais da sua poderosa naturezaselvagem.O diabo não consegue chegar perto do self selvagem. Esse estado tem umapureza que acaba repelindo a energia imprudente ou destrutiva. A combinação desseestado com a pureza das lágrimas impede o acesso àquela coisa ruim que deseja seumal para ter uma vida mais plena.Em seguida, o diabo dá ordens ao pai para que mutile sua filha, decepando-lheas mãos. Se o pai não obedecer, o espírito do mal ameaça acabar com toda a psique."Tudo aqui irá morrer. Você, sua mulher e todos os campos até onde sua vistaalcance." O objetivo do diabo é o de fazer com que a donzela perca as mãos — ou seja,sua capacidade psíquica de apreender, de segurar, de ajudar a si mesma ou aosoutros.O elemento paterno da psique não está maduro, não consegue firmar suaposição diante desse perigoso predador e, assim, corta fora as mãos da filha. Ele tentaimplorar por ela mas o preço — a destruição de toda a força criativa da psique — éalto demais. A filha submete-se à mutilação, e o sacrifício de sangue é realizado,aquilo que nos tempos antigos indicava uma descida total até o mundo subterrâneo.Com a perda das mãos, a mulher abre caminho para entrar na selvasubterránea, o campo de iniciação do mundo oculto. Se estivéssemos no teatro grego,o coro trágico iria agora lamentar-se e chorar, pois, mesmo que esse ato faça com queadquira um poder imenso, nesse instante a inocência da mulher foi assassinada, sempoder jamais voltar a ser o que era antes.O machado de gume de prata vem de uma outra camada arqueológica doantigo feminino selvagem, na qual a prata é a cor especial do mundo espiritual e dalua. O machado de gume de prata é assim chamado porque nos tempos antigos eleera feito de aço enegrecido na forja, e sua lâmina era afiada com a pedra de amolaraté revelar um brilhante tom de prata. Na antiga religião minóica, o machado dadeusa era usado para assinalar o caminho ritual do iniciando e para indicar os lugaresconsiderados santos. Ouvi, também, de duas velhas contadoras de histórias croatasque, nas antigas religiões matriarcais, um pequeno machado ritual era utilizado paracortar o cordão umbilical do recém-nascido, liberando a criança do mundosubterrâneo para que ela pudesse viver neste mundo.1 3302A prata do machado está relacionada às mãos de prata que, com o tempo, irãopertencer à donzela. Esse é um trecho complexo, pois ele apresenta a idéia de que aremoção das mãos psíquicas pode ser ritual. Nas antigas religiões matriarcais, havia oconceito da árvore jovem sendo podada com um machado para que fechasse mais suacopa.1 4 Na antiguidade, existia uma profunda devoção pelas árvores reais, pela suacapacidade de ressecar e de voltar à vida, bem como por todos os produtosvitalizantes que elas fornecem às pessoas, como por exemplo a lenha para aquecer ecozinhar, madeira para construir berços, cajados para caminhar, paredes para abrigo,remédios para a febre além de servirem de um lugar onde podemos subir para ver aolonge e, se necessário, para nos escondermos do inimigo. A árvore era realmente umamaravilhosa mãe selvagem.Nas antigas religiões matriarcais, esse tipo de machado pertence por naturezaà deusa, não ao pai. Essa seqüência no conto de fadas sugere com firmeza que apropriedade do machado por parte do pai ocorre na história em conseqüência damistura de aspectos das religiões novas e antigas, sendo que a mais antiga foi desfeitae deixou certamente de ser lembrada. No entanto, independente das névoas do tempoe/ou das camadas que encobrem essas antigas idéias sobre a iniciação das mulheres,ao acompanhar uma história como essa, podemos extrair do emaranhado aquilo queprecisamos. Podemos refazer o mapa que mostra o caminho da descida e o caminhode volta.Podemos compreender a remoção das mãos psíquicas exatamente da mesmaforma que esse símbolo era compreendido pelos antigos. Na Ásia, o machado celestialera utilizado para separar a pessoa do self não-iluminado. Essa imagem do cortecomo iniciação tem importância central na história. Se, nas nossas sociedadesmodernas, as mãos do ego devem ser decepadas com o objetivo de reconquista danossa função selvagem, dos nossos sentidos femininos, então é melhor que elas sejammesmo perdidas para que nos afastemos de todas as seduções de coisas sem sentidoque estão ao nosso alcance, de tudo aquilo a que podemos nos agarrar para nãocrescer. Se é esse o motivo pelo qual as mãos precisam ser perdidas por algum tempo,que seja assim. Renunciemos a elas.O pai brande a ferramenta de corte de prata e, embora ele tenha uma sensaçãode enorme pesar, ele valoriza mais sua própria vida e a da psique ao seu redor, apesarde alguns contadores realçarem claramente que a vida que ele mais teme perder é asua própria. Se considerarmos o pai como o princípio organizador, uma espécie deregente da psique externa ou terrena, podemos, então, concluir que o self manifestoda mulher, seu self egóico, não quer morrer.Isso é perfeitamente compreensível. É sempre esse o caso quando ocorre umadescida. Parte do que somos é atraída pela descida como se ela fosse algo bonito,sombrio e agridoce. Ao mesmo tempo, sentimos repulsa por ela e atravessamos ruas,estradas e até mesmo continentes psíquicos para evitá-la. No entanto, aqui nos édemonstrado que a árvore florida precisa sofrer a amputação. O único motivo peloqual temos condição de suportar essa idéia está na promessa de que alguém, emalguma parte no lado oculto da psique, está à nossa espera, para nos ajudar, para noscurar. E isso é verdade. Alguém muito importante espera para nos restaurar, paratransformar o que se deteriorou e para atar os membros que se feriramNa região agrícola onde cresci, as tempestades de relâmpagos e de granizoeram chamadas de "tempestades de corte" e às vezes de "tempestades ceifadoras", nosentido da Ceifeira Implacável, porque elas cortavam os seres vivos em toda avizinhança: animais e às vezes também seres humanos, mas principalmente árvores elavouras produtivas. Depois de uma grande tempestade, famílias inteiras saíam dascavas onde armazenavam raízes e se curvavam sobre a terra, procurando ver de que303ajuda as lavouras, as flores, as árvores poderiam precisar. As criancinhas menoresapanhavam os ramos espalhados cheios de folhas e frutos. As maiores punhamesteios para segurar plantas ainda vivas, mas cortadas. Elas as amarravam comtarugos de madeira, lascas de gravetos e trapos brancos. Os adultos dividiam eenterravam aquilo que havia sido totalmente destruído.Existe uma família amorosa, como essa, esperando pela donzela no mundosubterrâneo, como veremos. Na metáfora da mutilação das mãos, vemos que algoadvirá disso. No mundo subterrâneo, sempre que alguma coisa não consegue viver,ela é derrubada e dividida para ser usada de outro modo. Essa mulher da história nãoé velha, não está doente, mas ela precisa ser despojada já que não pode continuarsendo como era antes. Contudo, há forças que estão à sua espera para ajudá-la acurar-se.No entanto, ao cortar fora suas mãos, o pai aprofunda a descida, acelera adisolutio, a difícil perda de todos os nossos valores mais caros, que significam tudo, aperda do ponto privilegiado, a perda das linhas do horizonte, a perda dos nossospontos de referência acerca daquilo em que acreditamos e por que motivos. Nos ritosaborígines no mundo inteiro, a idéia é confundir definitivamente o rotineiro para queo místico possa ser facilmente apresentado aos iniciandos.1 5Com o corte das mãos, é realçada a importância do restante do corpo psíquicoe dos seus atributos, e nós sabemos que o tolo pai regente da psique não tem muitotempo de vida pois a mulher profunda e mutilada vai cumprir sua tarefa, com ou sema assistência e proteção do pai. E por mais medonho que possa parecer a princípio,essa nova versão do corpo vai ser de ajuda.Portanto, é nessa descida que perdemos nossas mãos psíquicas, aquelas partesdo nosso corpo que em si mesmas se assemelham a dois pequenos seres humanos.Nos tempos antigos, os dedos eram comparados a pernas e braços, e a articulação dopulso, à cabeça. Esses seres sabem dançar; eles sabem cantar. Uma vez bati palmasacompanhando o ritmo com Renée Heredia, uma grande guitarrista de flamenco. Noflamenco, as palmas das mãos falam, geram sons que são palavras, como "Maisrápido, minha bela, mais alto agora, mais fundo, ah, sinta-me, sinta esta música,sinta isso e mais isso." As mãos são seres por si sós.Quando se estudam presépios da região do Mediterrâneo, com grandefreqüência vê-se que as mãos dos pastores e dos Reis Magos, ou de Maria e José, sãotodas posicionadas de modo a ter as palmas voltadas para o Menino Jesus, como se acriança fosse uma luz que pudesse ser recebida através da pele das palmas. NoMéxico, também se percebe o mesmo gesto em estátuas da grande Deusa deGuadalupe que derrama sua luz purificadora voltando sobre nós as palmas das mãos.O poder das mãos é registrado desde o início dos tempos históricos. Em Kayenta, nareserva navajo, há uma certa cabana com uma antiga marca de uma mão vermelha aolado da porta. Ela quer dizer: "Aqui estamos em segurança."Como mulheres, tocamos muitas pessoas. Sabemos que nossa palma é umaespécie de sensor. Quer seja num abraço, numa palmadinha, quer seja num simplestoque no ombro, estamos interpretando as pessoas que tocamos. Se estivermosligadas a La Que Sabé, sabemos o que o outro ser humano sente quando oapalpamos. Para algumas pessoas, chegam-lhes informações sob a forma de imagense até mesmo de palavras, dando-lhes conta do estado emocional do outro.Poderíamos dizer que existe nas mãos uma espécie de radar.As mãos não são só receptores, mas também transmissores. Quandoapertamos a mão de alguém, podemos enviar uma mensagem, e com freqüência ofazemos através da pressão, da intensidade, da duração e da temperatura da pele. Aspessoas que, consciente ou inconscientemente, têm más intenções apresentam toques304que dão a impressão de estar fazendo perfurações no corpo da alma psíquica dooutro. No outro pólo psicológico, a colocação das mãos sobre uma pessoa podealiviar, confortar, remover a dor e curar. Esse é o conhecimento da mulher atravésdos séculos, transmitido de mãe para filha.1 6O predador da psique conhece tudo a respeito do profundo mistério associadoàs mãos. Em muitas partes do mundo, uma forma extremamente patológica dedemonstrar desumanidade está em seqüestrar e decepar as mãos da vítima: mutilar afunção de sentir, ver e curar do ser humano. O assassino não sente e por isso nãoquer que sua vítima sinta. É exatamente essa a intenção do diabo, pois o aspecto nãoredimido da psique não sente e, na sua inveja doentia de quem sente, ele é levado aum ódio cortante. O assassinato da mulher com instrumentos de corte é o tema demuitas histórias. Esse diabo, porém, é mais do que assassino. Ele é um mutilador. Eleexige a mutilação, não a escarificação decorativa ou simplesmente iniciática, masaquele tipo de mutilação que deixa a mulher inválida para sempre.Quando dizemos que as mãos da mulher foram decepadas, queremos dizer queela está forçosamente afastada da possibilidade de se consolar, de promover umacura imediata; está completamente incapacitada para fazer qualquer coisa que nãoseja seguir o caminho antiqüíssimo. Portanto, é correio que continuemos a chorardurante esse período. É a nossa proteção simples e poderosa contra um demônio tãolesivo que nenhuma de nós consegue compreender totalmente sua motivação ourazão de ser.Nos contos de fadas, existe um leitmotiv chamado de "objeto lançado". Aheroína que está sendo perseguida tira um pente mágico dos cabelos e o joga atrás desi, onde ele se transforma numa floresta tão densa que não se consegue enfiar umforcado entre as árvores. Ou então a heroína tem um pequeno frasco de água, que elaabre, salpicando seu conteúdo atrás de si enquanto corre. As gotículas transformam-se numa enchente, que efetivamente retarda a velocidade de quem a persegue.Na história, a jovem chora sem parar, molhando os tocos dos braços, e o diaboé repelido por algum tipo de campo de força ao seu redor. Ele não consegue agarrá-lacomo pretendia. Aqui, as lágrimas são o "objeto lançado", o muro de água quemantém o diabo afastado, não porque ele esteja comovido ou emocionado com elas —ele não está — mas porque há algo na pureza das lágrimas verdadeiras que anula opoder do demônio. Descobrimos que isso é verdade quando choramos a mais nãopoder porque não há nada, absolutamente nada, no horizonte a não ser aspossibilidades mais áridas, mais sombrias e impenitentes, e no entanto são nossaslágrimas que nos salvam de arder até nos reduzirmos a cinzas.1 7A filha deve lamentar-se. Fico perplexa com o fato de as mulheres hoje em diachorarem tão pouco e, quando o fazem, procuram justificativas. Fico preocupadaquando a vergonha ou o desabito começam a eliminar uma função natural. Ser umaárvore florida e estar cheia de seiva é essencial, se não você pode se quebrar. Chorarfaz bem, e é certo. Chorar não cura o dilema, mas permite que o processo continueem vez de entrar em colapso. E agora, a vida da donzela como era até então, suacompreensão da vida até esse ponto, terminou, e ela desce para outro nível do mundooculto. E nós continuamos a acompanhá-la. Prosseguimos, mesmo nos sentindovulneráveis e tão desprovidas de proteção do ego quanto uma árvore cuja casca foiarrancada. No entanto, temos poder já que aprendemos a atirar o diabo para o outrolado do quintal.A essa altura percebemos na nossa vida que, não importa o que façamos, osplanos do nosso ego fogem das nossas mãos. Haverá uma mudança na nossa vida,uma das grandes, independente dos belos planos que o ego maestro-temperamentaltenha para o próximo movimento. Nosso próprio destino poderoso começa a305governar nossa vida — não o moinho, não a vassoura, não o sono. Acabou-se a vidacomo a conhecíamos. Desejamos ficar sozinhas, talvez que nos deixem em paz. Nãopodemos mais confiar na cultura paterna dominante. Estamos envolvidas com oprimeiro aprendizado da nossa vida verdadeira. Persistimos.Essa é uma época em que tudo que valorizamos perde sua graça. Jung nosrelembra o termo usado por Heráclito, enantiodromia — que significa refluir. Esserefluxo pode, no entanto, ser mais do que uma regressão ao inconsciente individual;ele pode ser um retorno sincero a antigos valores práticos, a idéias mais profundas.1 8Se compreendermos esse estágio da iniciação na resistência como um passo atrás,devemos também considerá-lo um passo de dez léguas para trás e para baixo, que nosleva ao reino da Mulher Selvagem.Tudo isso faz com que o diabo jogue o rabo sobre o ombro e vá embora furioso.Nesse sentido, quando a mulher sente ter perdido contato, perdido seu jeito habitualde lidar com o mundo, ela tem poder ainda na pureza da sua alma; ela é forte na suainsistente tristeza, e isso faz com que se afaste aquilo que a quer destruir.