Capítulo 10 - As águas claras: O sustento da vida criativa

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A criatividade é um mutante. Num momento, ela assume uma forma; noinstante seguinte, uma outra. Ela é como um espírito deslumbrante que aparece paratodas nós, sendo, porém, difícil de descrever já que não existe acordo a respeito doque as pessoas vislumbram no seu clarão cintilante. Será que o emprego depigmentos e telas, ou de lascas de tinta e papel de parede, é comprovação da suaexistência? E o que dizer da pena e do papel, de bordas floridas no caminho dojardim, da criação de uma universidade? É, isso mesmo. E de passar bem umcolarinho, de criar uma revolução? Também. Tocar com amor as folhas de umaplanta, reduzir a importância de certas preocupações, dar nós no tear, descobrir aprópria voz, amar alguém profundamente? Também. Segurar o corpo morno dorecém-nascido, criar um filho até a idade adulta, ajudar a reerguer uma naçãoderrotada? Também. Cuidar do casamento como do pomar que ele é, escavar àprocura do ouro psíquico, descobrir a palavra perfeita, fazer uma cortina azul? Tudoisso pertence à vida criativa. Todos esses atos provêm da Mulher Selvagem, de RíoAbajo Río, do rio abaixo do rio, que não pára de correr para dentro da nossa vida.Alguns dizem que a vida criativa está nas idéias; outros, que ela está na ação.Na maioria dos casos, ela parece estar num ser simples. Não se trata do virtuosismo,embora não haja nada de errado com ele. Trata-se de amor por algo, de sentir tantoamor por algo — seja por uma pessoa, uma palavra, uma imagem, uma idéia, pelopaís ou pela humanidade — que tudo o que pode ser feito com o excesso é criar. Não éuma questão de querer; não é um ato isolado da vontade. Simplesmente é o que seprecisa fazer.A força criadora escorre pelo terreno da nossa psique à Procura de depressõesnaturais, os arroyos, os canais que existem em nós. Nós nos tornamos seus afluentese sua bacia. Somos suas piscinas naturais, suas represas, córregos e santuários. Aforça criadora selvagem escorre para todos os leitos de que dispomos, aqueles comque nascemos bem como aqueles que escavamos com nossas próprias mãos. Nãotemos de enchê-los. Basta que os formemos.Na tradição arquetípica, existe a idéia de que, se prepararmos um localpsíquico especial, o ser, a força criadora, a fonte da alma irão ouvir falar dele,descobrir o caminho até ele e habitá-lo. Quer essa força seja invocada por palavrasbíblicas "vá e prepare um local para a alma", quer aconteça como no filme O campodos sonhos,1no qual um fazendeiro ouve uma voz sugerindo que construa um campode beisebol para os espíritos de jogadores falecidos, "Se você construir o campo, elesvirão", o preparo de um local adequado estimula a grande criadora a avançar.Uma vez que esse imenso rio subterrâneo tenha encontrado seus estuários eafluentes na nossa psique, nossa vida criadora tem cheias e vazantes, sobe e descecom as estações, exatamente como um rio natural. Esses ciclos propiciam que ascoisas sejam criadas, alimentadas, que recuem e definhem, tudo a seu próprio tempoe repetidas vezes.Criar algo num certo ponto do rio alimenta quem vem até ele, nutre animaisque estão bem a jusante e ainda outros que estão nas profundezas. A criatividade nãoé um movimento solitário. Nisso reside seu poder. O que quer que seja tocado por ela224e quem quer que a ouça, que a veja, que a sinta, que a conheça serão alimentados. Épor isso que a observação da idéia, da imagem, da palavra criadora de outra pessoanos preenche e nos inspira para nosso próprio trabalho criativo. Um único ato decriação tem o potencial de alimentar um continente. Um ato de criação pode fazercom que uma corrente abra caminho pedra adentro.Por esse motivo, a capacidade criadora da mulher é seu trunfo mais valioso,pois ela é generosa com o mundo externo e nutre a mulher internamente em todos osníveis: psíquico, espiritual, mental, emocional e econômico. A natureza selvagemderrama-se em possibilidades ilimitadas, atua como um canal de vida, revigora,mitiga a sede, sacia a nossa fome pela vida profunda e selvagem. Seria ideal que esserio criador não fosse represado, não sofresse desvios nem fosse mal utilizado.2O rio da Mulher Selvagem nos alimenta e faz com que nos tornemos seressemelhantes a ela: a que dá a vida. Enquanto criamos, esse ser misterioso e selvagemestá nos criando em troca, está nos enchendo de amor. Somos atraídas como osanimais são atraídos pelo sol e pela água. Ficamos tão vivas que retribuímosdistribuindo vida. Produzimos rebentos, florescemos, nos dividimos e nosmultiplicamos, impregnamos, incubamos, comunicamos, transmitimos.É óbvio que a criatividade emana de algo que surge, cresce, toma impulso, seavoluma e se derrama para dentro de nós em vez de ser algo que simplesmente ficaparado em algum ponto à espera de que possamos, não importa depois de quantosrodeios, encontrar algum meio de chegar até ele. Nesse sentido, jamais podemos"perder" nossa criatividade. Ela está sempre ali, preenchendo-nos ou então entrandoem colisão com quaisquer obstáculos que sejam colocados no seu caminho. Se ela nãodescobrir nenhuma abertura até nós, ela recua, acumula energia e investe novamenteaté conseguir abrir passagem. Os únicos meios para podermos evitar sua insistenteenergia consiste em construir continuamente obstáculos contra ela ou permitir queela seja envenenada pela negligência e pelo negativismo destrutivo.Se ansiamos pela energia criadora; se temos problemas para alcançar osaspectos férteis, imaginativos, formadores de idéias; se temos dificuldade para nosconcentrarmos no nosso sonho pessoal, para agir de acordo com ele ou para garantirsua execução, então alguma coisa deu errado no ponto de união das águas dascabeceiras e dos afluentes de um rio. Ou pode ser que as águas criadoras estejamcorrendo por um meio poluente no qual as formas de vida da imaginação sãoeliminadas antes que possam atingir a maturidade. Com enorme freqüência, quandouma mulher se vê despojada da sua vida criativa, todas essas circunstâncias estão nocerne da questão.Já que a Mulher Selvagem é Río Abajo Río, o rio por baixo do rio, quando elacorre dentro de nós, nós corremos. Se a abertura dela até nós for bloqueada, nósficamos bloqueadas. Se sua corrente estiver envenenada pêlos nossos próprioscomplexos negativos internos ou pelas pessoas que nos cercam, os delicadosprocessos que forjam nossas idéias também ficam poluídos. Passamos, então, a sercomo um rio que morre. Isso não é coisa ínfima, a ser ignorada. A perda do nítidofluxo criador constitui uma crise psicológica e espiritual.Quando um rio está poluído, tudo começa a definhar porque tudo depende detudo o mais. Num rio de verdade, os juncos às suas margens ficam marrons por faltade oxigênio, o pólen não consegue encontrar nada que tenha vibração suficiente paraser fecundado, as tanchagens caem, não deixando em suas raízes nenhum berço paraos nenúfares, nos salgueiros não crescem amentilhos, as salamandras não encontramparceiros e as efeméridas não procriam. Com isso, os peixes não saltam, as aves nãomergulham e os lobos e outros animais que vêm se renovar no rio seguem adiante ou225morrem por beber água envenenada ou por comer presas que se alimentaram dasplantas que morrem à beira d'água.Quando a criatividade fica estagnada de uma forma ou de outra, o resultado ésempre o mesmo: uma fome desesperada pelo novo, um enfraquecimento dafecundidade, uma falta de espaço para as formas menores de vida se localizarem nosinterstícios das formas maiores de vida, uma impossibilidade de que uma idéiafertilize uma outra, nenhuma ninhada, nenhuma vida nova. Nessas circunstâncias,sentimo-nos doentes e queremos seguir adiante. Vagueamos sem destino, fingindopoder sobreviver sem a exuberância da vida criativa, mas não podemos nemdevemos. Para trazer de volta a vida criativa, as águas têm de ficar claras e límpidasde novo. Precisamos entrar na lama, purificá-la dos elementos contaminadores,reabrir passagens, proteger a corrente de danos futuros.Entre os povos de língua espanhola, existe uma antiga história intitulada "LaLlorona"3 "A chorona". Dizem que ela teve origem no início do século XVI, quando osconquistadores espanhóis atacaram os povos asteca/náuatle do México; mas ela émuito anterior a esse período. Ela é a história do rio da vida que se tornou um rio damorte. A protagonista é uma obsessiva mulher do rio que é fértil, generosa e que sabecriar a partir do seu próprio corpo. Ela é pobre, surpreendentemente linda, mas ricade alma e de espírito.La Llorona é uma história estranha, pois continua a evoluir com o passar dotempo como se tivesse uma imensa vida interior toda sua. Como uma enorme dunade areia que se move pela terra, engolindo o que estiver no caminho, aproveitandotudo de tal maneira que a terra pareça pertencer ao seu próprio corpo, essa historia sevale das questões psíquicas relativas a cada geração. Às vezes, a história de LaLlorona é contada como se fosse um relato sobre Ce. Malinalli ou Malinche, a mulhernativa de quem se diz ter sido tradutora e amante do conquistador espanhol HemánCortês.No entanto, a primeira versão de La Llorona que ouvi a descrevia comoprotagonista numa guerra desagregadora nos bosques do norte, onde cresci. Dasegunda vez que ouvi essa história, La Llorona estava enfrentando um antagonistaenvolvido no repatriamento forçado de mexicanos dos Estados Unidos na década de1950. Ouvi, também, a história em inúmeras versões no sudoeste do país, sendo queuma delas provinha de antigos lavradores espanhóis assentados em terras doadaspelo governo, e nela a protagonista estava envolvida nas guerras desse tipo deassentamento no Novo México: um rico incorporador tirava proveito de uma filha deespanhóis pobres, porém linda.Ultimamente, recolhi mais três versões, sendo a primeira uma história deterror: La Llorona perambula à noite uivando num parque de estacionamento detrailers. A segunda é uma história de uma prostituta contaminada com o vírus daAIDS: La Llorona exerce sua profissão no Town River em Austin. A última versão,uma versão espantosa, me foi transmitida por uma criança. Primeiro, vou relatar oenredo genérico dos grandes contos da La Llorona e, em seguida, a variante maisrecente e surpreendente dessa história.=============================La LloronaUm rico hidalgo, fidalgo, corteja uma moça pobre, mas muito bonita, econquista seu afeto. Ela lhe dá dois filhos, mas ele não se dispõe a casar com ela. Um226dia, ele comunica que vai voltar para a Espanha, onde se casará com uma moça ricaescolhida por sua família, e que vai levar seus filhos para lá. A jovem mãe fica fora desi e age no estilo das célebres loucas enfurecidas de todos os tempos. Ela arranha orosto do homem e arranha seu próprio rosto. Rasga as vestes dele e rasga as suaspróprias vestes. Ela apanha os dois meninos pequenos, corre para o rio com eles e láos joga na correnteza. As crianças morrem afogadas, e La Llorona cai às margens dorio, cheia de dor, e morre.O hidalgo volta para a Espanha e se casa com a mulher rica. A alma de LaLlorona sobe aos céus. Lá o porteiro-mor diz que ela pode entrar nos céus, já quesofreu, mas que não pode lá entrar sem antes resgatar do rio as almas das duascrianças.E é por isso que se diz hoje em dia que La Llorona vasculha as margens dosrios com seus longos cabelos, que mergulha seus dedos compridos na água paraarrastá-los no fundo à procura dos filhos. É também por isso que as crianças vivasnão devem se aproximar dos rios depois de anoitecer, porque La Llorona podeconfundi-las com seus próprios filhos e levá-las embora para sempre.4==========================Passemos, agora, a uma versão moderna de La Llorona. À medida que acultura sofre influências diversas, nosso modo de pensar, nossas atitudes e nossostemas mudam. Muda, também, a história de La Llorona. Enquanto eu estava noColorado no ano passado, colhendo histórias de fantasmas, Danny Salazar, ummenino de dez anos de idade, sem dentes incisivos e com pés absurdamente grandespara um corpo mirrado (que um dia será muito alto), me passou esta história. Ele megarantiu que La Llorona não matou os filhos pelos motivos mencionados na versãoantiga."Não, não", insistiu Danny. La Llorona ficou com um rico hidalgo, dono defábricas junto ao rio. Algo, no entanto, deu errado. Durante a gravidez, La Lloronabebeu água do rio. Seus filhinhos, dois meninos gêmeos, nasceram cegos e com osdedos unidos por membranas, pois o hidalgo havia envenenado o rio com os dejetosdas suas fábricas.O hidalgo disse a La Llorona que não a queria, nem a seus filhos. Ele se casoucom uma mulher rica que queria os objetos produzidos pela fábrica. La Lloronajogou os filhos no rio porque eles iriam levar uma vida extremamente difícil. Depois,ela caiu morta de tanta dor. Ela foi para o céu, mas São Pedro lhe disse que ela nãopoderia entrar enquanto não encontrasse as almas dos filhos. Agora La Lloronaprocura o tempo todo por seus filhos no rio poluído, mas ela mal chega a ver algumacoisa de tão escura e suja que é a água. Ora seus longos dedos de fantasma varrem ofundo do rio. Ora ela vagueia pelas margens chamando pelos filhos o tempo todo.A poluição da alma selvagemEssa versão de La Llorona pertence à categoria que as cantadoras y cuentistaschamam de temblón, histórias de arrepiar. Elas tem o propósito de divertir, mas têmtambém a intenção de fazer com que os ouvintes sintam um arrepio daconscientização que leva a uma atitude pensativa, à contemplação e à ação.Independente das imagens da história que se modificam com o passar do tempo, otema permanece o mesmo: a destruição do feminino fecundo. Quer a contaminaçãoda beleza selvagem ocorra no mundo interior, quer no mundo exterior, ela é algo227doloroso de se presenciar. Na cultura moderna, às vezes consideramos que uma sejamuito mais devastadora do que a outra, mas as duas são de importância crítica eequivalente.Embora eu às vezes conte essa história de duas versões em outros contextos,5quando é compreendida como uma imagem da deterioração do fluxo criador, ela fazcom que as mulheres se arrepiem por bem saber do que se trata. Se