É verdade que o corpo psíquico perdeu suas mãos, mas o resto da psique irácompensar essa perda. Ainda dispomos de pés que conhecem o caminho, a mente-alma com a qual vemos longe, seios e ventre para pressentir, exatamente como aexótica e enigmática deusa do ventre, Baubo, que representa a profunda naturezainstintiva das mulheres... e que também não tem mãos.Com esse corpo incorpóreo e estranho, vamos adiante. Estamos a ponto derealizar a descida seguinte.O terceiro estágio — A perambulaçãoNo terceiro estágio da história, o pai faz a oferta de manter a filha na riquezapelo resto da vida, mas ela diz que vai partir para depender do destino. Aoamanhecer, com os braços atados com gaze limpa, ela se afasta da vida como aconhecia até então.Ela se torna desgrenhada e animalesca. Tarde da noite, ela chega a um pomaronde as pêras são numeradas.1 9 Um espírito esgota o fosso em volta do pomar; e,enquanto o jardineiro observa assombrado, ela come a pêra que se oferece a ela.A iniciação é o processo pelo qual desistimos da nossa inclinação natural parapermanecer inconsciente e resolvemos que, custe o que custar — sofrimento, luta,persistência —iremos perseguir a união consciente com a mente mais profunda, o Selfselvagem. Na história, a mãe e o pai tentam atrair a filha de volta ao estado deinconsciência: "Ah, fique aqui conosco, você está ferida, mas nós podemos fazer comque esqueça." Será que ela, agora que derrotou o demônio, irá descansar sobre oslouros conquistados, por assim dizer? Irá ela se recolher, ferida e sem mãos, para osrecessos da psique, onde possa receber atenções pelo resto da vida, deixando-se levare fazendo o que lhe ordenam?Não, ela não vai se esconder para sempre num quarto escuro como faria umabeldade deformada pelo ácido. Ela irá vestir-se, medicar-se em termos psíquicos damelhor maneira possível e descer mais um degrau de pedra que a levará a um reinoainda mais profundo da psique. A antiga parte dominante da psique oferece-lhe apossibilidade de mantê-la escondida e em segurança para sempre, mas sua naturezainstintual recusa o oferecimento, pois sente que precisa lutar para viver em plenaconsciência, custe o que custar.Os ferimentos da donzela são envoltos em gaze branca. O branco é a cor daterra dos mortos e também, na alquimia, a cor do albedo, a ressurreição da alma domundo subterrâneo. Essa cor é o arauto do ciclo de descida e retorno. Aqui, no início,306a donzela transforma-se em andarilha, e só isso já representa uma ressurreição parauma nova vida e uma morte na vida antiga. Perambular é uma excelente opção.As mulheres nesse estágio muitas vezes começam a se sentir tantodesesperadas quanto inflexíveis para iniciar essa jornada interior, não importa como.E é o que ocorre quando deixam uma vida por outra, uma estágio da vida por outroou, às vezes, até um amante por nenhum outro a não ser elas mesmas. O progresso daadolescência até a jovem idade adulta, da mulher casada para novamente solteira, dameia-idade para a velhice, a transposição do limite da velhice, partindo com feridasmas com um sistema de valores renovado — isso é a morte e a ressurreição.Abandonar um relacionamento ou o lar dos nossos pais, deixar para trás valoresultrapassados, assumir nossa própria identidade e, às vezes, penetrar na profundezada selva simplesmente porque precisamos, tudo isso constitui a ventura da descida.E lá partimos nós sob uma luz diferente, sob um céu diferente, com um chãodesconhecido por baixo das nossas bota. E no entanto estamos vulneráveis, pois nãotemos como nos agarrar, nos segurar, nos apoiar, como saber — pois não temosnossas mãos.A mãe e o pai — os aspectos do coletivo e do ego da psique — não têm mais opoder que tinham antes. Foram punidos pelo sangue derramado em conseqüência doseu descaso irresponsável. Muito embora eles se ofereçam para manter a donzela emcondições de conforto, eles estão impotentes para direcionar sua vida, pois o destinoa leva a viver como andarilha. Nesse sentido, o pai e a mãe morrem. Seus novos paissão o vento e a estrada.O arquétipo do andarilho propicia ou causa o surgimento de um outro: o dolobo solitário ou do proscrito. Ela agora está exilada das famílias aparentementefelizes das aldeias, fora dos ambientes aquecidos e ao relento, no frio. É essa agora asua vida.2 0 Essa passa a ser a imagem viva para as mulheres que iniciaram a viagem.Começamos de certo modo a não mais sentir que fazemos parte da vida que rodopia ànossa volta. Os megafones parecem estar muito longe, os camelos, os ambulantes,todo o magnífico circo da vida exterior como que cambaleia e desmorona à medidaque descemos mais fundo no mundo subterrâneo.Nesse ponto, a antiga religião noturna volta a surgir para nos encontrar.Embora a antiga lenda de Hades raptando Perséfone para o mundo dos mortos sejaeficaz como drama, histórias muito mais antigas oriundas de religiões centradas nomatriarcado, como aquelas que falam de Ishtar e Inanna, indicam um nítido vínculode "desejo de amar" entre a donzela e o rei do mundo oculto.Nessas antigas versões religiosas, a donzela não é necessariamente capturada earrastada até o mundo subterrâneo por algum deus sinistro. A donzela sabe que deveir, sabe que aquilo faz parte de um rito divino. Apesar de ter medo, ela quer ir aoencontro do seu rei, seu noivo no mundo oculto, desde o início. Ao empreender adescida ao seu próprio modo, ela é ali transformada, atinge ali o conhecimentoprofundo e volta a subir para o mundo objetivo.Tanto o mito clássico de Perséfone quanto o conto de fadas da donzela semmãos são dramas fragmentários de outros mais coesos retratados nas religiões maisantigas. O que antes havia sido um anseio por encontrar o Amado do mundosubterrâneo passou, em algum ponto do tempo, a ser nos mitos mais recentes umdesejo e uma captura.No tempo dos grandes matriarcados, compreendia-se que a mulher serianaturalmente levada ao mundo subterrâneo, que seria até lá conduzida pelos poderesdo feminino profundo. Era considerado parte da sua formação e uma realização dealtíssimo valor que ela adquirisse conhecimento por experiência própria. A natureza307dessa descida é o cerne arquetípico tanto do conto de fadas da donzela sem mãosquanto do mito de Deméter e Perséfone.Pois agora, na história, a donzela vagueia, mais uma vez assumindo suanatureza animal, que não se lava. É essa a atitude certa para a descida — uma atitudedo tipo "não ligo tanto assim para as coisas deste mundo". E como podemos ver, suabeleza refulge mesmo assim. A idéia de não se lavar também provém dos rituais detempos antiqüíssimos, rituais que culminavam com o banho e novos trajesrepresentantes da passagem para um relacionamento novo ou renovado com o Self.Vemos que a donzela sem mãos passou por uma descida e transformaçãocompleta: a do despertar. Na alquimia, existem três estágios: o nigredo, o estágionegro ou sombrio da dissolução; o rubedo, o estágio vermelho ou do sacrifício; esaída de casa envolta em branco, o albedo, a nova vida. Agora, como andarilha, ela éjogada de volta ao nigredo. Agora, porém, seu velho self não mais existe, e o selfprofundo, o self nu, é o poderoso andarilho.2 1Agora, a donzela não está apenas desfigurada, mas faminta. Ela se ajoelhadiante de um pomar como se este fosse um altar — o que ele é —, o altar dos deusesselvagens do outro mundo. À medida que descemos até nossa natureza básica, asantigas formas automáticas de alimentação são eliminadas. Coisas do mundo quecostumavam ser alimento para nós perdem seu sabor. Nossas metas não mais nosatraem. Nossas realizações não têm mais interesse. Para onde quer que olhemos nomundo objetivo não há alimento para nós. Portanto, é um dos milagres maisautênticos da psique que, quando estamos tão desamparadas, a ajuda chega e bem nahora.A donzela vulnerável é acompanhada por um mensageiro da alma, o espíritode branco. Esse espírito de branco remove os obstáculos que a impediam dealimentar-se. Ele esvazia o fosso ao mexer na comporta. O fosso tem um significadooculto. Segundo os gregos antigos, no mundo subterrâneo, o rio chamado Estigesepara a terra dos vivos da terra dos mortos. Suas águas são cheias das recordaçõesde todos os feitos dos mortos desde o início dos tempos. Os mortos conseguemdecifrar essas recordações e mantê-las em ordem por terem uma visão mais aguçadadecorrente de não possuírem corpo físico.Para os vivos, porém, o rio é considerado um veneno. A menos que a travessiado ser vivo seja acompanhada por um guia espiritual, ele irá se afogar, afundandopara um outro nível do mundo subterrâneo, um lugar que é como uma névoa, e lá irávaguear para sempre. Dante teve seu Virgílio, Coatlique teve uma cobra viva que aacompanhou até o mundo de fogo, e a donzela sem mãos tem o espírito de branco.Portanto a princípio, a mulher escapa da mãe ainda adormecida e do pai ganancioso echeio de si, para em seguida deixar-se conduzir pela alma selvagem.Na história, o guia espiritual acompanha a donzela sem mãos até o outro ladodo fosso, o reino das árvores do mundo subterrâneo, o pomar do rei. Esse, também, éum remanescente das antigas religiões. Nelas, guias espirituais são sempredesignados para os jovens iniciandos. A mitologia grega é fértil em relatos de jovenssendo acompanhadas por mulheres-lobas, mulheres-leoas ou outras criaturas queserviam como suas iniciadoras. Mesmo em religiões naturais nos nossos tempos,como entre os navajos, os misteriosos yeibecheis são elementais animais queacompanham os ritos de iniciação assim como os de cura.A idéia psíquica aqui representada é a de que o mundo subterrâneo, àsemelhança do inconsciente dos seres humanos, é um torvelinho com muitascaracterísticas incomuns e irresistíveis: imagens, arquétipos, seduções, ameaças,torturas e provas. É importante para o processo de individuação da mulher que elatenha bom senso espiritual, ou que seja auxiliada por um guia que o tenha, para que308ela não caia na fantasmagoria do inconsciente, para que ela não se perca no meiodesse material torturante e sedutor. Como vemos na história, é mais importantepermanecer com a nossa fome e prosseguir a partir daí.Como Perséfone e as deusas da vida-morte-vida antes dela, a donzela entra poracaso numa terra onde há pomares mágicos e onde um rei aguarda por ela. A antigareligião começa agora a fulgir nessa história com intensidade cada vez maior. Nosmitos gregos2 2 havia duas árvores entrelaçadas acima dos portões do mundo dosmortos, e o Eliseu, o lugar para onde eram enviados os mortos consideradosvirtuosos, era composto de quê? — isso mesmo, de pomares.O Eliseu é descrito como um lugar de luz perpétua, onde as almas podiamoptar por renascer na terra à vontade. Ele é o doppelgänger, o duplo do mundoobjetivo. Ali podem ocorrer dificuldades, mas seu significado e o aprendizado por elasproporcionado são diferentes daqueles do mundo objetivo. No mundo terreno, tudo éinterpretado tendo-se em mente simples lucros e perdas. No mundo dos mortos, ouno outro mundo, tudo é interpretado levando-se em consideração os mistérios davisão verdadeira, da ação correta e a possibilidade de a pessoa passar a ter umconhecimento e uma força interior intensa.Na história, a ação está agora centrada na árvore frutífera, que em temposremotos era chamada de Árvore da Vida, Árvore do Conhecimento, Árvore da Vida eda Morte ou Árvore do Saber. Ao contrário de árvores com folhagens diversas, aárvore frutífera é uma árvore de alimento abundante — e não só de alimento, pois aárvore armazena água nos seus frutos. A água, o líquido fundamental do crescimentoe da continuidade, é absorvida pelas raízes que alimentam a planta pela ação capilar— uma rede de bilhões de ligações celulares pequenas demais para serem vistas — e aágua chega até o fruto e faz com que ele cresça e se embeleze.Por esse motivo, considera-se que o fruto é investido de alma, de uma força devida que deriva de uma certa quantidade de água, ar, terra, alimento e semente e quecontém tudo isso, além de ter um sabor divino. As mulheres que se alimentam dofruto, da água e da semente do trabalho nas florestas do outro mundo tambémcrescem psicologicamente na mesma proporção. Suas psiques engravidam epermanecem num estado de amadurecimento constante.Da mesma forma que a mãe oferece o seio ao bebê, a pereira do pomar curva-se para dar seu fruto à donzela. Essa seiva da mãe é a da regeneração. Comer a pêranutre a donzela, mas um ato mais comovente consiste em que o inconsciente, o seufruto, se curva para alimentá-la. Nesse sentido, o inconsciente dá um beijo nos lábiosda donzela. Ele lhe dá uma prova do Self, o hálito e a substância do seu próprio deusselvagem, uma comunhão selvagem. jA saudação a Maria por sua parenta Isabel2 3 no Novo,| Testamento talvez sejaum remanescente desse antigo entendimento entre as mulheres: "Bendito o fruto doteu ventre", diz ela. Nas religiões noturnas pregressas, a mulher, prenhe deconhecimento ao terminar sua iniciação, seria acolhida de volta ao mundo dos vivoscom uma bênção carinhosa das suas parentas.A notável expressão da história está no fato de que durante os tempos maissombrios o inconsciente feminino, o inconsciente uterino, a Natureza, alimenta aalma da mulher. As mulheres relatam que, no meio da sua descida, quando elas seencontram na escuridão mais profunda, elas sentem o toque levíssimo de uma pontade asa e se sentem iluminadas. Elas sentem que está ocorrendo uma nutriçãointerior, uma fonte de água abençoada que brota do chão ressecado... de onde elasnão sabem. Essa fonte não resolve o sofrimento, mas ajuda a nutrir quando nadamais se oferece. É o maná no deserto. É a água que brota das pedras. É o alimento do309ar rarefeito. Ela sacia a fome para que possamos prosseguir. E é isso o que interessa...prosseguir. Prosseguir na direção do nosso destino de conhecimento.A história ressuscita nosso conhecimento de uma promessa muito antiga; apromessa de que a descida nos será benéfica mesmo que esteja escuro, mesmo quetenhamos a impressão de estar perdidas. Mesmo em meio à falta de conhecimento, àfalta de visão, quando estamos "vagueando às cegas", existe "algo", "alguém"excessivamente presente que acompanha nosso ritmo. Viramos à esquerda, ele vira àesquerda. Viramos à direita, ele nos acompanha de perto, dando-nos amparo,abrindo o caminho para nós.Agora estamos num outro nigredo em que perambulamos sem saber o queserá de nós, e no entanto, nessa condição extremamente precária, somos levadas asorver da Árvore da Vida. Comer da Arvore da Vida na terra dos mortos é uma antigametáfora de fecundação. Na terra dos mortos, acreditava-se que a alma pudesseinvestir-se num fruto, ou em qualquer outro alimento, para que sua futura mãe acomesse, e a alma oculta no fruto começaria sua regeneração na carne dela. Portanto,aqui, nesse ponto praticamente central, através da pêra, estamos recebendo o corpoda Mãe Selvagem, estamos comendo aquilo que nós mesmas iremos nos tornar.2 4O quarto estágio — Encontrando o amor no outro mundoNa manhã do dia seguinte, o rei vem contar suas pêras. Está faltando uma, e ojardineiro revela o que viu. "Ontem à noite, dois espíritos esgotaram o fosso,entraram no jardim à luz do luar e um deles que era mulher e não tinha mãos comeua pêra que se oferecia a ela."Nessa noite, o rei fica de guarda com o jardineiro e o mago, que sabe conversarcom os espíritos. À meia-noite, a donzela vem flutuando pela floresta, com as roupasem farrapos o cabelo desfeito, o rosto sujo, os braços sem mãos e o espírito de brancoao seu lado.Mais uma vez, uma árvore curva-se graciosamente para chegar ao seu alcance,e a donzela sorve a pêra da ponta do ramo. O mago aproxima-se deles, mas nãomuito, e pergunta: "Vocês são deste mundo ou não são deste mundo?" "Eu fui outrorado mundo", responde a donzela. "No entanto, não sou deste mundo."O rei pergunta ao mago se ela é humana ou é um espírito e o mago respondeque ela é as duas coisas. O rei corre até ela, oferecendo-lhe lealdade e amor: "Nãorenunciarei a você. Deste dia em diante, eu cuidarei de você." Eles se casam, e elemanda fazer para ela um par de mãos de prata.O rei é uma criatura que transmite sabedoria na psique do outro mundo. Elenão é simplesmente qualquer rei velho, mas um dos principais guardiões doinconsciente da mulher. Ele cuida da botânica da alma que cresce — o pomar dele (eda sua mãe) está repleto de árvores da vida e da morte. Ele pertence à família dosdeuses selvagens. Como a donzela, ele é capaz de agüentar muito. E como a donzela,ele ainda tem mais uma descida à sua frente. Mas isso virá depois.Num certo sentido, seria possível dizer que ele está seguindo o rastro dadonzela. A psique sempre acompanha de perto seu próprio processo, como umasombra. Essa é uma premissa das sagradas. Ela quer dizer que, se você estivervagueando, sempre haverá mais alguém — pelo menos uma pessoa e muitas vezesmais de uma — que seja mais maduro e experiente e que somente espere que vocêbata à porta, bata na pedra, coma a pêra ou simplesmente apareça, para que eleanuncie sua chegada ao mundo subterrâneo. Essa presença carinhosa espera pelaexploradora andarilha e vela por ela. As mulheres conhecem isso muito bem. Elas a310chamam de pequeno tremeluzir da luz do insight, pressentimento ou simplesmentepresença.O jardineiro, o rei e o mago são três personificações maduras do arquétipo domasculino. Eles correspondem à trindade sagrada do feminino representada peladonzela, pela mãe e pela velha. Nessa história, a antiga divindade tríplice ou as três-deusas-em-uma são assim representadas: a donzela é retratada na mulher sem mãos;a mãe e a velha são as duas retratadas na mãe do rei, que entra na história mais tarde.A peculiaridade da história que a faz "moderna" está no fato de a imagem do demôniorepresentar uma figura que nos antigos ritos de iniciação feminina era geralmenteencarnada pela velha, na sua natureza dual de doadora e tomadora da vida. Nessahistória, o diabo é retratado apenas como tomador da vida.Entretanto, nas névoas do início dos tempos, há uma boa chance de que essahistória originalmente apresentasse a velha no papel de iniciadora/criadora deproblema, dificultando as coisas para a doce heroína de tal modo que pudesse ocorrero embarque da terra dos vivos para a terra dos mortos. Em termos psíquicos, issoestaria em harmonia com certos conceitos da psicologia junguiana, da teologia e dasantigas religiões noturnas segundo os quais o Self, ou na nossa terminologia a MulherSelvagem, semeia a psique com perigos e desafios para que o ser humano emdesespero recue até sua natureza original à procura de respostas e de força,reconciliando-se, portanto, com o grande Self selvagem e, daí em diante com a maiorfreqüência possível, agindo como um só ser.Por um lado, esse desvio na história afeta nossa informação acerca dos antigosprocessos de volta do outro mundo para a mulher. Na realidade, porém, essasubstituição da velha pelo diabo é de enorme aplicação ao nosso caso atual, pois, paradescobrir os antigos hábitos do inconsciente, muitas vezes nos vemos em luta contrao demônio sob a forma de imposições culturais, familiares ou intrapsíquicas quedesvalorizam a vida da alma do feminino selvagem. Nesse sentido, a história funcionade dois modos, seja deixando transparecer o suficiente dos antigos rituais para quepossamos imaginá-los, seja mostrando-nos como o predador natural tenta nos isolardos nossos poderes de direito, como ele tenta tirar de nós nosso trabalho maisprofundo.Os principais agentes de transformação presentes no pomar nessa ocasião são,na ordem aproximada de sua aparição, a donzela, o espírito de branco, o jardineiro, orei, o mago, a mãe/a velha e o diabo. Segundo a tradição, eles representam asseguintes forças intrapsíquicas.A DONZELAComo vimos, a donzela representa a psique sincera que esteve adormecida. Noentanto, uma heroína-guerreira encontra-se por baixo da sua aparência frágil. Elatem a resistência do lobo solitário. Ela é capaz de suportar a sujeira, a imundície, atraição, a mágoa, a solidão e o exílio do iniciando. Ela é capaz de vaguear pelo mundodos mortos e voltar, enriquecida ao mundo objetivo. Embora ela talvez não seja capazde colocá-las em palavras, ao descer pela primeira vez, ela está seguindo as instruçõese recomendações da Velha Mãe, a Mulher Selvagem. 