considerarmosessa história como a condição da psique de uma única mulher, poderemos ter umaboa compreensão do enfraquecimento e definhamento do processo criativo damulher. Como outras histórias com finais trágicos, essa tem a função de ensinar àmulher o que não fazer e como voltar atrás, no caso de escolhas infelizes, para reduziro impacto negativo. Em geral, ao assumir uma postura psicológica oposta àquelaadotada pela protagonista da história, podemos aprender a viajar com a onda em vezde nos afogarmos nela.Esse conto emprega as imagens da bela mulher e do puro rio da vida paradescrever o processo criador da mulher num estado normal. Aqui, porém, quando eleinterage com um espírito destrutivo, tanto a mulher quanto o rio decaem. É entãoque a mulher cuja vida criativa está definhando vivencia, como La Llorona, umasensação de envenenamento, de deformação, um impulso para acabar com tudo. Emseguida, ela é levada a uma procura aparentemente interminável do seu potencialcriativo original, em meio aos destroços.Para a correção do seu ambiente psíquico, o rio precisa voltar a ficar limpo.Nessa história, não estamos preocupadas com a qualidade das produtos da nossacriação, mas com a determinação e os cuidados para com nossa vida criativa. Semprepor trás do ato de escrever, de pintar, de pensar, de curar, de fazer, de cozinhar, defalar, de sorrir, de criar, está o rio, o Río Abajo Río. O rio debaixo do rio alimentatudo o que criamos.Na simbologia, os grandes volumes de água representam o lugar em que se crêque a própria vida teve origem. Nas regiões hispânicas do sudoeste dos EstadosUnidos, o rio simboliza a capacidade de viver, de viver realmente. Ele é considerado amãe, La Madre Grande, a Grande Mulher, cujas águas não só correm nas valas eleitos de rios mas que se derramam de dentro do corpo das próprias mulheresquando seus filhos nascem. O rio é visto como a Gran Dama que passeia pela terracom uma saia rodada e esvoaçante, azul ou prateada e às vezes dourada, que se deitacom o solo para prepará-lo para o plantio. ,Algumas das minhas velhas amigas do sul do Texas dizem que El Río Grandenão poderia jamais ser um rio-homem, mas um rio-mulher. Elas riem e dizem, comoum rio poderia ser outra coisa a não ser La Dulce Acequia, a doce fenda, entre ascoxas da terra? No norte do Novo México, o rio na tempestade, no vendaval, nasinundações repentinas, é visto como aquela que está excitada, aquela que no cio correpara tocar tudo o que puder para fazer com que cresça.Vemos, então, que o rio simboliza aqui uma forma de generosidade femininaque desperta, excita e cria paixão. Os olhos das mulheres cintilam quando elas criam;suas palavras saem melodiosas; seu rosto fica ruborizado; seu próprio cabelo parecebrilhar mais. Elas ficam excitadas com a idéia, interessadas pelas possibilidades,apaixonadas pelo próprio pensamento, e a essa altura, como o grande rio, espera-seque elas se derramem continuamente no seu próprio caminho criativo. É desse jeitoque as mulheres se sentem realizadas. E são essas as condições do rio junto ao qualLa Llorona vivia antes que a destruição ocorresse.No entanto, como na história, pode acontecer que a vida criativa da mulherseja dominada por algo que deseje fabricar apenas produtos do ego, que não têmnenhum valor psicológico duradouro. Às vezes existem pressões originadas na sua228cultura que lhe dizem que suas idéias são inúteis, que ninguém vai se interessar porelas, que é vão o esforço de continuar. Isso é poluição. Isso equivale a derramarchumbo no rio. É isso o que envenena a psique.A satisfação do ego é permissível e importante por si só. O problema reside nofato de que o derramamento de complexos negativos ataca tudo o que significarnovidade, tudo o que for novo, que tenha potencial, que tenha acabado de nascer,tudo o que esteja no estado de crisálida, de lacuna, bem como o que estiver jácrescido, tudo o que for velho e venerado. Quando há um excesso de fabricação semalma, os resíduos tóxicos escorrem para o rio límpido, eliminando tanto o impulsocriador quanto a energia.O veneno no rioHá inúmeros mitos relativos à deterioração e represamento do criativo e doselvagem, quer eles tratem da contaminação da pureza, como foi representado pelanévoa nociva que se espalhou sobre a ilha de Lecia, onde eram armazenadas asmeadas da vida com as quais as Parcas teciam,6 quer tratem de histórias sobremalfeitores que tapam os poços de aldeias, causando, com isso, sofrimento e morte.Duas das histórias mais profundas são as atuais "Jean de Florette" e "Manon daPrimavera".7 Nessas histórias, dois homens, na esperança de despojar um pobrecorcunda, sua esposa e sua filhinha pequena das terras que eles vinham tentandorevitalizar com flores e arvores, tampam a nascente que alimenta aquela terra,provocando a destruição da família trabalhadora e dedicada.O efeito mais comum da poluição na vida criativa da mulher é a perda davitalidade. Isso prejudica a capacidade mulher de criar ou agir no mundo "lá fora".Embora existam épocas nos ciclos da vida criativa saudável da mulher nas quais o rioda criatividade desaparece no subsolo temporariamente, algo está se desenvolvendodo mesmo jeito. Nessas ocasiões, estamos em incubação. A sensação é muitodiferente da de uma crise espiritual.Num ciclo natural, existe inquietação e impaciência, talvez, mas não ocorrejamais uma sensação de que a alma selvagem esteja morrendo. Podemos saber adiferença através da avaliação da nossa expectativa: mesmo quando nossa energiacriativa está envolvida num longo processo de incubação, nós ainda ansiamos peloresultado. Sentimos os estalos e ondulações dessa nova vida que gira e zumbe dentrode nós.No entanto, quando a vida criativa morre porque não estivemos cuidando dasaúde do rio, a situação é inteiramente outra. Sentimo-nos exatamente como o rioque morre. Sentimos a perda de energia; sentimo-nos cansadas. Não há nadarastejando, incomodando, levantando folhas, refrescando, aquecendo. Nós nostornamos turvas, lentas de um modo negativo, envenenadas pela contaminação oupor um refluxo e estagnação de todas as nossas riquezas. Tudo dá a impressão deestar poluído, impuro e envenenado.Como pode a vida criativa da mulher ser poluída? Esse enlameamento da vidacriativa invade todas as cinco fases da criação: a inspiração, a concentração, aorganização, a implementação e a manutenção. As mulheres que perderam uma oumais dessas fases relatam que não "conseguem pensar" em nada de novo, de útil ouque desperte sua empatia. Elas se vêem facilmente ''perturbadas" por casos de amor,pelo excesso de trabalho, pelo excesso de lazer, pela fadiga ou pelo receio defracassar.8Por vezes, elas não conseguem dominar a mecânica da organização, e seusprojetos acabam espalhados por aí em centenas de lugares, aos pedaços. Às vezes, os229problemas se originam da ingenuidade da mulher acerca da sua própria extroversão.Ela acha que, ao fazer alguns movimentos no mundo exterior, realmente fez algumacoisa. Isso equivale a fazer os braços de alguma coisa, mas não as pernas nem acabeça, e considerá-la pronta. Ela se sente necessariamente incompleta.