'O ESPÍRITO DE BRANCOEm todas as lendas e contos de fadas, o espírito de branco é o guia, aquele quetem um conhecimento inato e delicado, que mais parece um desbravador para ajornada da mulher. Entre alguns dos mesemondók, considerava-se que esse espírito311seria um fragmento de um antigo e precioso deus estilhaçado que ainda se infundiaem cada ser humano. Pelo modo de se vestir, o espírito de branco está intimamenterelacionado com inúmeras deusas da vida-morte-vida de diversas culturas que sevestem todas de um branco radiante — La Llorona, Berchta, Hel, entre outras. Issosignifica que o espírito de branco é um auxiliar da mãe/velha que, na psicologia dosarquétipos é também uma deusa da vida-morte-vida.O JARDINEIROO jardineiro é quem cultiva a alma, um revitalizante guardião da semente, dosolo, da raiz. Ele é semelhante a Kokopelli, do povo hopi, um espírito corcunda quechega às aldeias a cada primavera e fertiliza as lavouras assim como as mulheres. Afunção do jardineiro é a de reproduzir. A psique da mulher precisa constantementesemear, tutorar e colher novas energias a fim de substituir a que estiver velha eexausta.Existe uma entropia natural, ou desgaste pelo uso, das peças psíquicas. Isso ébom; é assim que se espera que a psique funcione, mas cada um precisa ter energias-em-treinamento, prontas para a reposição. É esse o papel do jardineiro na funçãopsíquica. Ele não perde de vista a necessidade de mudança e de reabastecimento. Emtermos intrapsíquicos, existe vida constante, morte constante, substituição constantede idéias, imagens, energias.O REIO rei2 5 representa um tesouro de conhecimentos no outro mundo. Ele dispõeda capacidade de levar seu conhecimento interior até o mundo lá fora para pô-lo emprática, sem afetação, sem resmungos, sem desculpas. O rei é filho da rainha-mãe/velha. À sua semelhança, e provavelmente seguindo seu exemplo, ele se envolvenos mecanismos do processo vital da psique: a fragilidade, a morte e a volta àconsciência. Mais tarde na história, ao vaguear à procura da sua rainha perdida, elepassará por uma espécie de morte que o transformará de rei civilizado em reiselvagem. Ele encontrará sua rainha, podendo, assim, renascer. Em termos psíquicos,isso quer dizer que as antigas atitudes centrais da psique morrerão à medida que elaaprender outras. As antigas atitudes serão substituídas por pontos de vista novos ourenovados acerca de quase tudo na vida da mulher. Nesse sentido, o rei representa arenovação das atitudes e leis que regem a psique da mulher.O MAGOO mago, ou mágico,2 6 que o rei traz consigo para interpretar o que vê,representa a magia direta do poder da mulher. Coisas como a recordação num átimo,a visão a mil léguas de distância, a audição que cobre quilômetros, a capacidadesolidária de ver como se através dos olhos do outro — ser humano ou animal — tudoisso pertence ao instintual feminino. É o mago que compartilha dessas habilidades etambém, por tradição, ajuda a mantê-las e a fazê-las funcionar no mundo objetivo.Embora o mago possa ser de qualquer sexo, aqui ele é uma poderosa figuramasculina, semelhante nos contos de fadas ao irmão resoluto que ama tanto a irmã aponto de fazer tudo para ajudá-la. O mago sempre tem um potencial de transferência.Nos sonhos e na literatura, ele aparece como homem na mesma freqüência em queaparece como mulher. Ele pode ser masculino, feminino, animal ou mineral,exatamente da mesma forma que a velha, sua equivalente feminina, também312consegue trocar seus disfarces com facilidade. Na vida consciente, o mago ajuda acapacidade da mulher de se tornar aquilo que deseja parecer a qualquer momento.A RAINHA-MÃE/A VELHAA rainha-mãe/a velha nessa história é a mãe do rei. Essa figura representamuitas coisas, entre elas a fecundidade, a enorme autoridade para detectar os ardisdo predador e a capacidade de abrandar maldições. A palavra fecundidade parece tero som dos tambores quando pronunciada em voz alta, significa mais do que afertilidade; ela indica a vulnerabilidade, a capacidade de o solo ser vulnerável àconquista. Ela é aquele solo negro cintilante com mica, negras raízes peludas e toda, avida que passou antes, tudo decomposto num húmus perfumado. O termo fertilidadepossui a conotação de sementes, ovos, seres, idéias. A fecundidade é a matériafundamental na qual as sementes são colocadas, preparadas, aquecidas, incubadas,preservadas. É por isso que a velha mãe é muitas vezes chamada pelos seus nomesmais antigos — Mãe Terra, Mãe Poeira, Mam e Ma — pois ela é o estrume que faz comque as idéias aconteçam.O DIABONessa história, a natureza dual da alma da mulher, que tanto a aflige quanto acura, foi substituída por uma figura única, a do diabo. Como observamosanteriormente, essa figura do diabo representa o predador natural da psique damulher, um aspecto contrário à natureza que se opõe ao desenvolvimento da psique etenta eliminar todo o ânimo. Ela é uma força que se isolou do seu aspectorevitalizante. É uma força que precisa ser dominada e contida. A figura do demônionão é idêntica a uma outra força natural que aflige e instiga, também atuante napsique feminina, a força que eu chamo de alter-alma. A alter-alma aparece comfreqüência nos sonhos das mulheres, nos contos de fadas e nos mitos como umafigura mutante de velha que seduz e assedia a mulher até uma descida que em termosideais acaba numa reunião com seus recursos mais profundos.Portanto, aqui nesse pomar do outro mundo, aguarda-nos a impressionantereunião dessas poderosas partes da psique, tanto as masculinas quanto as femininas.Elas formam um conjunctio. Esse termo pertence à alquimia e indica uma uniãoaltamente transformadora de substâncias dessemelhantes. Quando ocorre o atritoentre esses opostos, resulta daí a ativação de certos processos intrapsíquicos. Elesagem como a pederneira em atrito com alguma pedra para fazer fogo. É através daconjunção e da pressão de elementos díspares habitando o mesmo espaço psíquicoque são criados o conhecimento, o insight e a energia profunda.A presença do tipo de conjunctio que temos nessa história indica a ativação deum verdejante ciclo de vida-morte-vida. Quando presenciamos uma reunião rara epreciosa como essa, sabemos que um matrimônio espiritual está iminente; sabemostambém que ocorrerá uma morte espiritual e que uma nova vida surgirá. Essesfatores prevêem o que está por vir. Conjunctio não é algo que se consiga comfacilidade. Trata-se de algo que ocorre em decorrência de um trabalho extremamenteárduo.Pois, cá estamos, com a roupa enlameada, caminhando por uma estrada nuncavista antes, e com o sinal da Mulher Selvagem reluzindo cada vez mais dentro de nós.313É legítimo dizer que esse tipo de conjunctio está insistindo numa surpreendenterevisão do seu velho self. Se estamos aqui no pomar, e conosco estão esses aspectospsíquicos identificáveis, não há como voltar atrás — temos de prosseguir.E o que mais dizer sobre essas pêras? Elas estão ali para quem tiver fome nalonga jornada no outro mundo. Diversas frutas são tradicionalmente usadas parasimbolizar o útero feminino, na maioria das vezes, as pêras, as maçãs, os figos e ospêssegos, muito embora, em geral, qualquer objeto que tenha forma exterior einterior e que traga no centro uma semente que pode se transformar num ser vivo —como os ovos, Por exemplo — possa transmitir a conotação da qualidade feminina da"vida dentro da vida". Aqui, as pêras, em termos arquetípicos, representam oirromper de uma nova vida, uma semente de uma nova identidade.Em grande parte dos mitos e dos contos de fadas, as árvores frutíferasencontram-se sob o domínio da Grande Mãe, da velha Mãe Selvagem, enquanto o reie seus homens recebem ordens dela. As pêras no pomar são contadas, pois nesseprocesso transformador tudo recebe a devida atenção. Não se trata de um projetofortuito. Tudo está registrado e controlado. A velha Mãe Selvagem sabe a quantidadede que dispõe dessas substâncias transformadoras. O rei vem contar as pêras, não porum sentimento de posse, mas para descobrir se alguém novo chegou ao outro mundopara começar sua iniciação profunda. O mundo da alma sempre aguarda o neófito e oandarilho.A pêra que se curva para alimentar a donzela é como um sino repicando emtodo o pomar subterrâneo, conclamando as fontes e as forças — o rei, o mago, ojardineiro e, afinal, a velha mãe — que se apressam a saudar, a apoiar, a auxiliar anova aprendiz.Figuras santas desde tempos imemoriais asseguram-nos de que na estradaaberta da transformação já há "um lugar a nós destinado". E até esse lugar, seja pelofaro, seja pela intuição, somos arrastadas ou nos vemos transportadas pelo destino.Todas nós acabamos chegando ao pomar do rei. Não há como escapar.Nesse episódio, os três atributos masculinos da psique da mulher — ojardineiro, o rei e o mago — são os vigias, os inquiridores e auxiliares na viagem damulher pelo outro mundo, onde nada é como aparenta ser. À medida que o aspectorégio da psique da mulher no outro mundo descobre ter havido uma alteração naordem do pomar, ele volta com o mago da psique, que tem condição de entenderquestões do mundo humano bem como do espiritual, que pesquisa as distinções entreos fatos psíquicos e o inconsciente.E assim eles observam enquanto o espírito mais uma vez esgota o fosso. Comomencionamos antes, esse fosso representa um símbolo semelhante ao do Estige, umrio venenoso através do qual as almas dos mortos eram transportadas em barcaças daterra dos vivos até a terra dos mortos. Ele não representava veneno para os mortos,apenas para os vivos. Cuidado, portanto, com aquela sensação de repouso erealização que pode seduzir os humanos a considerarem que um feito espiritual ou otérmino de um ciclo espiritual seja um ponto em que podem parar e descansar sobreos louros para todo o sempre. O fosso é um local de descanso para os mortos, umencerramento no final da vida, mas a mulher viva não pode ficar muito tempo pertodele para não se tornar letárgica em seus ciclos de produção da alma.2 7Como o símbolo do rio circular, o do fosso, a história nos avisa que essa águanão é qualquer água, mas de um tipo determinado. Ela é uma fronteira, semelhanteao círculo que a donzela traçou ao redor de si para manter o diabo afastado. Quandoentramos num círculo, ou o atravessamos, estamos entrando num outro estado doser, num outro estado de consciência, ou de falta dela, ou estamos passando por esseestado.314Nesse caso, a donzela está passando pelo estado de inconsciência reservadoaos mortos. Ela não deve beber dessa água, nem vadear por ela, mas, sim, passar peloleito seco. Em virtude de ter de passar pela terra dos mortos na sua descida, a mulheràs vezes fica confusa e pensa que terá de morrer. Isso, porém, não é verdade. Amissão consiste em passar pela terra dos mortos como criatura viva, pois é assim quese gera consciência.Esse fosso é, portanto, um símbolo extremamente significativo, e o fato de oespírito na história esvaziá-lo ajuda a que compreendamos o que precisamos fazer nanossa própria viagem. Não devemos nos deitar e adormecer felizes com o que járealizamos do nosso trabalho. Nem devemos mergulhar no rio numa louca tentativade acelerar o processo. Existe a morte com m minúsculo e a Morte com M maiúsculo.Aquela que a psique procura nesse processo dos ciclos da vida-morte-vida é lamuerte por un instante, não La Muerte Eterna.O mago aproxima-se dos espíritos, mas não muito, e pergunta: "Vocês são ounão são deste mundo?" E a donzela, vestida com as roupas selvagens e descuidadasde uma criatura desprovida de ego, e acompanhada pelo luminoso corpo branco doespírito, diz ao mago que está na terra dos mortos embora pertença aos vivos. "Eu fuioutrora do mundo. No entanto, não sou deste mundo." Quando o rei pergunta aomago se ela é humana ou se é um espírito, o mago responde que ela é as duas coisas.A enigmática resposta da donzela comunica que ela pertence ao mundo dosvivos mas que está acompanhando o ritmo da vida-morte-vida, e que, por essemotivo, ela é um ser humano em queda assim como uma sombra do seu self anterior.Ela pode viver dias no mundo da superfície, mas a transformação ocorre no mundosubterrâneo, e ela consegue estar nos dois, como La Que Sabé. Tudo isso ocorre paraque ela aprenda o caminho, para que ela limpe seu caminho, até o verdadeiro selfselvagem.Durante seminários baseados no tema da donzela sem mãos, faço algumasperguntas para ajudar as mulheres a começarem a esclarecer suas viagens pelomundo subterrâneo. As perguntas são propostas para que possam ser respondidastanto individualmente quanto pelo grupo. Fazer essas perguntas cria uma redeluminosa que se tece à medida que as mulheres conversam entre si. Elas lançam essarede na mente coletiva e a recolhem cheia das formas cintilantes, gotejantes, inertes,estranguladas, da vida interior das mulheres para que todas vejam e trabalhem comelas.Com a resposta a uma pergunta, surgem outras; e para aprender mais,respondemos também essas. Seguem-se algumas delas: Como se pode viver nomundo da superfície e no mundo subterrâneo ao mesmo tempo e na vida do dia-a-dia? O que precisamos fazer para descer até o mundo subterrâneo sozinhas? Quaiscircunstâncias na vida ajudam as mulheres nessa descida? Podemos optar quanto apartir ou ficar? Que ajuda espontânea você já recebeu da natureza instintiva numahora dessas?Quando as mulheres (ou os homens) se encontram nesse estado de duplacidadania, elas às vezes cometem o erro de pensar que afastar-se do mundo,abandonar a vida de rotina, com suas tarefas, seus deveres que não só atraem masirritam infinitamente, é uma brilhante idéia. No entanto, esse não é o melhorcaminho, pois o mundo objetivo nessas ocasiões é a única corda que resta presa aotornozelo da mulher que está suspensa, perambulando, trabalhando de cabeça parabaixo no mundo subterrâneo. Trata-se de uma hora de importância crucial, quando omundo objetivo precisa desempenhar seu papel adequado, exercendo uma tensão eum equilíbrio "de outro mundo" que ajuda a conduzir o processo a bom termo.315E assim prosseguimos perambulando no nosso caminho perguntando-nos —se a verdade fosse dita, realmente resmungando com nossos botões — "Será que eusou deste mundo ou do outro?" e respondendo "Sou dos dois." Nós nos lembramosdisso à medida que prosseguimos. A mulher num processo desses precisa ser dos doismundos. É esse tipo de movimento sem rumo que ajuda a eliminar o último resquíciode resistência, a última possibilidade de hubris, a arrasar a última objeção quepudéssemos imaginar, porque andar desse jeito é cansativo. No entanto, esse tipoespecífico de fadiga faz com que finalmente abandonemos as ambições e os receios doego para simplesmente acompanhar o que vier. Em conseqüência dessa atitude,nossa compreensão do nosso tempo nas florestas subterrâneas será profunda ecompleta.Na história, a segunda pêra curva-se para alimentar a donzela e, como esse reié o filho da velha Mãe Selvagem e como esse pomar pertence a ela, a jovem donzelana verdade prova o fruto dos segredos da vida e da morte. Como o fruto é umaimagem primordial dos ciclos de florescimento, crescimento, maturação efenecimento, o ato de comê-lo internaliza na inicianda um relógio psíquico queconhece os padrões da vida-morte-vida e que avisa para sempre quando chegou ahora de deixar algo morrer e prestar atenção a um novo nascimento.De que modo encontramos essa pêra? Quando mergulhamos nos mistérios dofeminino, dos ciclos da terra, dos insetos, dos animais, das aves, das árvores, dasflores, das estações, da correnteza dos rios e do seu nível, das pelagens espessas eralas dos animais de acordo com as estações, dos ciclos de transparência e opacidadenos nossos próprios processos de individuação, nos ciclos de desejo e indiferença nasexualidade, na religiosidade, na ascensão e na queda.Comer a pêra significa saciar nossa profunda fome criativa de escrever, pintar,esculpir, tecer, dizer o que pensamos, defender posições, apresentar esperanças,idéias e criações inauditas. É imensamente benéfico reintegrar nas nossas vidasatuais todos os antigos modelos e princípios femininos dos ciclos e da sensibilidadeinata que agora fertilizam nossa vida.Essa é a verdadeira natureza da árvore psíquica: ela cresce, ela dá, ela seesgota, ela deixa sementes para a renovação. Ela nos ama. É assim o mistério da vida-morte-vida. Ele é um modelo, dos mais antigos, de antes da água, antes da luz, ummodelo resoluto. Uma vez que tenhamos aprendido esses ciclos, seja o da pêra, o daárvore, do pomar, das idades e estágios da vida da mulher, podemos contar com ofato de que irão se repetir, no mesmo ciclo e do mesmo modo. O modelo é o seguinte:em toda morte há uma inutilidade que passa a ser útil quando descobrimos como nosrecuperar. O conhecimento que chegará a nós revela-se à medida que prosseguimos.Em tudo que é vivo, a perda gera um ganho real. Nossa missão é a de interpretar ociclo da vida-morte-vida, vivê-lo com a elegância que pudermos ter, uivar como umcão enlouquecido quando não pudermos ter nenhuma — e prosseguir, pois lá adianteestá a carinhosa família subterrânea da psique, que nos abraçará e nos ajudará.O rei ajuda a donzela a viver com maior capacidade no outro mundo da suamissão. E isso é bom, pois às vezes na descida sente-se menos como um acólito emais como um pobre monstro que por acaso fugiu do laboratório. Do seu pontoprivilegiado, no entanto, as figuras do mundo subterrâneo nos vêem como uma vidaabençoada lutando com dificuldades. Segundo a visão do outro mundo, somos umachama forte debatendo-se contra um vidro escuro para quebrá-lo, libertando-se. Etodos os elementos úteis no nosso lar subterrâneo apressam-se a nos ajudar.Nos tempos remotos, a descida da mulher ao outro mundo era realizada paraque ela se casasse com o rei (em alguns ritos, aparentemente não havia rei algum, e aacólita provavelmente se casava direto com a Mulher Selvagem do outro mundo).316Nessa história, vemos um remanescente disso quando o rei lança um olhar à donzelae de imediato, sem hesitação ou dúvida, sente amor por ela como se fosse sua igual.Ele a reconhece como igual, não apesar do seu estado selvagem, de andarilha,mutilado, mas por causa dele. O tema de ser tão carente, e no entanto tão protegida,continua. Muito embora perambulemos por aí sem mãos, semicegas, desamparadas esem nos banharmos, uma imensa força do Self pode nos amar e nos guardar junto aocoração.É freqüente que a mulher nesse estado sinta um enorme entusiasmo, do tipoque a mulher sente quando encontra um companheiro extremamente parecido comaquele com quem sonhava. É uma época estranha, paradoxal, pois estamos nasuperfície e ao mesmo tempo nas profundezas da terra. Estamos perambulando, e noentanto estamos sendo amadas. Não somos ricas, mas recebemos alimento. Emtermos junguianos, esse estado é chamado de "tensão dos opostos", na qual algumacoisa de cada pólo da psique se constela de uma vez, criando um novo campo. Napsicologia freudiana, isso se chama "bifurcação", na qual a atitude ou disposiçãoessencial da psique é dividida em duas polaridades: preto e branco, bem e mal. Entreos contadores de histórias, esse estado é chamado de "nascer de novo". É a época emque ocorre um segundo nascimento decorrente de uma fonte mágica, e daí em diantea alma passa a fazer jus a duas linhagens, uma do mundo físico, outra do mundoinvisível.O rei diz que irá proteger e amar a donzela. Agora a psique está maisconsciente. Haverá um casamento, uma união muito interessante entre o rei vivo daterra dos mortos e a mulher sem mãos da terra dos vivos. Um casamento entre doisparceiros tão díspares certamente poria à prova o amor mais magnífico entre duaspessoas. No entanto essa união está relacionada a todos aqueles casamentospicarescos nos contos de fadas nos quais são reunidas duas vidas cheias de energia,porém dessemelhantes. A borralheira e o príncipe, a mulher e o urso, a jovem e a lua,a mulher foca e o pescador, a donzela do deserto e o coiote. A alma absorve oconhecimento de cada entidade. É isso o que quer dizer "nascer pela segunda vez".Nos casamentos dos contos de fadas, como nos do mundo objetivo, o grandeamor e união entre seres diferentes pode durar para sempre, ou apenas até que oaprendizado esteja concluído. Na alquimia, a união dos opostos significa que logoocorrerão uma morte e um nascimento; e logo veremos esses dois na história.O rei manda fazer para a donzela um par de mãos espirituais, que agirão emsua defesa no mundo subterrâneo. É nessa fase que a mulher adquire perícia na suaviagem. Sua submissão à viagem é total. Ela como que caminha sobre os próprios pése mãos. Tomar nas mãos o mundo subterrâneo significa aprender a invocar ospoderes daquele mundo, direcioná-los, confortá-los e recorrer a eles, mas também aevitar seus aspectos desagradáveis, como a sonolência, entre outros. Se o símbolo damão no mundo objetivo contém radar sensorial dos outros, a mão simbólica do outromundo pode ver no escuro e através do tempo.A idéia de substituir partes mutiladas por membros de prata, ouro ou madeiratem uma história antiqüíssima. Em contos de fadas da Europa e das regiões polares, otrabalho na prata é a arte dos homunculi, dos duendes, dvergar, gnomos, diabretes eelfos, que, traduzidos em termos psicológicos, são aqueles aspectos elementais doespírito que vivem nas profundezas da psique e que a escavam à procura de idéiaspreciosas. Essas criaturas são pequenos mensageiros psíquicos, mensageiros entre aforça da alma e os seres humanos. Desde tempos imemoriais, os objetos criados demetais preciosos são associados a esses trabalhadores minuciosos e bastanteranzinzas. É mais um exemplo da psique em funcionamento em nos interesse muitoembora não estejamos presentes em todos lugares a todo momento.317Como acontece com todas as coisas do espírito, as mãos de prata contêm tantoa história quanto o mistério. Existe inúmeros mitos e contos que descrevem de ondetiveram origem as próteses mágicas, quem as formou, quem as fundiu quem as levou,quem as esfriou, quem as poliu e as instalou. Entre os gregos clássicos, a prata é umdos metais precioso da forja de Hefaístos. Como a donzela, o deus Hefaístos foimutilado num drama relacionado aos seus pais. É provável que Hefaístos e o rei noconto de fadas sejam figuras intercambiáveis.Hefaístos e a donzela de mãos de prata são irmão e irmã em termosarquetípicos. Os dois têm pais que não têm consciência do seu valor. QuandoHefaístos nasceu, seu pai, Zeus exigiu que ele fosse dado, e sua mãe, Hera, obedeceu— pelo menos até que o menino crescesse. Ela então reintegrou Hefaístos ao Olimpo.Ele havia se tornado um ourives e um prateiro de extraordinário talento. Ocorreuuma discussão entre Zeus e Hera, pois Zeus era um deus ciumento. Hefaístos tomouo lado da mãe na desavença, e Zeus atirou o rapaz lá do alto até os contrafortes,destroçando suas pernas.Hefaístos, agora aleijado, recusou-se a desistir e a morrer. Ele acendeu na suaforja o fogo mais forte que conseguiu e ali criou para si mesmo um par de pernas,feitas de prata e de ouro dos joelhos para baixo. Passou, então, a fazer todo tipo deobjeto mágico, tornando-se um deus do amor e da restauração mística. Pode-se dizerque ele é o patrono de todas as coisas e seres humanos que estão mutilados,rachados, fendidos, partidos, lascados e deformados. Ele sente um amor especial porquem nasce aleijado e por quem teve seu coração partido ou seus sonhos destruídos.Para todos esses casos, ele dispõe de curas que cria na sua fantástica forja demetais, refazendo um coração com veias da mais fina ourivesaria, fortalecendo ummembro aleijado com um revestimento de ouro e prata, investindo nele uma funçãomágica que compense a mutilação.Não é por acaso que os caolhos, os mancos, aqueles que têm membrosatrofiados ou outras anomalias físicas sempre foram procurados como detentores deconhecimentos especiais. Seu defeito ou diferença força essas pessoas desde cedo apenetrar em regiões da psique normalmente reservadas para o que é antiqüíssimo. Eelas são protegidas por esse carinhoso artesão da psique. A certa altura, ele fez dozemoças cujos membros eram de prata e ouro, e que caminhavam, falavam econversavam. Diz a lenda que ele se apaixonou por uma delas e implorou aos deusesque a tornassem humana, mas essa já é uma outra história.Receber mãos de prata significa ser investido com os talentos das mãosespirituais — a capacidade de curar com o toque das mãos, a capacidade de ver noescuro, a de adquirir conhecimentos poderosos através de sensações físicas. Essasmãos dispõem de toda uma medicina psíquica com a qual podem nutrir, aliviar eapoiar. Nesse estágio, a donzela recebe o dom do toque da curandeira ferida. Essasmãos psíquicas irão permitir que ela compreenda melhor os mistérios do outromundo, mas elas também serão guardadas como presentes quando seu trabalhoestiver concluído e ela subir novamente.É típico desse estágio da descida que ocorram atos estranhos, misteriosos ebenéficos, independentes da vontade do ego e que resultam do recebimento das mãosespirituais — ou seja, um místico vigor medicinal. Nos tempos antigos, essas(capacidades místicas pertenciam às velhas das aldeias. No entanto, elas não asconquistavam com seu primeiro cabelo grisalho. Eram acumuladas ao longo de anosde esforços, desse esforço de resistência. E é isso também o que estamos fazendo.Seria possível dizer que as mãos de prata representam a assunção da donzela amais um papel. Ela é, portanto, coroada, não com uma coroa na cabeça, mas commãos de prata nos tocos dos braços. Essa é sua coroação como rainha do outro318mundo. Aplicando apenas um pouco de paleomitologia, consideremos que, namitologia grega, Perséfone não era só mulher, mas também rainha da terra dosmortos.Em histórias menos conhecidas a respeito dela, ela passa por diversostormentos como o de ficar três dias pendurada da Árvore do Mundo a fim de redimiras almas que não têm sofrimento próprio suficiente para aprofundar seu espírito.Esse Cristo feminino repercute na história da donzela sem mãos. O paralelismo éainda reforçado pelo fato de o Eliseu, onde Perséfone vivia no outro mundo, significar"terra das maçãs" — sendo alisier um termo pré-gálico para sorb, maçã — e o Avalonarturiano também tem o mesmo significado. A donzela sem mãos está diretamenteassociada à macieira florida.Essa é uma criptologia antiga. Quando aprendemos a decifrá-la, vemos quePerséfone da terra das maçãs, a donzela sem mãos e a macieira florida são a mesmahóspede temporária da região selvagem. Em todos esses casos, percebemos que oscontos de fadas e a mitologia nos deixaram um mapa bem claro dos conhecimentos epráticas do passado e de como devemos proceder no presente.Portanto, aqui no final da quarta tarefa da donzela sem mãos, poderíamosdizer que está completo o trabalho de descida da donzela, já que ela é coroada rainhada vida e da morte. Ela é a mulher lunar que sabe o que acontece à noite; até opróprio sol precisa passar por ela debaixo da terra a fim de se renovar para o dia.Essa, porém, ainda não é a lysis, a solução final. Estamos apenas a meio caminho datransformação, um ponto em que somos amadas, embora estejamos prontas parafazer um lento mergulho em outras profundezas. E assim, prosseguimos.O quinto estágio — O tormento da almaO rei parte para ir lutar num reino distante, pedindo à mãe que cuide da jovemrainha e que mande avisá-lo se sua esposa der à luz. A jovem rainha tem um lindobebê, e a jubilosa notícia é enviada ao rei. No entanto, o mensageiro adormece juntoao rio, e o diabo surge e troca a mensagem por outra que diz que a rainha deu à luzuma criança que é metade cachorro.O rei fica horrorizado, mas mesmo assim manda de volta uma recomendaçãono sentido de que amem a rainha e cuidem dela nesse transe terrível. O mensageiromais uma vez adormece junto ao rio, e o diabo surge novamente e troca a mensagempor uma que manda matar a rainha e a criança. A velha mãe, abalada por esse pedido,manda pedir uma confirmação, e vão e voltam os emissários, sempre adormecendo acada vez que chegam ao rio. As mensagens trocadas pelo diabo vão ficando cada vezmais perversas, sendo a última: "Guardem a língua e os olhos da rainha como provade que ela está morta."A mãe do rei recusa-se a matar a doce e jovem rainha. Em vez disso, elasacrifica uma corça e guarda escondidos sua língua e seus olhos. Ela ajuda a jovemrainha a amarrar o bebê ao seu peito, cobre-a com um véu e diz que ela precisa fugirpara salvar a vida. Elas choram e se beijam na despedida.Como o Barba-azul, o famoso Jasão do velocino de ouro, o hidalgo em "LaLlorona", e outros maridos/amantes mitológicos e dos contos de fadas, o rei casa-se eé logo chamado a se afastar. Por que motivo esses maridos mitológicos estão sempreindo embora logo depois da noite de núpcias? A razão é diferente em cada história,mas o fato psíquico essencial é o mesmo: a régia energia da psique recua e se afastapara que possa ocorrer o próximo passo no processo da mulher, e para que seja postaà prova sua postura psíquica recém-adquirida. No caso do rei, ele não abandonou,pois sua mãe cuida da mulher na sua ausência.319O próximo passo consiste na formação do relacionamento da mulher com avelha Mãe Selvagem e com o fato de dar à luz. Está em prova o vínculo de amor entrea donzela e o rei e entre a donzela e a velha mãe. Um diz respeito ao amor entre osopostos; o outro está ligado ao amor do profundo Self feminino.A partida do rei é um leitmotiv universal nos contos de fadas. Quandosentimos, não que o apoio nos foi retirado, mas uma redução da proximidade desseapoio, podemos ter certeza de que um período de provas está prestes a começar,período no qual será exigido de nós que nos nutramos somente da memória da almaaté que o amado retome. É então que nossos sonhos noturnos, especialmente os maisimpressionantes e mais fortes, são o único amor que teremos durante algum tempo.Seguem-se alguns dos sonhos que as mulheres disseram ter sido de enormesustento para elas nesta fase.Uma mulher de meia-idade, delicada e espirituosa, sonhou que via na terrapreta um par de lábios, que ela se deitava no chão e que os lábios sussurravamalguma coisa para ela e, então, inesperadamente, eles lhe davam um beijo no rosto.Uma outra mulher muito trabalhadora teve um sonho de uma simplicidadeenganosa: que ela dormia em sono profundo a noite inteira. Quando despertou dessesonho, ela afirmou sentir-se perfeitamente descansada, que não havia um feixemuscular, um feixe nervoso, uma célula que estivesse fora do lugar dentro do seucorpo inteiro.Ainda outra mulher sonhou que estava sofrendo uma cirurgia de coraçãoaberto e que a sala de cirurgia não tinha teto de modo que a iluminação provinha dopróprio sol. Ela sentia a luz do sol tocar o seu coração exposto e ouviu o cirurgiãodizer que nenhuma outra cirurgia era necessária.Sonhos como esses são experiências da natureza feminina selvagem. Eles sãoestados de sentimentos profundos em termos emocionais e muitas vezes físicos quefuncionam como uma reserva de alimentos. Podemos recorrer a ela quando é parconosso sustento espiritual.Quando o rei vai embora em alguma aventura, sua contribuição psíquica paraa descida é mantida pelo amor e pela memória. A donzela compreende que oprincípio régio do outro mundo está comprometido com ela e não a abandonará,como prometeu antes de se casar. Muitas vezes, nessa época, a mulher está "cheia desi mesma". Ela está grávida, ou seja, impregnada de uma idéia nascente acerca do quesua vida pode vir a se tornar se ao menos ela prosseguir com seus esforços. É umperíodo mágico e frustrante, como iremos ver, pois esse é um ciclo de descidas, e hámais uma logo em seguida.