Às vezes, a mulher tropeça na própria introversão e quer simplesmente que ascoisas existam só porque ela deseja. Ela pode acreditar que basta pensar que a idéia ésuficientemente boa e que não há necessidade de nenhuma manifestação externa. Sóque ela se sente despojada e incompleta do mesmo jeito. Todas essas sãomanifestações de poluição no rio. O que está sendo fabricado não é a vida, mas algoque inibe a vida.Outras vezes, ela sofre agressões por parte daqueles que a cercam ou das vozesque lhe soam na cabeça: "O que você faz não está bem certo, não é bom o suficiente,não é suficientemente isso ou aquilo. É pretensioso demais, ínfimo demais,insignificante demais, demora demais, é fácil ou difícil demais." Isso equivale aderramar cádmio no rio.Há uma outra história que descreve o mesmo processo, mas emprega umsimbolismo diferente. Na mitologia grega, há um episódio no qual os deusesdeterminam que um grupo de aves chamadas Harpias9 deverá punir um indivíduoconhecido como Fineu. Cada vez que a comida de Fineu é servida magicamente, obando aparece voando, rouba parte do alimento, espalha outra parte e defeca sobre oresto, deixando o pobre homem com uma fome extrema.1 0Essa poluição literal também pode ser compreendida em termos figurados comuma fieira de complexos internos à psique, cuja única razão de ser consiste ematrapalhar. Essa história é decididamente um temblón, uma história de arrepiar. Elanos dá arrepios de reconhecimento já que todas nós passamos por isso. A "Síndromedas Harpias" destrói através do menosprezo aos nossos talentos e esforços e atravésde um diálogo interior de enorme depreciação. A mulher propõe uma idéia, e aHarpia caga sobre ela. A mulher diz, "Bem, acho que eu devia fazer isso e aquilo." AHarpia responde, "Que idéia idiota. Ninguém vai ligar para isso. É ridiculamentesimplista. Ora, ouça o que lhe digo, suas idéias são todas estúpidas, as pessoas vão rir,você realmente não tem nada a dizer." E assim que a Harpia fala.As desculpas são outra forma de poluição. De escritoras, pintoras, bailarinas eoutras artistas, ouvi todo tipo de desculpa inventada desde que a Terra esfriou. "Bem,um desses dias vou arranjar tempo para meu trabalho." Enquanto isso não acontece,ela se mantém numa depressão sorridente. "Estou ocupada, é, consigo um tempinhoaqui e ali para escrever, ora, escrevi dois poemas no ano passado, é, e terminei umquadro e parte de outro nos últimos dezoito meses. É, a casa, as crianças, o marido, onamorado, o gato, o bebê precisam de minha total atenção. Vou conseguir me dedicarao meu trabalho. Não tenho dinheiro, não tenho tempo, não consigo encontrartempo, não consigo criar tempo, não posso começar sem ter os melhores e mais carosinstrumentos ou experiências, simplesmente não estou com vontade agora, ainda nãoestou com a disposição de ânimo certa. Só preciso de pelo menos um dia paraconseguir, só preciso de uns dias para conseguir. Só preciso de algumas semanascomigo mesma para conseguir. Eu só, eu só..."O rio em chamasJá na década de 1970, o rio Cuyahoga em Cleveland ficou tão poluído quecomeçou a pegar fogo. A corrente criativa poluída pode de repente irromper numfogo tóxico que queima não somente o combustível do lixo do rio mas incineratambém todas as formas de vida. Um excesso de complexos psíquicos em atividade ao230mesmo tempo pode causar um dano imenso ao rio. Complexos psicológicos negativosse erguem e questionam seu valor, sua intenção, sua sinceridade e seu talento. Elestambém lhe enviam mensagens no sentido de afirmar inequivocamente que vocêdeve trabalhar para "ganhar a vida", fazendo coisas que a deixam exausta, que nãolhe permitem nenhum tempo para criar, que destroem sua vontade de imaginar.Alguns dos castigos e das sabotagens preferidos dos complexos malévolosperpetrados contra a criatividade das mulheres giram em torno da promessa feita aoself da alma de que terá "tempo para criar" em algum ponto no futuro remoto. Ou dapromessa de que, quando tivermos alguns dias livres, a agitação afinal começará. Issoé tolice. O complexo não tem nenhuma intenção semelhante. É apenas um meio deabafar o impulso criativo.Pode acontecer que as vozes sussurrem, "Só se você terminar o doutorado, suaobra será decente. Só se você for elogiada pela rainha; só se você receber o prêmio tal,só se sua obra sair na revista tal, só se, só se, só se."Essa atitude de condicionar o impulso criativo equivale a entupir a alma comalimentos que não nutrem. Uma coisa é receber qualquer tipo de comida, outra bemdiferente é ser realmente nutrida. Com enorme freqüência, a lógica do complexo éextremamente falha, muito embora ele tente convencê-la do contrário.Um dos maiores problemas do complexo criativo está na acusação de que nãoimporta o que você não esteja fazendo, não irá dar certo porque você não estáraciocinando com lógica, não está sendo racional, o que você fez até agora não eralógico e, portanto, está fadado ao fracasso. Em primeiro lugar, os estágios básicos dacriação não são lógicos — nem deveriam ser. Se o complexo conseguir interromperseu avanço com essas alegações, você estará nas mãos dele. Diga-lhe que se cale ouque vá embora até você ter terminado. Lembre-se, se a lógica fosse tudo o que há nomundo, certamente todos os homens cavalgariam de lado.Já vi mulheres cumprindo longos expedientes em empregos que desprezam sópara poder comprar objetos caríssimos para a casa, o parceiro, os filhos, enquantodeixam em segundo plano outros talentos consideráveis. Já vi mulheres insistindo emlimpar tudo dentro de casa antes de poder se sentar para escrever... e todas sabemosque há algo de curioso na limpeza doméstica... ela nunca termina. Um jeito perfeitopara paralisar uma mulher.A mulher precisa ter o cuidado de não permitir que o excesso deresponsabilidade (ou de respeitabilidade) roubem o tempo necessário para seusêxtases, improvisos e repousos criativos. Ela deve simplesmente fincar o pé e dizernão à metade do que ela acredita ser seu "dever". A arte não foi feita para ser criadasomente em momentos roubados.A dispersão de planos e projetos, como se pela ação do vento, ocorre quando amulher tenta organizar uma idéia criadora, e esta de certo modo não pára de serespalhada, ficando cada vez mais confusa e desorganizada. A mulher não controla aidéia de um modo mais concreto porque, mais uma vez, não tem tempo para fazertodas as anotações e organizá-las, ou pode ser que ela esteja sendo requisitada portantas outras coisas que acaba perdendo o fio da meada e não consegue voltar a ele.Pode também acontecer de o processo criador da mulher ser malcompreendido ou desrespeitado pelos que a cercam, Cabe a ela informar-lhes que,quando ela está com "aquela expressão" nos olhos, isso não quer dizer que ela sejaum terreno baldio à espera de que o ocupem. Quer dizer que ela está equilibrando umgrande castelo de cartas de idéias na ponta de um único dedo, que está unindocuidadosamente todas as cartas usando minúsculos ossos cristalinos e um pouquinhode saliva e que, se ao menos conseguir levar tudo