É em virtude da explosão de vida nova que a vida da mulher mais uma vezparece tropeçar perto demais da borda e salta direto no abismo. Dessa vez, porém, oamor do masculino interno e o velho Self selvagem irão apoiá-la como nunca antes.A união do rei e da rainha do outro mundo gera um filho. Um filho feito nooutro mundo é uma criança mágica que tem todo o potencial associado ao mundosubterrâneo, como por exemplo a audição aguçada e a capacidade inata de pressentir,mas aqui ela está em seu Anlage, ou estágio "daquilo que irá ser". É nessa hora que asmulheres em viagem têm idéias surpreendentes, alguns poderiam dizer grandiosas,que resultam de ter olhos e expectativas novos e esperançosos. Entre as mais jovens,isso pode ser tão simples quanto a procura de novos interesses e novos amigos. Paraas mais velhas, isso pode representar toda uma epifania tragicômica de divórcio,reconstituição e um felizes-para-sempre sob medida para cada uma.O filho do espírito faz com que mulheres sedentárias saiam a escalar os Alpesaos quarenta e cinco anos de idade. É o filho do espírito que faz com que a mulherabandone toda uma vida de fixação no chão encerado para matricular-se na320universidade. É o filho do espírito que leva a mulher que está jogando tempo fora,dedicando-se apenas ao que lhe dá segurança, a ganhar a estrada encurvada sob opeso da mochila.Dar à luz é o equivalente psíquico de adquirir identidade, um self, ou seja, teruma psique não-dividida. Antes desse nascimento de nova vida no outro mundo, éprovável que a mulher considere que todas os aspectos e personalidades dentro de sisejam como um caldeirão de nômades que entram e saem da sua vida ao acaso. Como nascimento no outro mundo, a mulher aprende que tudo que a toque mesmo deleve faz parte dela. Às vezes é difícil fazer essa diferenciação de todos os aspectos dapsique, especialmente no que diz respeito às tendências e impulsos que consideramosrepulsivos. O desafio de amar aspectos desagradáveis de nós mesmas é um dosmaiores esforços já enfrentados por uma heroína.Pode ocorrer que tenhamos medo de que uma detecção de mais de umaidentidade dentro da psique poderia significar que somos psicóticas. Embora seja realque as pessoas com perturbações psicóticas também vivenciem muitas identidades,identificando-se com elas ou opondo-se a elas com bastante energia, a pessoa que nãosofre de nenhum problema psicótico mantém todos os seus eus interiores de umaforma ordenada e racional. Eles são bem utilizados; a pessoa cresce e prospera. Paraa maioria das mulheres, ser mãe e criar os eus internos é um trabalho criativo, umaforma de conhecimento, não um motivo para o abatimento.Portanto, a donzela sem mãos está esperando um bebê, um novo e pequeninoself selvagem. O corpo na gravidez faz o que quer fazer. A nova vida prende-se,divide-se, cresce. A mulher nesse estágio do processo psíquico pode entrar em outraenantiodromia, o estado psíquico em que tudo que um dia foi considerado valioso jánão é mais tão valioso e, além do mais, pode ser substituído por desejos extremos einusitados por iniciativas, experiências e visões estranhas e raras.Para algumas mulheres, por exemplo, o casamento foi um dia a razão de ser detudo. No entanto, numa enantiodromia, elas querem se soltar: o casamento épéssimo, o casamento é um saco, o casamento é uma Scheisse, uma merda,decepcionante. Troque a palavra casamento pelos termos amante, emprego, corpo,arte, vida e opções e você perceberá o exato estado de espírito dessa época.E ainda há os desejos. É mesmo! A mulher pode ansiar por estar perto da água,ou por deitar de bruços, com o rosto na terra, sentindo seu cheiro selvagem. Elatalvez sentisse ter de dirigir com o vento batendo no rosto. Ela pode ter de plantaralgo, de capinar algo, de arrancar plantas do chão ou de enfiá-las no chão. Ela podeter de sovar e assar, absorta na massa até os cotovelos.Ela pode precisar fazer excursões selvagens pelas montanhas, saltando de umarocha para outra, experimentando ouvir o eco de sua voz nas pedras. Ela podeprecisar de horas de noites estreladas, em que as estrelas sejam como pó-de-arrozderramado sobre um piso de mármore negro. Ela pode ter a impressão de que irámorrer se não sair dançando nua numa tempestade de verão, se não ficar sentada emsilêncio total, se não voltar para casa manchada de tinta, manchada de cor, manchadade lágrimas, manchada da lua.Um novo self está a caminho. Nossa vida interior, como a conhecíamos atéagora, está prestes a mudar. Embora isso não queira dizer que devamos descartar osaspectos razoáveis e especialmente os que fornecem apoio, numa espécie dearrumação enlouquecida da casa, é verdade que nessa descida o mundo objetivo eseus ideais fenecem; e durante algum tempo ficaremos irrequietas e insatisfeitas, poisa satisfação, a realização, reside no processo de nascer na realidade interior.Aquilo pelo que ansiamos jamais poderá ser concretizado por um parceiro, umemprego, pelo dinheiro, por um novo isso ou aquilo. E esse Self-criança que estamos321esperando é produzido exatamente por esse meio — pela espera. À medida que otempo passa na nossa vida e nos nossos esforços no outro mundo, o bebê cresce paravir a nascer. Na maioria dos casos, os sonhos noturnos da mulher irão prever onascimento: a mulher sonha literalmente com um novo filho, um novo lar, uma vidanova.Agora a mãe do rei e a jovem rainha ficam juntas. A mãe do rei é adivinhemquem? — a velha La Que Sabé. Ela conhece todos os costumes. A rainha-mãerepresenta tanto os cuidados maternos ao estilo de Deméter quanto umenvelhecimento como o de Hécate2 8 no inconsciente das mulheres.2 9Essa alquimia feminina de donzela, mãe e velha curandeira é espelhada norelacionamento entre a donzela sem mãos e a mãe do rei. Elas são uma equaçãopsíquica semelhante, embora nesse conto a mãe do rei seja apenas esboçada, como adonzela no início da história, com seu rito do vestido branco e do círculo de giz, avelha mãe também conhece seus ritos antigos, como iremos ver.Uma vez nascido o Self-criança, a velha rainha-mãe envia ao rei umamensagem sobre o bebê da jovem rainha. O mensageiro parece estar bem de saúdemas, à medida que se aproxima de um córrego, ele sente cada vez mais sono,adormece, e o diabo aparece. Essa é uma pista que nos diz que haverá novamente umdesafio à psique durante sua próxima tarefa no outro mundo.Na mitologia grega, existe no outro mundo um rio chamado Letes, e beber dassuas águas faz com que a pessoa se esqueça de tudo que disse ou que fez. Em termospsicológicos, isso quer dizer estar adormecido para a própria vida real. O emissárioque deveria promover e realizar a comunicação entre esses dois importanteselementos da nova psique não consegue resistir à força destrutiva/sedutora dapsique. A função comunicativa da psique fica entorpecida, deita-se, adormece e seesquece.Pois, adivinhem quem está sempre aprontando? Ora, o velho rastreador dedonzelas, o diabo faminto. Pelo uso do termo diabo na história, percebemos comoesse conto recebeu acréscimos de materiais religiosos mais recentes. No conto, omensageiro, o córrego e o sono que provoca o esquecimento revelam que a antigareligião está logo abaixo do nível superficial da história, a camada imediatamenteinferior.Esse é o modelo arquetípico de descida desde o início dos tempos, e nóstambém seguimos esse sistema imemorial. Da mesma forma, temos uma seqüênciade missões terríveis atrás de nós. Vimos a respiração fumegante da Morte.Ultrapassamos as florestas que nos agarravam, as árvores ambulantes, as raízes quenos faziam tropeçar, a névoa que nos deixava cegas. Somos heroínas psíquicas comuma valise cheia de medalhas. E quem pode nos culpar agora? Queremos sódescansar. Merecemos descansar, pois passamos por muitas atribulações. E por issodeitamos. Junto a um lindo córrego. O processo sagrado não está esquecido, é só... ésó... que queríamos dar um tempo, só um pouquinho, fechar os olhos só por uminstante...E antes que percebamos, o diabo de um salto troca a mensagem que deveriatransmitir o amor e a alegria por uma destinada a provocar repulsa. O diaborepresenta a irritação psíquica que nos atormenta com seu deboche: "Você voltou àsua antiga inocência e ingenuidade agora que se sente amada? Agora que deu à luz?Você acha que tudo está acabado, sua boba?"E, como estamos perto do Letes, continuamos a roncar. É esse o erro que todasnós cometemos — não uma vez, mas muitas vezes. Nós nos esquecemos de noslembrar do diabo. A mensagem é trocada de um tom jubiloso, "A rainha deu à luzuma linda criança" para uma calúnia, "A rainha deu à luz uma criança que é metade322cachorro". Numa versão da história, a mensagem trocada é ainda mais explícita: "Arainha deu à luz uma criança que é metade cachorro por ter copulado com as feras dafloresta."Essa imagem de um ser metade cachorro não é casual, mas na realidade umbelo fragmento das antigas religiões centradas em deusas desde a Europa até a Ásia.Naquela época, as pessoas adoravam uma deusa de três cabeças. As deusas de trêscabeças são representadas por Hécate, a Baba Yaga, a Mãe Holie, Berchta e Ártemis,entre outras. Cada uma aparecia como um desses animais ou tinha grande intimidadecom eles.Nas religiões mais antigas, essas e outras divindades femininas selvagens epoderosas transmitiam as tradições de iniciação feminina e ensinavam às mulherestodos os estágios da vida feminina, desde a donzela até a mãe e a velha enrugada. Darà luz um ser que é metade cachorro é uma degradação deformada das antigas deusasselvagens cujas naturezas instintuais eram consideradas sagradas. A religião maisrecente tentou conspurcar os sagrados significados das divindades tríplices,insistindo no ponto de que elas copulavam com animais e estimulavam seusseguidores a fazer o mesmo.Foi a essa altura que a Mulher Selvagem foi derrubada e enterrada nasprofundezas da terra e o lado selvagem das mulheres começou não só a definharcomo a precisar ser mencionado em sussurros e em locais secretos. Em muitos casos,as mulheres que amavam a velha Mãe Selvagem tiveram de proteger sua vida comcuidado. Finalmente, esse conhecimento somente transparecia em contos de fadas,no folclore, em estados de transe e nos sonhos. E graças a Deus por isso.Enquanto no "Barba-azul" soubemos da existência do predador natural comoalguém que corta as ações, sentimentos e idéias das mulheres, aqui na história dadonzela sem mãos examinamos um aspecto mais sutil mas imensamente poderoso dopredador, um aspecto que devemos enfrentar na nossa psique, e cada vez mais comfreqüência diária na nossa própria sociedade real."A donzela sem mãos" revela como o predador tem a capacidade de distorceras percepções humanas e as compreensões vitais de que precisamos para desenvolverdignidade moral, amplitude de visão e uma ação solidária na nossa vida e no mundo.No "Barba-azul", o predador não permite que ninguém sobreviva. Já na história dadonzela sem mãos, o diabo permite a vida, mas procura impedir que a mulher refaçao vínculo com os profundos conhecimentos da Mulher Selvagem, aquela naturezainstintual que possui uma precisão automática de percepção e de ação.Portanto, quando o diabo troca a mensagem no conto, esse fato pode ser emcerto sentido considerado como um registro fiel de um acontecimento histórico, umacontecimento que está especialmente relacionado à mulher moderna na sua missãopsíquica de descida e de conscientização. É digno de nota que muitos aspectos dacultura (na acepção do sistema de pensamento coletivo e dominante num grupo depessoas que vivam em proximidade suficiente para se influenciarem mutuamente)ainda atuem como o diabo no que diz respeito ao trabalho interior, à vida pessoal eaos processos psíquicos das mulheres. Eliminando um pouco aqui e apagando maisum pouco acolá, cortando uma raiz aqui e vedando uma abertura mais adiante, o"diabo" da cultura e o predador intrapsíquico fazem com que gerações de mulheressintam medo mas continuem perambulando sem a menor pista das causas, ou daprópria perda da natureza selvagem, que poderiam revelar tudo para elas.Embora seja verdade que o predador tenha uma preferência pela caça que decerto modo apresenta a alma faminta, que sinta solidão da alma ou que se apresentedebilitada sob algum outro aspecto, os contos de fadas demonstram-nos que opredador se vê atraído também pela consciência, pela renovação, pelo alívio e pela323liberdade recém-adquirida. Assim que percebe um desses aspectos, eleimediatamente aparece.Inúmeros enredos realçam o predador, incluindo-se os mencionados nestelivro, bem como contos de fadas como "Cap of Rushes" e "All Fur", e passando pelosmitos sobre a grega Andrômeda e a asteca Malinche. As estratégias usadas consistemna difamação dos objetivos da protagonista, no emprego de linguagem depreciativapara a descrição da vítima, nas críticas irracionais, nas proibições e nas puniçõesinjustifícáveis. São esses os meios pelos quais o predador troca as mensagensvitalizantes entre a alma e o espírito por mensagens letais que nos cortam o coração,despertam nossa vergonha e, o que ainda é mais importante, nos deixam inibidaspara tomar atitudes correias.Em temos culturais, podemos dar muitos exemplos de como o predador moldaidéias e sentimentos a fim de roubar a luz da mulher. Um dos exemplos maissurpreendentes da perda da percepção natural consiste nas gerações de mulheres3 0cujas mães interromperam a tradição de ensinar e preparar suas filhas para acolhê-las naquele que é o aspecto mais básico e físico do ser mulher, a menstruação. Nanossa cultura, mas também em muitas outras, o diabo trocou a mensagem de talforma que o primeiro sangramento e todos os ciclos subseqüentes fossem cercados dehumilhação em vez de assombro. Isso fez com que milhões de jovens mulheresperdessem a herança do seu corpo miraculoso e, em vez disso, sentissem medo deestar morrendo, sofrendo alguma doença ou sendo punidas por Deus. A cultura e osindivíduos dentro da cultura captaram a mensagem deformada pelo diabo semexaminá-la, passando-a adiante de uma forma impressionante, transformando assimo período da mulher pleno das sensações mais intensas, em termos emocionais esexuais, num período de vergonha e punição.Como podemos depreender da história, quando o predador invade umacultura, seja ela a de uma psique, seja a de uma sociedade, os vários aspectos ouindivíduos dessa cultura têm de usar de astúcia, ler nas entrelinhas, manter suaposição, para que não se vejam carregados pelas alegações escandalosas masatraentes do predador. Quando há um excesso do predador e uma carência da almaselvagem, as estruturas religiosas, sociais e emocionais da cultura começam a mudaro natural para o artificial, o selvagem para o não-selvagem e a fazer especulaçõessombrias acerca da natureza instintual. É então que métodos dolorosos e antinaturaissubstituem o que anteriormente era abordado com sabedoria e reflexão.Entretanto, por mais que o diabo minta e tente mudar as belas mensagensacerca da vida real da mulher para mensagens perversas, invejosas e desanimadoras,a mãe do rei vê realmente o que está ocorrendo e se recusa a sacrificar a filha. Emtermos modernos, ela não tentaria silenciá-la, não a aconselharia a não dizer averdade, não a estimularia a fingir ser menos para manipular mais. Essa figura demãe selvagem do outro mundo corre o risco de represálias ao seguir o que ela sabeser o melhor caminho. Em vez de ser sua cúmplice, ela é mais esperta do que opredador. Ela não cede. A Mulher Selvagem sabe o que é íntegro, sabe o que ajudará amulher a prosperar, reconhece um predador ao ver um, sabe o que fazer a respeito.Mesmo quando pressionada pelas mensagens culturais ou psíquicas mais deturpadas,mesmo com um predador à solta na cultura ou na psique individual, todas nós aindapodemos ouvir suas instruções selvagens originais e agir de acordo com elas.É isso o que as mulheres aprendem quando cavam até atingir sua naturezaselvagem e instintiva, quando realizam o trabalho da iniciação profunda e dodesenvolvimento da consciência. Elas recebem uma enorme capacitação através dodesenvolvimento da visão, da audição, do ser e do fazer selvagens. As mulheresaprendem a procurar o predador em vez de espantá-lo, ignorá-lo ou de serem gentis324com ele. Elas aprendem seus truques, seus disfarces e seu jeito de pensar. Elasaprendem a "ler nas entrelinhas" das mensagens, imposições expectativas oucostumes que foram transformados de verdadeiros em manipuladores. Em seguida,quer o predador esteja emanando do nosso próprio meio psíquico, quer seja do meiocultural, quer de ambos, agora temos perspicácia e somos capazes de enfrentá-lo defrente e fazer o que precisar ser feito.O diabo na história simboliza qualquer coisa que corrompa a compreensão dosprofundos processos femininos. Sabemos que não é preciso um Torquemada3 1 paraatormentar a alma das mulheres. Elas também podem ser atormentadas pela boavontade de métodos novos, porém antinaturais, que, se levados ao exagero, roubemda mulher sua benéfica natureza selvagem e sua capacidade de criar alma. A mulhernão precisa viver como se tivesse nascido no ano 1000 a. C. No entanto o antigoconhecimento é universal, um aprendizado eterno e imortal, que terá tanta aplicaçãodaqui a cinco mil anos quanto hoje e quanto há cinco mil anos. É um conhecimentoarquetípico, e esse tipo de sabedoria é atemporal. Convém lembrar que o predadortambém é atemporal.Num sentido totalmente diverso, o trocador de mensagens, por ser uma forçainata e contrária existente na psique e no mundo, opõe-se naturalmente ao novo Self-criança. No entanto, paradoxalmente, como temos de reagir de modo a combater essaforça ou a compensá-la, a própria luta nos fortalece imensamente. No nosso própriotrabalho psíquico, recebemos constantemente mensagens trocadas pelo diabo — "Souboa nisso; não sou tão boa assim. Meu trabalho é profundo; meu trabalho é bobo.Estou melhorando; não estou saindo do lugar. Tenho coragem; sou covarde. Tenhoconhecimento; deveria ter vergonha de mim mesma " Essas mensagens, no mínimo,confundem. Portanto, a mãe do rei sacrifica uma corça no lugar da jovem rainha. Napsique, como na cultura em geral, há uma estranha característica psíquica. Não é sóquando as pessoas estão famintas e carentes que o diabo aparece, mas também àsvezes quando houve um acontecimento de rara beleza, nesse caso, o nascimento deum lindo bebê. Mais uma vez, o predador é sempre atraído pela luz, e o que é maisluminoso do que uma vida nova?Existem, porém, outros entes dissimulados dentro da psique que tambémprocuram menosprezar tudo que é novo ou empanar seu brilho. No processo deaprendizado da mulher no outro mundo, é um fato psíquico que, se alguém deu à luzalgo de belo, algo perverso também irá surgir, mesmo que momentaneamente, algoque sinta inveja, que careça de compreensão ou que demonstre desdém. A novacriança será repreendida, será chamada de feia e será condenada por um antagonistapersistente ou mais de um. O nascimento do novo faz com que complexos, tanto o damãe negativa quanto o do pai negativo, bem como o de outras criaturas prejudiciais,surjam do depósito de lixo psíquico e tentem, no mínimo, criticar acirradamente anova ordem e, na pior das hipóteses, fazer desanimar a mulher e seu novo rebento,idéia, vida ou sonho.Trata-se do mesmo roteiro seguido pelos pais ancestrais, Crono, Urano etambém Zeus, que sempre procuraram comer ou banir seus filhos por um medosinistro de que os filhos os atacassem para assumir seu lugar. Em termos junguianos,essa força destrutiva seria chamada de complexo, um sistema organizado desentimentos e idéias na psique que se mantém inconsciente ao ego e que, portanto,consegue de certo modo impor sua vontade a nós. No ambiente psicanalítico, oantídoto é a consciência dos nossos talentos e das nossas fraquezas, para que ocomplexo não consiga agir isoladamente.Em termos freudianos, dir-se-ia que essa força destrutiva emana do id, umterritório psíquico sombrio, indefinido mas infinito, onde vivem, espalhados como325destroços e tornados cegos pela falta de luz, todas as idéias, impulsos, desejos e atosesquecidos, reprimidos e revulsivos. Nesse ambiente psicanalítico, a solução éalcançada através da lembrança de impulsos e pensamentos inferiores, da suaconscientização, da sua descrição, rotulação e classificação, com o objetivo de diluirseu potencial.Segundo algumas histórias da Islândia, essa força mágica destrutiva interna àpsique é às vezes Brak, o homem de gelo. Há uma antiga história na qual é cometidoo crime perfeito. Brak, o homem de gelo, mata uma mulher humana que não retribuiseu afeto. Ele a mata com uma adaga de gelo. A adaga, assim como o homem, derreteao sol do dia seguinte, não havendo, portanto, arma para denunciar o assassino. Dopróprio assassino também não sobrou nada.A figura sinistra do homem de gelo do mundo dos mitos possui a mesmamística estranha de aparecimento/desaparecimento característica dos complexos dapsique humana, bem como o mesmo modus operandi do diabo na história da donzelasem mãos. É por isso que o aparecimento do diabo é tão desnorteante para ainicianda. À semelhança do homem de gelo, ele surge do nada, comete o assassinato edepois desaparece, dissolvido no nada, sem deixar rastros.Essa história, porém, nos transmite uma pista excelente: se você sente queperdeu sua missão, sua vitalidade, se você se sente confusa, ligeiramente desligada,procure o diabo, o que arma emboscadas para a alma dentro da sua própria psique.Se você não conseguir vê-lo, ouvi-lo, apanhá-lo em flagrante, parta do pressuposto deque ele esteja trabalhando e, acima de tudo, mantenha-se afastada — não importa ocansaço ou o sono que você sinta, por mais que você tenha vontade de fechar os olhosà sua verdadeira tarefa.Na realidade, quando a mulher tem um complexo demoníaco, ele ocorreexatamente como descrevemos. Ela vai avançando, saindo-se bem, cuidando do seunariz, e de repente o diabo salta à sua frente. Com isso toda a sua obra perde energia,começa a mancar, a tossir, a tossir cada vez mais e acaba desmaiando. O complexodemoníaco, usando a voz do ego, ataca a sua criatividade, suas idéias e seus sonhos.Na história, ele aparece como uma ridicularização ou uma depreciação interna daexperiência da mulher no outro mundo. O diabo mente ao afirmar que o tempopassado pela mulher no outro mundo produziu uma fera, quando na realidade elagerou uma bela criança.Quando diversos santos escreveram que lutaram para manter a fé no Deus poreles escolhidos, que eram acossados a noite inteira pelo demônio, que queimava seusouvidos com palavras destinadas a abalar sua determinação, que arrancava seusolhos do lugar com aparições horríveis e em geral arrastavam sua alma sobre vidromoído, eles estavam falando desse exato fenômeno, da súbita aparição do demônio.Essa emboscada psíquica tem como objetivo abalar a fé, não só a fé em você mesmamas no trabalho delicado e cuidadoso que você está realizando no inconsciente.É preciso uma fé considerável para continuar nessa hora, mas precisamos econseguimos continuar. O rei, a rainha e a mãe do rei, todos elementos da psique,estão puxando numa direção, na nossa direção, e por isso devemos perseverar comeles. A essa altura, é um trabalho quase na reta de chegada. Seria um enormedesperdício e ainda mais doloroso abandonar o esforço agora.O rei da nossa psique tem grande firmeza. Ele não desaba com o primeirogolpe. Ele não definha com ódio e desejo de vingança, como o demônio gostaria. Orei, que ama tanto sua esposa, fica chocado com a mensagem trocada, mas manda devolta uma mensagem recomendando que cuidem da rainha e do filho na suaausência. Esse é o teste da nossa certeza interior... será que duas forças podemmanter seu vínculo mesmo que uma delas seja exposta como abominável e326desprezível? Será que uma pode dar apoio à outra, não importa o que aconteça? Seráque a união pode continuar mesmo quando sementes de dúvidas estão sendodiligentemente espalhadas? Até aqui, a resposta é positiva. O teste para se saber sepode haver um casamento de amor duradouro entre o outro mundo selvagem e apsique terrena está sendo respondido, e muito bem.No caminho de volta ao castelo, o mensageiro mais uma vez adormece junto aoriacho e o demônio troca a mensagem para "Matem a rainha". Aqui, o predador temesperanças de que a psique se torne polarizada e se suicide ao rejeitar todo umaspecto de si mesma, aquele aspecto crucial, o recentemente desperto, oconhecimento da mulher.A mãe do rei fica horrorizada com a mensagem, e ela e o rei passam a seescrever com freqüência, cada um procurando esclarecer a mensagem do outro, atéque, finalmente, o demônio troca a mensagem do rei para "Matem a rainha,arrancando-lhe os olhos e a língua para servir de prova".Nessa altura, temos uma donzela sem condições de captar o mundo, semmãos, pois o demônio ordenou que fossem decepadas. Agora ele exige outrasamputações. Ele agora quer também que ela não consiga falar nem ver de verdade.Esse é um senhor demônio, e no entanto o que ele exige nos causa uma imensahesitação. Pois o que ele quer ver acontecer são exatamente os comportamentos quevêm oprimindo as mulheres desde os tempos mais remotos. Ele quer que a donzelaobedeça aos seguintes princípios: "Não veja a vida como ela é. Não compreenda osciclos da vida e da morte. Não persiga seus anseios. Não fale de todas essas coisasselvagens."A velha Mãe Selvagem encarnada pela mãe do rei fica indignada com a ordemdo demônio e diz que é demais pedir aquilo. Ela simplesmente se recusa a obedecer.Na tarefa da mulher, a psique diz: "Isso já é demais. Isso eu não posso e não voutolerar." E a psique começa a agir com mais astúcia, em conseqüência da suaexperiência espiritual nessa iniciação na resistência.A velha Mãe Selvagem poderia ter apanhado suas saias, mandado selar umaparelha de cavalos e saído mundo afora para encontrar seu filho e determinar de quetipo de posses são ele estava acometido para querer matar sua linda rainha e seuprimogênito, mas ela não o faz. Em vez disso, numa tradição consagrada pelo tempo,ela manda a jovem iniciada partir para mais um local de iniciação simbólica, afloresta. Em alguns ritos, o local da iniciação era o interior de uma caverna ou o sopéda montanha, mas no outro mundo, onde é abundante o simbolismo das árvores, namaioria das vezes é a floresta.Compreendamos o que isso significa. Mandar a donzela embora para outrolocal de iniciação teria sido, de qualquer forma, o curso natural dos acontecimentos,mesmo que o demônio não tivesse surgido e trocado as mensagens. Na descida,existem diversos locais de iniciação, um seguindo-se ao outro, todos com suaspróprias lições e consolos. Seria possível afirmar que o demônio praticamentegarante que a mulher irá sentir a compulsão de se levantar e se apressar até opróximo estágio.Lembre-se de que ocorre naturalmente um certo período após o parto no qualse considera que a mulher pertence ao outro mundo. Ela é empoada com o pó de lá,regada pela água de lá, tendo penetrado no mistério da vida-morte-dor-alegriadurante o trabalho de parto. Portanto, por algum tempo, ela "não está aqui" mas, sim,ainda "lá". Leva tempo para que ela volte à superfície.A donzela é como a mulher após o parto. Ela se levanta da cadeira de parto dooutro mundo, onde deu à luz novas idéias, uma nova visão da vida. Ela é agoracoberta por véus, seu bebê é colocado junto ao seu peito, e ela segue adiante. Na327versão da história da donzela sem mãos dos irmãos Grimm, o recém-nascido é dosexo masculino e se chama Triste. Já nas religiões matriarcais, o filho espiritualnascido da união da mulher com o rei do outro mundo chama-se Alegria.Aqui, mais um traço da antiga religião estende-se pelo chão. Em seguida aonascimento do novo self da donzela, a mãe do rei manda a jovem rainha partir numalonga iniciação que, como veremos, irá ensinar-lhe os ciclos definitivos da vidafeminina.A velha Mãe Selvagem concede à donzela uma dupla bênção: ela amarra o bebêao seio pejado de leite para que o Self-criança possa se nutrir não importa o quevenha a acontecer. Em seguida, seguindo a tradição dos antigos cultos das deusas, elaenvolve a donzela em véus, sendo esse o principal traje de uma deusa ao sair emalguma santa peregrinação, quando não quer ser reconhecida ou ter sua atençãodesviada do seu objetivo. Na Grécia, numerosas esculturas e baixos-relevos mostrama inicianda no rito elêusico sendo coberta com véus para aguardar o novo passo dainiciação.O que representa esse símbolo dos véus? Ele assinala a diferença entre aocultação e o disfarce. Esse símbolo trata da privacidade, de ficar só, de não deixarescapar a natureza misteriosa. Trata-se de preservar o eros e o mysterium danatureza selvagem.Enfrentamos, às vezes, dificuldade para manter nossa energia vital nocaldeirão transformador por tempo suficiente para que disso resulte algo para nós.Precisamos guardar esse segredo conosco sem revelá-lo para quem quer que nospeça, ou para qualquer inspiração sorrateira que de repente caia sobre nós, dizendo-nos que seria uma boa idéia inclinar o caldeirão e despejar o melhor de nós mesmasna boca dos outros ou no próprio chão.Cobrir algo com um véu intensifica sua ação ou seu sentimento. Isso asmulheres de todo o mundo sabem. Havia uma expressão usada pela minha avó,"cobrir a tigela". Significava pôr um pano branco sobre uma tigela com massa sovadapara fazer o pão crescer. O véu para o pão e o véu para a psique têm o mesmoobjetivo. Existe um poderoso fermento na alma das mulheres durante sua descida.Ocorre nelas uma forte fermentação. Ficar por trás de véus aperfeiçoa nosso insightmístico. Desse ponto de vista, todos os seres humanos parecem diáfanos; todos osacontecimentos, todos os objetos, têm a cor que teriam ao amanhecer, ou num sonho.Na década de 1960, as mulheres costumavam cobrir-se com o próprio cabelo.Elas deixavam crescer longas cabeleiras, passavam o cabelo a ferro e o usavam comouma cortina, como um meio de encobrir o rosto — como se o mundo estivesse abertodemais, nu demais, e o cabelo pudesse isolar o frágil self de cada uma. Há uma dançano Oriente Médio com véus e é claro que as muçulmanas modernas usam véus. Ababushka da Europa Oriental e os trajes usados nas cabeças de mulheres dasAméricas Central e do Sul também são remanescentes dos véus. As mulheres da Índiausam véus naturalmente, da mesma forma que as africanas.