até a mesa sem que caia ou sedesmorone, ela poderá trazer à luz uma imagem do mundo invisível. Falar com ela231nesse momento equivale a criar um vento de Harpia que, com um sopro, destrói todaa estrutura. Falar com ela nesse momento equivale a partir seu coração.No entanto, a mulher pode agir assim consigo mesma ao descartar suas idéiasaté que toda a animação se esgote, ao não fazer questão quando outras pessoas seesgueiram levando seus materiais e instrumentos de criação, ao cometer o simplesdeslize de não comprar os equipamentos correios para executar corretamente otrabalho criativo, ao parar e recomeçar tantas vezes, permitindo que todo mundo ainterrompa à vontade, que o projeto acaba em ruínas.Se a cultura na qual a mulher vive agride a função criadora dos seus membros,se ela parte ou esfacela qualquer arquétipo ou deturpa sua intenção ou significado,eles serão incorporados em seu estado esfacelado nas psiques dos seus membros damesma forma; como uma força alquebrada, e não como uma força sã, cheia devitalidade e potencial.Quando esses elementos prejudicados, acerca de como permitir a vida criadorae de como promovê-la, são ativados dentro da psique da mulher, é difícil ter uminsight mínimo quanto ao que está errado. Estar dentro de um complexo é o mesmoque estar dentro de um saco preto. Ali dentro é escuro, não conseguimos ver o quenos capturou, só sabemos que fomos apanhadas por alguma coisa. Dessa forma,ficamos temporariamente incapazes de organizar nossos pensamentos ou nossasprioridades e, como animais presos dentro de sacos, começamos a agir sem refletir.Embora a ação sem reflexão possa ser útil ocasionalmente, como no princípio que dizque a "primeira idéia é a melhor idéia", nessas circunstâncias ele não se aplica.No processo de criação envenenado ou paralisado, a mulher oferece ao beloself da alma "comida de mentirinha". Ela tenta ignorar a condição do espírito. Assim,ela consegue freqüentar um "seminariozinho" aqui, um "cursinho" ali, arranja um"tempinho" para ler mais adiante. Mas, no final das contas, falta a substância. Amulher não está enganando ninguém a não ser a si mesma.Portanto, quando esse rio morre, ele já não tem sua correnteza, sua força vital.Os hindus dizem que sem Shakti, a personificação da força vital feminina, Shiva, queabrange a capacidade de agir, se torna um cadáver. Ela é a energia vital que anima oprincípio masculino; e o princípio masculino, por sua vez, estimula a ação nomundo.1 1Vemos, por conseguinte, que o rio precisa apresentar um equilíbrio razoávelentre suas poluições e suas purificações, ou tudo resultará em nada. No entanto, a fimde proceder dessa forma, o ambiente imediato precisa ser propício e acessível. É fatoque, quanto menos disponíveis os elementos essenciais, como o alimento e a água, oabrigo e a segurança, menores serão as opções. E, quanto menores as opções, menoscriativa será a vida, pois a criatividade prospera nas combinações inúmeras eilimitadas de todas as coisas.O hidalgo destrutivo na história é a parte profunda mas imediatamentereconhecível da mulher ferida. Ele é o seu animus, o que faz com que ela se esforce,não para criar — muitas vezes ela não consegue sequer chegar a esse ponto — mas,sim, para obter uma permissão inequívoca, um sólido sistema interno de apoio paraque crie à vontade. Espera-se que um animus saudável se envolva com ofuncionamento do rio, e é assim que deve ser. Ele é o auxiliar que observa para ver see preciso fazer algo. Na história de La Llorona, porém, ele assume o comando,impedindo a nova vida essencial. A mulher tem, então, um número cada vez menorde opções criativas. O animus conquista o poder de mandar na mulher, de depreciarseu trabalho. Isso ele consegue através da destruição do rio.Examinemos, em primeiro lugar, os parâmetros do animus em geral.Passaremos, em seguida, à compreensão de como a vida criativa da mulher se232deteriora quando ocorre uma influência negativa do animus, bem como ao que elapode e deve fazer a respeito. A criatividade deve ser um ato de nítida consciência. Umato que reflita a clareza do rio. O espírito é o homem do rio. Ele é o encarregado. Équem cuida da água e a protege.O homem do rioAntes de podermos entender o que o homem da história de La Llorona fez aopoluir o rio, precisamos ver como o que ele representa deve ser um constructopositivo na psique da mulher. Na definição junguiana clássica, o animus é a força daalma nas mulheres e é considerado masculino. No entanto, muitas psicanalistas,entre as quais me incluo, através de suas próprias observações, chegaram a umaconclusão contrária ao ponto de vista clássico e afirmam, em vez disso, que a fonte derevitalização da mulher não é masculina e alheia a ela, mas feminina e bemconhecida.1 2Seja como for, creio que o conceito masculino do animus tenha amplaaplicação. Existe uma forte correlação entre as mulheres que têm medo de criar, demanifestar suas idéias ao mundo, e as imagens de homens feridos ou que ferem nosseus sonhos. Por outro lado, os sonhos das mulheres com boa capacidade demanifestação externa muitas vezes apresentam uma forte figura masculina queaparece com regularidade sob diversos disfarces.O animus pode ser compreendido melhor como uma força que ajuda asmulheres a agir em sua própria defesa no mundo objetivo. O animus ajuda a mulhera expor seus pensamentos e sentimentos íntimos e específicos de um modo concretoem termos emocionais, sexuais, financeiros, criativos e outros — em vez de expô-losnuma imagem que se modele de acordo com um desenvolvimento masculinopadronizado numa determinada cultura.As figuras masculinas nos sonhos das mulheres parecem indicar que o animusnão é a alma da mulher, mas que pertence a ela, provém dela, é uma "ponte"essencial.1 3 Ele possui capacidades fantásticas que o fazem chegar à altura dotrabalho como um portador e um intermediário. Ele é como um negociante da alma.Ele importa e exporta bens e conhecimentos. Ele escolhe o melhor entre o que éoferecido, negocia o melhor preço, faz o acompanhamento e completa a transação.Outro meio de se interpretar essa imagem consiste em considerar a MulherSelvagem, o Self da alma, como o artista, e o animus, como o braço do artista.1 4 AMulher Selvagem é o motorista; o animus acelera o veículo. Ela compõe a canção; eleescreve a partitura. Ela imagina; ele dá conselhos. Sem ele, a peça fica escrita nanossa imaginação, mas nunca é escrita e nunca é representada. Sem ele, o palco podeestar repleto, mas as cortinas nunca se abrem e a portaria permanece semiluminação.Se quisermos traduzir o animus saudável por uma metáfora em espanhol, eleseria el agrimensor, o que conhece a configuração do terreno e, com seusinstrumentos, mede a distância entre dois pontos. Ele define cantos e estabelecelimites. Podemos, também, chamá-lo de el jugador, aquele que estuda e sabe como eonde colocar os marcos para ganhar ou para vencer. Esses são alguns dos aspectosmais importantes de um animus robusto.Portanto, o animus trafega pela estrada entre dois territórios e às vezes entretrês: o mundo subterrâneo, o