À medida que fui observando o mundo, comecei a sentir um pouco de pena damulher moderna que não tem véus para usar. Pois, ser uma mulher livre e usar umvéu à vontade é dispor do poder da mulher misteriosa. Ver uma mulher dessas ocultapor véus é uma experiência impressionante.Uma vez vi algo que daí em diante me manteve fascinada pelo véu: minhaprima Éva, arrumando-se para seu casamento. Eu, com cerca de oito anos de idade,estava sentada na mala de viagem com minha grinalda de dama-de-honra já fora dolugar, com uma das meias esticadas e a outra já engolida pelo sapato. Ela primeiropôs o vestido longo de cetim branco com quarenta botõezinhos recobertos de cetimnas costas. Depois, calçou as longas luvas brancas de cetim, cada uma com dez botões328recobertos. Ela puxou o véu, que ia até o chão, de modo a cobrir seu lindo rosto e osombros. Minha tia Teréz afofou o véu em toda a sua extensão, pedindo a Deus queficasse perfeito. Meu tio Sebestyén parou no portal, perplexo, pois Eva não era maisuma mortal. Era uma deusa. Por trás do véu, seus olhos pareciam prateados; seucabelo, como que salpicado de estrelas; sua boca, uma flor vermelha. Ela era só elamesma, contida e poderosa, e adequadamente fora do alcance.Alguns dizem que o hímen é o véu. Outros, que a ilusão é o véu. Nenhum dosdois grupos está errado, mas há mais a ser dito. Por ironia, embora o véu tenha sidousado para ocultar a beleza do olhar concupiscente dos outros, ele também éapetrecho da femme fatale. Usar um véu de um certo tipo, numa certa hora, com umcerto amante e com uma certa aparência é transpirar uma intensa e indefinidaeroticidade que provoca uma verdadeira suspensão da respiração. Na psicologiafeminina, o véu é um símbolo da capacidade das mulheres de assumir a presença ou aessência que desejem.Há uma surpreendente força espiritual na mulher coberta por véus. Ela inspiratanta admiração que todos que a encontram param onde estão, tão perplexos com suaaparição que só podem deixá-la em paz. A donzela no conto é coberta com véus parasair em viagem, tomando-se, portanto, intocável. Ninguém ousaria erguer seu véusem sua permissão. Depois de todas as atitudes invasoras por parte do demônio, elaestá mais uma vez protegida. As mulheres também sofrem essa transformação.Quando se encontram cobertas por véus, as pessoas sensatas sabem que é melhor nãoinvadir seu espaço psíquico.Pois bem, depois de todas as falsas mensagens na psique, e mesmo no exílio,estamos protegidas por algum conhecimento superior, alguma solidão suntuosa ebenéfica que tem origem no nosso relacionamento com a velha Mãe Selvagem.Estamos mais uma vez com o pé na estrada, mas em segurança. Por estarmos usandoo véu, demonstramos pertencer à Mulher Selvagem. Somos dela e, embora nãosejamos inatingíveis, de algum modo algo nos mantém afastadas de uma imersãototal na rotina da vida.As diversões do mundo objetivo não nos deslumbram. Estamos perambulandoà procura do nosso lugar, da nossa terra natal no inconsciente. Como se diz que asárvores frutíferas em flor estão usando lindos véus, nós e a donzela somos agoramacieiras floridas em movimento, à procura da floresta à qual pertencemos.O sacrifício da corça era um rito de revivificação para as mulheres, um rito queteria sido conduzido por uma mulher mais velha como a mãe do rei, pois ela seriadesignada "conhecedora" dos ciclos da morte e da vida. No sacrifício da corça, vemosmais um traço da antiga religião. O sacrifício de um corço era um rito antigodestinado a liberar sua energia suave porém saltitante.Como as mulheres na descida, esse animal sagrado era conhecido como umintrépido sobrevivente do frio e dos invernos mais desesperadores. Considerava-seque a corça era plenamente eficiente em procurar provisões, em dar à luz e viver deacordo com os profundos ciclos da natureza. É provável que os participantes de umritual desses pertencessem a um clã e que a idéia do sacrifício era a de dar lições àsiniciante quanto à morte, bem como a de nelas infundir as qualidade do próprioanimal selvagem.Aqui repete-se o sacrifício — um duplo rubedo, um sacrifício de sangue, narealidade. Em primeiro lugar, há o sacrifício da corça, o animal sagrado da antigalinhagem da Mulher Selvagem. Nos ritos antigos, matar uma corça fora da estaçãosignificava violar a velha Mãe Selvagem. O abate de animais é um trabalho perigoso,pois diversas entidades gentis úteis adotam o disfarce de animais. Considerava-se que329matar um animal fora da estação colocava em risco o delicado equilíbrio da naturezapodendo provocar uma represália de proporções míticas.No entanto, o ponto principal é que o sacrifício de um animal-mãe, uma corça,que representava o conhecimento feminino acompanhado do consumo da sua carne edo uso do seu pêlo para proteção contra o frio e para demonstrar a participação noclã, o tornar-se esse animal, era um ritual sagrado entre as mulheres desde o iníciodos tempos. Guardar olhos, as orelhas, o focinho, os chifres e diversas vísceras eradispor do poder simbolizado pelas suas funções: a visão aguçada, a percepção delonge, a movimentação veloz, a resistência física, o tom certo para chamar a própriaespécie e assim por diante.Esse segundo rubedo transparece quando a donzela é separada tanto da boa evelha mãe como do rei. Esse é um período em que estamos encarregadas de lembrar,de persistir na nutrição espiritual mesmo que estejamos separadas daquelas forçasque nos sustentaram no passado. Não podemos permanecer no êxtase da uniãoperfeita para sempre. Para a maioria de nós, não é essa a nossa linha de conduta.Nossa missão é, sim, a de a certa altura nos afastarmos dessas forças estimulantes,permanecendo, entretanto, em vínculo consciente com elas, e prosseguir para a tarefaseguinte.É fato que podemos nos fixar num aspecto especialmente agradável da uniãopsíquica e ali permanecer para sempre, mamando na teta sagrada. Isso não querdizer que a nutrição seja destrutiva. Pelo contrário, a nutrição é absolutamenteessencial para a viagem, e necessária em quantidades substanciais. Na realidade, se anutrição for insuficiente, a inicianda perderá energia, cairá em depressão e definharáaté não ser mais do que um sussurro. No entanto, se permanecermos no nosso localpreferido da psique, como por exemplo somente na beleza, ou somente no êxtase, oprocesso de individuação vai ficando cada vez mais lento. A verdade nua e crua é queaquelas forças sagradas que encontramos dentro da nosso psique devem um dia serabandonadas, pelo menos momentaneamente, para que o próximo estágio doprocesso possa se realizar.Como no trecho em que as duas mulheres se despedem em pranto, nósdevemos nos despedir das preciosas forças interiores que nos ajudaramimensamente. Depois, com o nosso Self-criança preso ao seio e ao coração, botamosnosso pé na estrada. A donzela está mais uma vez a caminho, vagueando na direçãode um enorme bosque com a fé inabalável de que algo irá surgir do imensoaglomerado de árvores, algo que crie alma.O sexto estágio — O reino da Mulher SelvagemA jovem rainha chega à floresta mais extensa e mais impenetrável que ela jáviu. Não é possível nela detectar trilhas. Ela abre caminho passando por cima, atravése em volta de tudo. Quase ao anoitecer, o mesmo espírito branco que a ajudou nofosso anteriormente a conduz a uma pobre estalagem de gente simpática da floresta.Uma mulher de branco a convida a entrar e a chama pelo nome. Quando a jovemrainha pergunta como descobriu seu nome, a mulher de branco responde: "Nós dafloresta acompanhamos esses casos, minha rainha."E assim a rainha passa sete anos na estalagem da floresta e está satisfeita coma sua criança e com a sua vida. Aos poucos suas mãos voltam a crescer; primeiro,como mãozinhas de bebê, depois como mãos de menina e, afinal, como mãos demulher.Embora esse episódio seja o mais curto da história, ele é na verdade o maislongo, tanto no tempo decorrido quanto em termos de realização da tarefa. A donzela330mais uma vez perambulou e como que chegou em casa para passar sete anos —separada do marido, é verdade, mas fora isso passando por uma experiênciaenriquecedora e de restauração.Seu estado novamente despertou a compaixão de um espírito de branco — queagora é seu espírito guia — e ele a conduz a esse lar na floresta. Assim é a naturezainfinitamente misericordiosa da psique profunda durante a viagem da mulher.Sempre há alguém mais que irá nos auxiliar. Esse espírito que a conduz e a abriga é oda velha Mãe Selvagem, e como tal encarna a psique instintiva que sempre sabe o queacontecerá depois e o que virá depois disso.Essa enorme floresta selvagem encontrada pela donzela é o arquétipo docampo iniciático sagrado. Ela é como Leuce, a floresta que os gregos antigos diziamexistir no mundo dos mortos, repleta de árvores sagradas e ancestrais e povoada deanimais, tanto selvagens quanto mansos. É ali que a donzela sem mãos encontra apaz por sete anos. Como se trata de um local arborizado, e como a própria donzela érepresentada pela macieira florida, essa é finalmente a sua terra natal, o lugar ondesua alma florida e impetuosa reconquista suas raízes.E quem é a mulher que cuida da estalagem embrenhada na floresta? Como oespírito vestido num branco resplandecente, ela é um aspecto da velha deusa tríplice.E, se absolutamente todas as fases do conto de fadas original tivessem sido mantidas,haveria também uma velha feroz/simpática na estalagem numa condição ou noutra.No entanto, esse trecho da história se perdeu, mais ou menos como um original doqual foram arrancadas algumas páginas. É provável que o elemento ausente tenhasido eliminado durante um dos antigos confrontos entre a velha religião da naturezae a religião mais nova para determinar qual crença religiosa acabaria predominando.O que restou tem, porém, muita força. As águas da história não são só profundas,mas também límpidas.O que vemos são duas mulheres que, durante o prazo de sete anos, vêm a seconhecer mutuamente. O espírito de branco é semelhante à telepática Baba Yaga em"Vasalisa", que é uma representação da velha Mãe Selvagem. Como a Yaga diz aVasalisa, muito embora nunca a tenha visto antes, "Sei, conheço o seu pessoal", esseespírito feminino que toma conta da estalagem no outro mundo já conhece a jovemrainha, pois ela também faz parte da sagrada Mulher Selvagem, que tudo sabe.Mais uma vez a história sofre um corte significativo. As tarefas e aprendizadosexatos daqueles sete anos não são mencionados, a não ser para serem descritos comorepousantes e revitalizantes. Embora pudéssemos supor que os aprendizados davelha religião da natureza subjacentes à história fossem mantidos em segredo portradição, não podendo, portanto, estar num conto de fadas, é muito mais provávelque haja outros sete aspectos ou episódios nessa história, uma para cada ano que adonzela passou na floresta do aprendizado. Não desanime, porém, na psique nada seperde, está lembrada?Podemos recordar tudo que ocorreu naqueles sete anos a partir de pequenosfragmentos obtidos de outras fontes de iniciação das mulheres. A iniciação da mulheré um arquétipo; e, embora um arquétipo tenha muitas variações, seu núcleopermanece constante. Portanto, segue-se o que descobrimos a respeito da iniciação apartir do exame de outros contos de fadas e mitos, tanto da literatura oral quanto daescrita.A donzela fica ali sete anos, pois é esse o tempo de uma estação na vida damulher. O sete é o número de dias de cada fase da lua e é também o número de outrasexpressões do tempo sagrado: os sete dias da criação, os sete dias da semana e assimpor diante. No entanto, para além dessas questões fica uma muito maior:331A vida da mulher é dividida em fases, cada uma com sete anos. Cada períodode sete anos representa um certo conjunto de experiências e aprendizagens. Essasfases podem ser compreendidas em termos mais concretos como estágios dodesenvolvimento, mas elas podem ainda mais ser vistas como estágios espirituais dedesenvolvimento que não correspondem necessariamente à idade cronológica damulher, embora às vezes isso ocorra.Desde o início dos tempos, a vida das mulheres foi dividida em fases, a maioriarelacionada à mudança dos poderes do corpo. É útil atribuir uma seqüência à vidafísica, espiritual, emocional e criativa da mulher para que ela tenha condições deprever "o que virá em seguida" e de se preparar para tal. O que virá a seguir está nocampo da Mulher Selvagem instintiva. Ela sempre sabe. No entanto, com o passardos tempos, à medida que os antigos ritos de iniciação eram abandonados, ainstrução das mulheres mais jovens pelas mais velhas acerca desses estágiosinerentes à mulher foi também sendo ocultada.A observação empírica da inquietação, do desassossego, dos anseios, dasmulheres e do crescimento traz de volta à luz os antigos padrões ou fases da vidaprofunda da mulher. Embora possamos dar títulos específicos aos estágios, todos elessão ciclos de conclusão, de envelhecimento, de morte e de renascimento. Os sete anosque a donzela passa na floresta irão ensinar-lhe os detalhes e os dramas relacionadosa essas fases.Temos aqui ciclos de sete anos cada, que se estendem por toda a vida damulher. Cada um tem seus ritos e suas tarefas. Cabe a nós cumpri-los.Proponho o que se segue apenas como metáforas do crescimento psíquico. Asidades e os estágios da vida da mulher fornecem tanto tarefas a serem realizadasquanto atitudes nas quais enraizá-las. Por exemplo, se de acordo com o esquema quese segue vivermos o suficiente para entrar na fase ou no lugar psíquico dos seres danévoa, o lugar em que todo pensamento é novo como o amanhã e antigo como oinício dos tempos, nós nos encontraremos entrando em ainda mais uma atitude, maisuma maneira de ver, bem como descobrindo e realizando as tarefas deconscientização a partir dessa posição privilegiada.As imagens seguintes são fragmentos. No entanto, partindo-se de metáforassuficientemente amplas, podemos elaborar, a partir do que sabemos e do quesentimos acerca do conhecimento antigo, novos insights para nós mesmas que tantosão plenos de força espiritual quanto fazem sentido para nós hoje mesmo. Essasimagens são baseadas livremente na experiência e observação empíricas, napsicologia do crescimento e em fenômenos encontrados nos mitos da criação, que sãoalguns dos melhores esqueletos fundamentais dos registros psicológicos humanos.Essas fases não se destinam a ser vinculadas inexoravelmente à idadecronológica, pois algumas mulheres aos oitenta anos estão, em termos dedesenvolvimento, no início da mocidade; algumas mulheres aos quarenta estão nomundo psíquico dos seres da névoa; e algumas de vinte anos têm tantas cicatrizesquanto velhas enrugadas e idosas. Não se pretende que as idades tenham um sentidohierárquico, mas que simplesmente pertençam à consciência da mulher e à expansãoda vida da sua alma. Cada idade representa uma mudança de atitude, uma mudançana atribuição de tarefas e uma mudança nos valores.? 0-7 idade do corpo e do sonho/socialização, mantendo, porém, aimaginação? 7-14 idade da separação bem como do entretecimento da razão e doimaginário332? 14-21 idade do novo corpo/início da mocidade/desdobramento dasensualidade, apesar de protegida? 21 - 28 idade do novo mundo/nova vida/exploração dos mundos? 28-35 idade da mãe/aprendizado de ser mãe para os outros e para simesma? 35-42 idade da procura/aprendizado de ser mãe do self/procura do self? 42-49 idade da velha precoce/descoberta do acampamentodistante/transmissão de coragem aos outros? 49 - 56 idade do outro mundo/aprendizado dos termos e dos ritos? 56 - 63 idade da escolha/escolha do próprio mundo e do trabalho aindaa ser feito? 63-70 idade da transformação em sentinela/reformulação de tudo que seaprendeu? 70 - 77 idade do rejuvenescimento/mais velhice? 77 - 84 idade dos seres da névoa/mais descobertas do que é grande noque é pequeno? 84 - 91 idade de tecer com o fio escarlate/compreensão da trama da vida? 91 - 98 idade do etéreo/menos a dizer, mais a ser? 98-105 idade do pneuma, da respiração? 