mundo interior e o mundo exterior. Todas as idéias esentimentos da mulher são amontoados e transportados de um ponto a outro — nasduas direções — pelo animus, que tem uma afinidade com todos os mundos. Ele trazidéias de "lá de fora" de volta para dentro dela e transfere idéias do Self da alma pela233ponte para a fruição e "para o mercado". Sem o construtor e o zelador dessa ponte, avida interior da mulher não pode se manifestar com determinação no mundoobjetivo.Não é preciso chamá-lo de animus; dêem-lhe o nome que preferirem. Noentanto, compreendam também que existe atualmente dentro da cultura femininauma suspeita quanto ao masculino, um medo de "precisar do masculino". Isso temcomo origem os traumas que mal começam a se curar provocados pela família e pelacultura em tempos passados, quando as mulheres eram tratadas como servas, nãocomo indivíduos de identidade própria. Ainda está recente na memória da MulherSelvagem que houve um tempo em que as mulheres talentosas eram descartadascomo lixo, em que uma mulher não podia ter uma idéia a não ser que em segredo aplantasse num homem, que então a apresentava ao mundo lá fora como se fosseexclusivamente sua.Recentemente, porém, creio que não podemos ignorar nenhuma metáfora quenos ajude a ver e a ser. Eu não confiaria numa paleta na qual faltasse o vermelho, oazul, o amarelo, o branco ou o preto. Vocês também não confiariam. O animus é umacor primária na paleta da psique feminina.Portanto, em vez de ser a natureza da alma da mulher, o animus, ou naturezacontra-sexual da mulher, é uma profunda inteligência psíquica com capacidade paraagir, que viaja de um lado para o outro entre os mundos. Essa força tem a capacidadede expressar e encenar os desejos do ego, de executar os impulsos e idéias da alma, dedespertar a criatividade da mulher de uma forma manifesta e concreta. O aspectoprincipal do desenvolvimento do animus é a real manifestação de pensamentos,impulsos e idéias muito particulares.Além do mais, o animus é um elemento da psique da mulher que precisa serexercitado, que precisa treinar com regularidade, a fim de ser capaz de agir. Se ele fornegligenciado na vida psíquica da mulher, irá se atrofiar, exatamente como ummúsculo que permaneceu inerte por muito tempo.Embora algumas mulheres levantem a hipótese de que uma natureza demulher-guerreira, a natureza de amazona, a da caçadora, possa suplantar esseelemento "masculino-dentro-do-feminino", para mim existem muitas camadas enuanças da natureza masculina, como por exemplo um certo tipo de criação denormas, de decretação de leis, de estabelecimento de fronteiras, em termosintelectuais, que é extremamente valioso para as mulheres que vivem nos nossos dias.Esses atributos masculinos não se originam do temperamento psíquico instintivo dasmulheres com a mesma forma ou tom daqueles da sua natureza feminina.1 5Portanto, por vivermos, como vivemos, num mundo que exige tanto a açãomeditativa quanto a ação concreta, considero muito útil o emprego do conceito deuma natureza masculina ou animus na mulher. Quando em perfeito equilíbrio, oanimus atua como auxiliar, companheiro, amante, irmão, pai, rei. Isso não quer dizerque o animus seja rei da psique da mulher, como poderia sustentar um ponto de vistapatriarcal doentio. Quer dizer, sim, que existe um aspecto majestoso na psique damulher, o de um rei que serve com carinho à natureza selvagem, que deve trabalharpara defender a mulher e seu bem-estar, governando o que ela lhe designar, reinandosobre os territórios psíquicos que ela lhe conceder.Pois é assim que deve ser, mas na história o animus persegue outras metas emdetrimento da natureza selvagem e, à medida que o rio se enche de detritos, a própriacorrente passa a envenenar outros aspectos da psique criativa, especialmente osfuturos filhos da mulher.O que acontece quando a psique passou ao animus o poder do rio e esse poderfoi mal utilizado? Quando eu era criança, alguém me disse que era tão fácil criar para234o bem quanto para o mal. Descobri que isso não é verdade. É muito mais difícilmanter o rio limpo. É muito mais fácil deixá-lo ficar imundo. Digamos, então, quemanter a correnteza límpida é um desafio natural que todas nós enfrentamos.Esperamos corrigir a turvação com a maior rapidez e abrangência possível.Mas, e se algo assumir o controle do fluxo criador, tornando-o cada vez maisenlameado? E se ficarmos presas nessa armadilha? E se de algum modo começarmosobstinadamente a extrair frutos dessa situação, a não só gostar dela mas nela confiar,a ganhar nosso pão com ela, a nos sentirmos vivas através dela? E se a usarmos paralevantar da cama pela manhã, para nos levar a qualquer lugar, para fazer de nósalguém aos nossos próprios olhos? Essas são as armadilhas que esperam por todasnós.O hidalgo nessa história representa um aspecto da psique da mulher que, parausar uma linguagem coloquial, "apodreceu". Ele se corrompeu. Ele extrai vantagemde fabricar veneno e, de certo modo, está vinculado à vida insalubre. Ele é como umrei que governa por meio de uma fome mal orientada. Ele nem é sábio nem jamaispoderá ser amado pela mulher que ele simula servir.É muito bom para a mulher ter uma figura de um animus devotado, forte,capaz de uma visão penetrante, capaz de ouvir tanto no mundo objetivo quanto nomundo subterrâneo, capaz de prever a probabilidade do que ocorrerá a seguir,tocando decisões quanto à luz e à justiça a partir da soma do que ele percebe e vê emtodos os mundos. Nesse caso, porém, ele é um herege. O papel do hidalgo, do rei oudo mentor na psique da mulher destina-se a ajudar a realizar seus potenciais e suasmetas, a tornar manifestas as idéias e ideais que lhe são caros, a avaliar a justiça, a seencarregar dos armamentos, a criar estratégias quando estiver ameaçada, a ajudar aunir todos os seus territórios psíquicos.Quando o animus se transformou numa ameaça, como vemos na história, amulher perde a confiança nas suas decisões. À medida que seu animus se vêenfraquecido pela sua parcialidade, a água do rio passa de algo que é essencial à vidapara algo a ser abordado com a mesma precaução com que abordamos um assassinode aluguel. Ocorre, então, a fome na terra e a poluição no rio.Criar é creare em latim,1 6 significando produzir, fazer (vida), produzir algoonde antes não havia nada. É o ato de beber água do rio poluído que provoca asuspensão da vida interior e, por conseguinte, da exterior. Na história, essa poluiçãogera a deformação dos filhos, e esses filhos simbolizam as novas idéias e ideais. Osfilhos representam nossa capacidade de produzir algo onde antes não havia nada.Podemos reconhecer que essa deformação do novo potencial está ocorrendo quandocomeçamos a questionar nossa capacidade, e especialmente nosso direito, de pensar,agir ou ser.Mulheres talentosas, mesmo quando resgatam sua vida criativa, mesmoquando obras lindas saem das suas mãos, da sua caneta, do seu corpo, continuam aquestionar se são realmente escritoras, pintoras, artistas, gente, gente de verdade. E éclaro que elas são reais, muito embora possam gostar de se atormentar