105+ idade da atemporalidadePara muitas mulheres, a primeira metade dessas fases do conhecimento damulher, digamos, aproximadamente até os quarenta anos, revela nitidamente ummovimento do conjunto autônomo de percepções instintivas da primeira infância atéo conhecimento corpóreo da mãe profunda. Já na segunda metade das fases, o corpotransforma-se quase exclusivamente num dispositivo sensorial interno, e as mulheresvão ficando cada vez mais sutis.Durante a trajetória da mulher por esses ciclos, suas camadas de defesa,proteção e densidade vão se tornando mais diáfanas até que o brilho da sua própriaalma começa a transparecer. Podemos sentir e ver o movimento da alma dentro dapsique corporal de uma forma surpreendente à medida que envelhecemos cada vezmais.Portanto, o sete é o número da iniciação. Na psicologia arquetípica háliteralmente dezenas de referências ao símbolo do sete. Uma referência que considerovaliosíssima para ajudar as mulheres a diferenciar as tarefas que as esperam, bemcomo para determinar sua posição atual na floresta do outro mundo faz parte dasantigas atribuições dos sete sentidos. Acreditava-se que esses atributos simbólicospertencessem a todos os seres humanos, e eles aparentemente constituíam umainiciação na alma através das metáforas e dos sistemas reais do corpo.Segundo os ensinamentos antigos, os sentidos representam aspectos da alma,ou do "santo corpo interno", e devem ser exercitados e desenvolvidos. Embora otrabalho seja longo demais para ser exposto aqui, gostaria de dar apenas uma olhadanessa antiga tradição. São os seguintes os sete sentidos e, portanto, as sete áreas detarefas a cumprir: animação, sensação, fala, paladar, visão, audição e olfato.3 2Dizia-se que cada sentido estaria sob a influência de uma energia dos céus.Para trazer isso de volta à realidade, quando as mulheres trabalhando em grupofalam nessas coisas, descrevem-nas, exploram-nas e as investigam, elas podem usaressas metáforas, a partir da mesma referência, para melhor examinar os mistériosdos sentidos: o fogo anima, a terra provoca a sensação, a água produz a fala, o ar levaao paladar, a névoa gera a visão, as flores propiciam a audição e o vento sul cria oolfato.333A partir do traço ínfimo que restou do antigo rito iniciático nessa parte dahistória, especialmente a expressão "sete anos", tenho a forte impressão de que osestágios da vida inteira da mulher, bem como questões como a dos sete sentidos e deoutros itens tradicionalmente contados aos sete, eram ressaltados para a iniciandados tempos de outrora e mesclados nas suas tarefas. Um antigo fragmento de históriaque me deixa extremamente intrigada vem de Cratynana, um velho contador dehistórias suábio, que afirmava que antigamente as mulheres costumavam passaralguns anos longe de casa, num lugar nas montanhas, exatamente da mesma formaque os homens se afastavam por muito tempo a serviço do exército do rei.E assim, nessa época do aprendizado da donzela na profundeza da floresta,ocorre mais um milagre. Suas mãos começam a voltar a crescer em fases, a princípioas de um bebê. Podemos considerar que isso signifique que sua compreensão de tudoque ocorreu seja inicialmente imitativa, como a compreensão de um bebê. À medidaque as mãos se transformam nas de uma criança, ela desenvolve uma compreensãoconcreta, mas não absoluta, de tudo. Quando afinal elas se transformam em mãos demulher, ela conseguiu captar, com prática e profundidade, o não-concreto, ometafórico, o caminho sagrado em que esteve.À medida que praticamos o profundo conhecimento instintivo acerca de todotipo de aprendizado que obtemos durante toda uma vida, nossas mãos voltam a nós,as mãos da nossa feminilidade. É divertido às vezes observar a nós mesmas quandoentramos pela primeira vez num estágio psíquico imitando o comportamento quegostaríamos de aprender. Mais tarde, à medida que prosseguimos, atingimos nossaprópria fase espiritual, nosso próprio formato de direito.De vez em quando, uso outra versão dessa história em representações e naanálise. Nessa versão, a jovem rainha vai até o poço. Quando se curva para puxar aágua, a criança cai no poço. A jovem rainha começa a berrar, e um espírito aparece epergunta por que motivo ela não salva seu filho. "Porque eu não tenho mãos!" Gritaela. "Tente", diz o espírito. E quando a donzela mergulha os braços na água, tentandoalcançar seu filho, suas mãos se refazem naquele exato instante, e a criança é salva.Essa também é uma forte metáfora da idéia de salvamento do Self-criança, doSelf da alma, para que ele não volte a se perder no inconsciente, para que não seesqueça de quem somos e de qual é a nossa tarefa. É nesse ponto nas nossas vidasque até mesmo pessoas muito encantadoras, idéias sedutoras, músicas fascinantespodem ser rejeitadas com facilidade, especialmente se não propiciarem a união damulher com o selvagem.Para muitas mulheres, é prodigiosa a passagem da sensação de entusiasmo ouatração por qualquer idéia ou pessoal que bata à sua porta para a de ser uma mulherque refulge com La Destina, que é possuída de um profundo sentido do seu própriodestino. Com o olhar direto, as palmas voltadas para fora, com a audição do selfinstintivo intacta, a mulher volta à vida com essa atitude nova e vigorosa.Nessa versão, a donzela cumpriu sua tarefa de tal modo que, quando elaprecisa da ajuda das mãos para tatear e para proteger seu avanço, elas aparecem. Elasse regeneram através do medo de perda do Self-criança. A regeneração do controle damulher sobre a própria vida e o próprio trabalho por vezes causa uma lacunamomentânea neste último, pois ela pode não ter total confiança nessas forças recém-adquiridas. Ela pode ter de experimentar usá-las por algum tempo para perceber qualé o seu alcance.Com freqüência, temos de reformar nossas idéias acerca de "uma vez sempoder (sem as mãos), sempre sem poder". Depois de todas as nossas perdas e de todoo nosso sofrimento, descobrimos que, se quisermos nos esforçar, seremosrecompensadas com a possibilidade de agarrar a criança que é mais valiosa para nós.334É aí que a mulher sente que afinal conseguiu retomar o controle sobre a própria vidae recuperar as palmas que a ajudam a ver e a moldar a vida novamente. Esse tempotodo ela recebeu ajuda de forças intrapsíquicas e amadureceu extremamente. Agora,ela está realmente "dentro do seu Self".Estamos, portanto, quase acabando de percorrer a vastidão dessa longahistória. Falta somente um trecho em crescendo e a conclusão adiante. Como essa éuma indução nos mistérios e no domínio da resistência, tratemos de cumprir essaúltima etapa da viagem pelo outro mundo.O sétimo estágio — O noivo e a noiva selvagensAgora o rei retorna, e ele e a mãe concluem que o demônio sabotou suasmensagens. O rei faz votos de purificação — de ficar sem comer nem beber e de viajaraté os confins do mundo para encontrar a donzela e seu filho. São sete anos deprocura. Suas mãos ficam negras; sua barba, de um marrom sujo como o musgo; seusolhos, avermelhados e ressecados. Durante todo esse tempo, ele não come, nem bebe,mas uma força maior do que ele mesmo o ajuda a viver.Ele afinal chega à estalagem mantida pelo povo da floresta. Ali, ele é cobertopor um véu, adormece e acorda para encontrar um linda mulher e uma bela criançacom os olhos fixos nele. "Sou sua mulher, e esse é o nosso filho", diz a jovem rainha.O rei quer acreditar mas vê que a donzela tem mãos. "Com as minhas aflições e aindaassim com meus cuidados, as minhas mãos cresceram de novo", diz ela. E a mulher-espírito de branco traz as mãos de prata de uma arca onde estavam guardadas comcarinho. É uma festa espiritual. O rei, a rainha e a criança voltam para a mãe do rei erealizam um segundo casamento.Aqui no final, a mulher que cumpriu a descida completa reuniu uma vigorosaquadrinidade de forças espirituais: o animus do rei, o Self-criança, a velha MãeSelvagem e a donzela iniciada. Ela foi lavada e purificada muitas vezes. O desejo doseu ego por uma vida segura já não é mais seu guia. Agora, esse quatérnio rege apsique.Foram o sofrimento e a peregrinação do rei que propiciaram a reunião e ocasamento definitivos. Por que ele, que é rei do outro mundo, precisa peregrinar? Elenão é o rei? Bem, a verdade é que também os reis precisam cumprir seu trabalhopsíquico, mesmo reis arquetípicos. Nessa história está a idéia antiga e extremamenteenigmática de que quando uma força da psique muda, as outras devem mudartambém. Aqui, a donzela não é mais a mulher com quem se casou, não é mais aquelafrágil andarilha. Agora ela está iniciada; agora ela conhece suas atitudes de mulherem todas as questões. Agora ela está sazonada com as histórias e os conselhos davelha Mãe Selvagem. Ela agora tem mãos.O rei deve, portanto, sofrer para se desenvolver. Sob certos aspectos, o reipermanece no outro mundo, mas, como uma figura do animus, ele representa aadaptação da mulher à vida coletiva — ele transporta as idéias principais que elaaprendeu na sua jornada até a superfície, ou a sociedade exterior. Só que ele aindanão esteve na mesma situação que ela, e isso ele deve fazer para poder transmitir aomundo o que ela é e o que ela sabe.Depois que a velha Mãe Selvagem lhe comunica que ele foi enganado pelodemônio, ele mesmo é mergulhado na sua própria transformação através daperegrinação e descoberta, exatamente como aconteceu antes com a donzela. Ele nãoperdeu as mãos, mas perdeu sua rainha e seu filho. Por isso, o animus imita ocaminho da donzela.335Essa reencenação por empatia reorganiza o jeito da mulher de ser no mundo.Reorientar o animus dessa maneira é iniciá-lo na missão pessoal da mulher. Pode serpor esse motivo que chegou a haver iniciandos do sexo masculino na iniciaçãoessencialmente feminina em Elêusis. Esses homens assumiam as tarefas e provaçõesdo aprendizado feminino a fim de encontrar suas próprias rainhas e filhos psíquicos.O animus entra nos seus próprios sete anos de iniciação. Com isso, aquilo que amulher aprendeu irá não só se refletir na sua alma interior, mas também ficaráinscrito nela, moldando também seus atos concretos.O rei também vagueia na floresta da iniciação, e aqui mais uma vez temos aimpressão da falta de outros sete episódios — os sete estágios da iniciação do animus.Também desta vez, dispomos de fragmentos a partir dos quais podemos extrapolar;temos nossos próprios recursos. Uma das pistas está no fato de o rei não comerdurante sete anos e ainda assim manter-se nutrido. A atitude de não se alimentar estárelacionada à procura de alcançar, por baixo dos nossos impulsos e apetites, algumsignificado mais profundo que se encontra oculto e encoberto. A iniciação do rei estárelacionada com o aprendizado de um aprofundamento no que diz respeito àcompreensão dos apetites, de natureza sexual3 3 e de outras naturezas. Ela trata doaprendizado de ciclos de equilíbrio e de valorização que sustentam a esperança e afelicidade do ser humano.Além do mais, como ele é o animus, sua procura também está ligada à buscado feminino plenamente iniciado na psique e a considerar essa como sua metaprincipal, não importa o que atravesse o seu caminho. Em terceiro lugar, suainiciação no Self selvagem, quando ele se torna um animal na natureza por sete anos,não se banha durante esse mesmo período, tem o objetivo de arrancar quaisquercamadas excessivas de quitina civilizatória. Esse animus está realizando o trabalhonecessário para se preparar para demonstrar e representar o verdadeiro Self da almada mulher recém-iniciada na rotina do dia-a-dia.O trecho da história que menciona a colocação de um véu sobre o rosto do reienquanto ele dorme tem grande probabilidade de ser mais um fragmento dos antigosritos dos mistérios. Na Grécia, há uma bela escultura exatamente dessa imagem: uminiciando coberto com um véu, com a cabeça inclinada como se estivessedescansando, esperando ou dormindo.3 4 Agora vemos que o animus não pode estaragindo num nível inferior ao do conhecimento dela. Se não fosse assim, ela mais umavez iria se sentir dividida entre o que sente e sabe intimamente e a forma pela qual,através do animus, ela deveria se comportar no mundo. Por isso, o animusperambula pela natureza, na sua própria condição masculina, também na floresta.Não é de se estranhar que tanto a donzela quanto o rei sejam levados apercorrer terras psíquicas onde esses processos se realizam. Eles podem seraprendidos apenas na natureza selvática, somente quando se está grudado à pele daMulher Selvagem. É freqüente que a mulher iniciada dessa maneira descubra que seuamor subterrâneo pela natureza selvagem vem à tona na sua vida no mundo objetivo.É que, em termos psíquicos, ela traz consigo o perfume de lenha queimando.Costuma acontecer de ela agir aqui de acordo com o que aprendeu lá.Um dos aspectos mais surpreendentes dessa longa iniciação consiste em que amulher que passa por esse processo continua a sua vida normal no mundo objetivo:ela ama o amado; dá à luz filhos; corre atrás das crianças; corre atrás da arte; correatrás das palavras; carrega alimentos, tintas, meadas; luta por uma coisa ou poroutra; enterra os mortos; cumpre todas as tarefas de rotina ao mesmo tempo queavança nessa jornada profunda e distante.A mulher, nessas condições, encontra-se muitas vezes dividida entre duasopções, pois abate-se sobre ela um impulso de mergulhar na floresta como se ela336fosse um rio, de nadar no verde, de subir ao topo de um penhasco e ficar ali sentadacom o rosto ao vento. E uma época na qual um relógio interior bate uma hora que faza mulher sentir uma necessidade repentina de um céu que ela possa chamar de seu,uma árvore que possa abraçar, uma pedra na qual possa encostar o rosto. Mesmoassim, ela também precisa viver sua vida no mundo concreto. |É um motivo de honra para que, apesar de ter muitas vezes sentido o desejo desair correndo em direção ao pôr-do-sol, ela não o tenha feito. Pois é essa vidaconcreta que exerce o nível certo de pressão para que ela assuma as tarefas do outromundo. É melhor permanecer neste mundo durante esse período, em vez deabandoná-lo, porque a tensão é melhor, e a tensão cria uma vida preciosa e bemtorneada que não pode ser obtida de nenhuma outra forma.Vemos, portanto, o animus na sua própria transformação, preparando-se paraser um parceiro adequado para a donzela e o Self-criança. Afinal, eles se reúnem, eocorre a volta à velha mãe, à mãe sábia, à mãe que tudo suporta, que ajuda com suainteligência e sabedoria... e todos permanecem unidos e com amor uns pêlos outros.A tentativa demoníaca de assumir o controle da alma fracassou de modoirreversível. A resistência da alma foi testada e aprovada. A mulher passa por esseciclo uma vez a cada sete anos, sendo a primeira passagem muito suave e, geralmentepelo menos uma das vezes, muito difícil. Daí em diante, o processo apresenta umaspecto de recordação ou de renovação. Aqui, afinal, descansemos para apreciar essabela visão panorâmica das iniciações e tarefas da mulher. Uma vez que tenhamospassado pelo ciclo, podemos escolher qualquer uma ou todas as tarefas para renovarnossa vida a qualquer momento e por qualquer motivo. Seguem-se algumas delas:• abandonar os velhos pais da psique, descer ao território psíquicodesconhecido, ao mesmo tempo em que se depende da boa vontade de quem querque se encontre no caminho• atar as feridas causadas pelo pacto infeliz feito em alguma época da nossavida• perambular com sua alma faminta (em termos psíquicos) e confiar nanatureza para a alimentação• descobrir a Mãe Selvagem e seu socorro• entrar em contato com o animus protetor do outro mundo• conversar com o emissário da psique (o mágico)• contemplar os pomares antigos (as formas energéticas) do feminino• incubar e dar à luz o Self-criança espiritual• suportar ser mal-compreendida, ser apartada do amor repetidas vezes• tornar-se suja, enlameada, enegrecida• permanecer no reino do povo da floresta durante sete anos até que a criançachegue à idade da razão• esperar• regenerar a visão interior, o conhecimento interior, a cura interior das mãos• continuar avançando mesmo que tenha perdido tudo à exceção do filhoespiritual• reconstituir e apreender a infância, a mocidade e a idade adulta• reformar o animus como um homem selvagem e natural; amá-lo; e ele a ela• consumar o casamento selvagem na presença da velha Mãe Selvagem e donovo Self-criança.O fato de tanto a donzela sem mãos quanto o rei sofrerem a mesma iniciaçãode sete anos é o traço comum entre o feminino e o masculino. Isso reforça a idéia de337que, em vez de antagonismo entre essas duas forças, pode haver um amor profundo,especialmente se ele estiver enraizado na procura do próprio self."A donzela sem mãos" é uma história da vida real a respeito de nós, mulheresde verdade. Ela não trata de uma parte das nossas vidas, mas da nossa existênciainteira. Na sua essência, ela ensina que para as mulheres o trabalho consiste emvaguear, entrando e saindo da floresta repetidas vezes. Nossas psiques e nossas almassão especificamente adequadas a isso, de tal modo que conseguimos percorrer osubterrâneo psíquico, parando aqui e ali, prestando atenção à velha Mãe Selvagem,sendo alimentadas pelos frutos do espírito e conseguindo nos reunir a tudo e todos aquem amamos.A princípio, o tempo passado com a Mulher Selvagem é difícil. Recuperar oinstinto ferido, eliminar a ingenuidade e, com o tempo, aprender os aspectos maisprofundos da psique e da alma, guardar o que tivemos aprendido, não voltar ascostas, defender aquilo que representamos... tudo isso exige uma resistência mística einfinita. Quando emergimos de volta do outro mundo depois de uma das nossasincursões por lá, por fora pode parecer que não mudamos, mas por dentroreconquistamos um vasto território feminino e selvagem. Na superfície, ainda somossimpáticas, mas debaixo da pele decididamente não somos mais mansas.
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Mulheres que Correm com os Lobos
Non-FictionMulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem é um livro da analista junguiana, autora e poetisa Clarissa Pinkola Estés VOU DEIXAR ELE COMPLETO ATÉ O FINAL DO MÊS;