quanto ao queconstitui a realidade. Uma agricultora é real quando olha suas terras lá fora e planejao plantio de primavera. Uma corredora é real quando dá o primeiro passo. Uma flor éreal quando ainda está no caule da planta-mãe. Uma árvore é real quando ainda éuma semente dentro de um pinhão. Uma árvore adulta é um ser vivo real. Real é tudoo que tem vida.O desenvolvimento do animus varia de mulher para mulher. Não se trata deuma criatura perfeitamente formada que salta do ventre dos deuses. Ele parece teruma qualidade inata, mas também precisa "crescer", ser ensinado e treinado. Ele sedestina a ser uma força poderosa e direta. No entanto, quando o animus sofre danos235por parte de todas as inúmeras forças da cultura, algo de desgastante, de mesquinho,ou uma espécie de entorpecimento, que algumas pessoas chamam de "neutralidade",se interpõe entre o mundo interno da psique e o mundo externo da página embranco, da tela intocada, da pista de dança, da sala da diretoria, da platéia à espera.Esse "algo" coagula o rio, impede o pensamento, emperra a caneta e o pincel, trava asarticulações por um tempo interminável, abafa as novas idéias e, assim, sofremos.Ocorre um estranho fenômeno com a psique. Quando a mulher sofre de umanimus negativo, qualquer esforço no sentido de um ato criativo aciona esse animuspara que ele a agrida. Ela apanha a caneta para escrever, e a fábrica vomita seuveneno sobre o rio. Ela pensa em se matricular num curso, ou começar aulas, maspára no meio, sufocada com a falta de apoio e alimento interiores. A mulher acelera,mas não pára de recuar. Há mais desenhos de bordado não-terminados, maiscanteiros de flores não-concretizados, mais caminhadas não-feitas, mais bilhetesnão-escritos só para dizer "Eu me importo com você", mais línguas estrangeirasjamais aprendidas, mais aulas de música abandonadas, mais tecidos suspensos notear numa espera interminável...Essas são as formas deterioradas da vida. São os filhos envenenados de LaLlorona. E todas elas são jogadas no rio; são jogadas de volta às águas poluídas quetanto as afligiam desde o início. Nas melhores circunstâncias arquetípicas, elasdeveriam borbulhar por algum tempo e, como uma fênix, deveriam renascer dascinzas sob uma nova forma. Aqui, porém, algo está errado com o animus e, portanto,com a capacidade de manifestar e implementar nossas idéias no mundo. E o rio estátão cheio de excrementos de complexos que nada pode nascer dele para uma novavida.E assim chegamos à parte mais difícil. Temos de entrar na lama e procurar porisso tudo. Como La Llorona, temos de dragar o rio à procura da nossa vida da alma,da nossa vida criativa. E ainda mais uma tarefa, também árdua: precisamos purificaro rio para que La Llorona possa ver, para que ela e nós possamos encontrar a almadas crianças e nos sentirmos em paz para criar novamente.A cultura torna piores suas "fábricas" e sua poluição através do seu imensopoder de desvalorização do feminino — e sua incompreensão quanto à naturezamediadora do masculino.1 7 Infelizmente a cultura muitas vezes mantém o animus damulher no exílio insistindo para que seja resolvida uma daquelas perguntasinsolúveis e disparatadas que os complexos, querem dar a entender que são válidas ediante das quais muitas mulheres se intimidam. "Mas será que você é mesmo umaescritora [artista, mãe, filha, irmã, esposa, amante, trabalhadora, dançarina, pessoa]de verdade?" "Será que você realmente é talentosa [prendada, valiosa]?" "Será quevocê realmente tem algo a dizer que valha a pena [que seja esclarecedor, que iráajudar a humanidade, que irá descobrir uma cura para o antraz]?Não é de surpreender que, quando o animus da mulher é dominado por umafabricação psíquica de natureza negativa, a produção da mulher se reduz, à medidaque vão definhando sua confiança e sua força criadora. Mulheres nesse tipo de afliçãoafirmam "não conseguir ver uma saída" do chamado bloqueio de escritor, ou da suacausa. Seu animus está extraindo todo o oxigênio do rio, e elas se sentem"extremamente cansadas" e sofrem uma "tremenda perda de energia", parecem nãoconseguir "dar o primeiro passo", sentem-se refreadas por alguma coisa.Reassumindo o rioA natureza da vida-morte-vida faz com que o destino, o relacionamento, oamor, a criatividade e tudo o mais se movimentem em coreografias amplas e236selvagens, uma atrás da outra na seguinte ordem: criação, crescimento, poder,dissolução morte, incubação, criação, e assim por diante. A sabotagem ou a ausênciade idéias, pensamentos, sentimentos é o resultado de uma corrente tumultuada. Eiscomo reassumir o rio.Aceite o alimento para começar a limpeza do rio. Elementos contaminadoresque perturbam o rio ficam óbvios quando a mulher rejeita elogios sinceros acerca dasua vida criativa. Pode ser que haja apenas um pouquinho de poluição, como nodespreocupado "Ah, como você está sendo simpático com esse elogio", ou pode serque os problemas com o rio sejam graves: "Ora, essa velharia" ou "Você deve estarficando louco." Além da atitude defensiva: "É claro que eu sou maravilhosa. Comovocê poderia deixar de perceber?" Todas essas expressões são sinais de um animusenfermo. Podem chegar coisas boas à mulher, mas elas são imediatamenteenvenenadas.Para reverter o fenômeno, a mulher treina aceitar elogios (mesmo que aprincípio ela dê a impressão de estar se jogando ao cumprimento para, dessa vez,ficar com ele). Ela o saboreia e repele o animus maligno que quer responder "Isso é oque você pensa. Você na verdade não sabe todos os erros que ela fez. Você não sabecomo ela é chata...", e assim por diante.Os complexos negativos sentem uma atração especial pelas idéias maissuculentas, pelas idéias mais maravilhosas e revolucionárias e pelas formas decriatividade mais extravagantes. Portanto, não há outra alternativa: precisamosinvocar um animus que aja com maior limpeza, e o mais velho deverá ser aposentado,ou seja, transferido para os arquivos da psique, onde deixamos arquivados impulsos ecatalisadores vazios e dobrados. Ali eles se transformam em artefatos, em vez deagentes ou de emoção.Seja sensível. É assim que se limpa o rio. Os lobos levam vidas imensamentecriativas. Eles fazem dezenas de opções todos os dias, decidem de um modo ou deoutro, avaliam distâncias, concentram-se na presa, calculam as suas chances,aproveitam oportunidades, reagem vigorosamente para realizar suas metas. Suascapacidades de encontrar o que está oculto, de aglutinar intenções, de focalizar aatenção no resultado desejado e de agir em seu próprio benefício para atingi-lo são asexatas características necessárias para a realização criativa nos seres humanos.Para criar é preciso que sejamos capazes de nos sensibilizar. A criatividade é acapacidade de ser sensível a tudo que nos cerca, a escolher em meio às centenas depossibilidades de pensamento, sentimento, ação e reação, e a reunir tudo isso numamensagem, expressão ou reação inigualável que transite ímpeto, paixão edeterminação. Nesse sentido, a perda do nosso ambiente criativo significa que nosencontramos listadas a uma única opção, que fomos despojadas dos nossossentimentos e pensamentos, ou que os reprimimos ou censuramos, sem agir, semfalar, sem fazer, sem ser.Seja selvagem. É assim que se limpa o rio. O rio não começa já poluído; isso énossa responsabilidade. O rio não fica seco; nós o represamos. Se quisermos lhepermitir sua liberdade, precisamos deixar que nossa vida ideativa se solte, corra livre,permitindo a vinda de qualquer coisa, a princípio sem censurar nada. Essa é a vidacriativa. Ela é composta do paradoxo divino. Para criar, precisamos estar dispostas aser rematadas idiotas, a nos sentar num trono em cima de um imbecil, cuspindo rubispela nossa boca. Só assim o rio correrá, e nós poderemos nos postar na correnteza.Podemos estender nossas saias e blusas para apanhar o que pudermos carregar.Comece. É assim que se limpa o rio poluído. Se você tiver medo, tiver receio defracassar, digo-lhe que comece já, fracasse se for preciso, recupere-se, recomece. Sefracassar de novo, fracassou. E daí? Comece novamente. Não é o fracasso que nos237detém, mas é a relutância em recomeçar que nos faz estagnar. Se você estiverapavorada, qual é o problema? Se você estiver com medo de que algo vá dar um saltopara mordê-la então pelo amor de Deus, resolva isso imediatamente. Deixei que seumedo surja e a morda para que você possa superá-lo e seguir adiante. Você irásuperá-lo. O medo acaba passando. Nesse caso, é melhor que você o encare de frente,que o sinta e que o supere, do que continuar a usá-lo como pretexto parai evitarlimpar o rio.Proteja seu tempo. É assim que se eliminam os poluentes. Conheço umapintora muito impetuosa nas Montanhas Rochosas que pendura o seguinte cartaz naporta de casa quando ela está disposta a pintar ou a pensar. "Hoje estou trabalhandoe não vou receber visitas. Sei que você pensa que isso não se aplica a você porque vocêé o gerente da minha conta no banco, meu agente ou meu melhor amigo. Mas seaplica sim.''Outra escultora que conheço tem o seguinte cartaz pendurado no portão. "Nãoperturbe a não ser que eu tenha ganho a loteria ou que alguém tenha visto JesusCristo na rodovia de Old Taos." Como se pode ver, o animus positivo tem excelentesfronteiras.Fique com ela. Como eliminar ainda mais a poluição? Insistindo para que nadaimpeça de exercitar o animus; continuando nossas iniciativas que tecem alma e criamasas, nossa arte, nossos consertos e remendos psíquicos, quer nos sintamos fortes,quer não, quer estejamos prontas, quer não. Se necessário, nos amarrando ao mastro,à cadeira, à mesa de trabalho, à árvore, ao cacto — onde quer que estejamos criando.Esses complexos negativos são eliminados ou transformados — seus sonhosirão guiá-la no trecho final do caminho — quando você finca o pé, de uma vez portodas, e afirma, "Amo a minha vida criativa mais do que amo cooperar com a minhaprópria opressão." Se maltratássemos nossos filhos, o serviço de assistência socialviria bater às nossas portas. Se maltratássemos nossos animais de estimação, asociedade protetora dos animais viria nos afastar deles. No entanto, não existenenhuma Patrulha da Criatividade ou Polícia da Alma para intervir se insistirmos emesfaimar nossa alma. Somos só nós mesmas. Nós somos as únicas a cuidar do Self daalma e do animus heróico. É uma enorme crueldade regá-los apenas uma vez porsemana, uma vez por mês ou mesmo uma vez por ano. Cada um deles tem seu ritmocircadiano. Eles precisam de nós e da água da nossa atividade todos os dias.Proteja sua vida criativa. Se você quiser evitar a hambre del alma, a almafaminta, chame o problema pelo seu verdadeiro nome e trate de consertá-lo. Pratiquesua atividade todos os dias. E então, não permita que nenhum homem, mulher,parceiro, amigo, religião, emprego ou voz resmungona venha forçá-la a passar fome.Se necessário, arreganhe os dentes.Forje seu verdadeiro trabalho. Construa aquele abrigo de carinho econhecimento. Transfira sua energia de um lado para o outro. Insista em atingir umequilíbrio entre a responsabilidade prosaica e o êxtase pessoal. Proteja a alma. Insistanuma vida criativa de qualidade. Não permita que seus próprios complexos, suacultura, os dejetos intelectuais ou que qualquer papo-furado político, pedagógico,aristocrático ou pretensioso lhe roubem essa vida.Ofereça alimentos para a vida criativa. Embora muitas coisas sejam boas enutritivas para a alma, a maioria recai num dos quatro grupos básicos de alimentosda Mulher Selvagem: 0 tempo, a sensação de integração, a paixão e a soberania. Façaestoque deles. Eles mantêm o rio limpo.Quando o rio estiver novamente limpo, ele estará livre para correr. A produçãocriativa da mulher aumenta e daí em diante continua em ciclos naturais de aumento eredução. Nada será enlameado ou destruído por muito tempo. Quaisquer agentes de238contaminação que ocorram naturalmente serão neutralizados com eficácia. O riovolta a ser nosso sistema de realimentação, um sistema no qual penetramos semmedo, do qual podemos beber sem preocupação, junto ao qual podemos tranqüilizara alma atormentada de La Llorona, curando seus filhos e os devolvendo para ela.Podemos então desmontar o mecanismo poluente da fábrica, instalar um novoanimus. Podemos viver nossa vida como desejarmos e como nos for conveniente, aliao lado do rio, com nossos filhinhos no colo, mostrando-lhes seu reflexo na águalimpíssima.A concentração e o moinho da fantasiaNa América do Norte, o conto intitulado "A menininha dos fósforos" é maisconhecido na versão de Hans Christian Andersen. Ele descreve as conseqüências dafalta de alimento e da falta de concentração. Trata-se de uma história muito antiga,contada pelo mundo afora, em versões diferentes. Às vezes ela fala de um carvoeiroque usa seus últimos carvões para se aquecer enquanto sonha com tempos passados.Em algumas versões, o símbolo dos fósforos é transformado em algum outro objeto,como na história do pequeno florista, que descreve um homem magoado quecontempla fixamente o centro das suas últimas flores até desaparecer para sempre.Embora haja quem dê uma interpretação superficial a essas histórias e declareque não passam de histórias piegas, querendo dizer que elas têm excessivo apeloemocional, seria um erro ignorá-las sem lhes dedicar maior atenção. Em suaessência, esses contos são profundas expressões da psique, a qual pode vir a serhipnotizada negativamente a um tal ponto que a vida real e vibrante começa a"morrer" em espírito.1 8A primeira vez que ouvi essa versão de ''A menininha dos fósforos" foi daminha tia Katerina, que veio para os Estados Unidos depois da Segunda GuerraMundial. Durante a guerra, sua humilde aldeia de lavradores da Hungria havia sidodominada e ocupada por três nações hostis. Ela sempre começava a história dizendoque sonhos agradáveis sob circunstâncias difíceis não fazem bem; que nos temposárduos precisamos ter sonhos fortes, reais, sonhos que possam se realizar setrabalharmos com afinco e bebermos nosso leite à saúde da Virgem.A menininha dos fósforosEra uma vez uma menininha que não tinha nem pai nem mãe e que morava nafloresta negra. Havia nas proximidades da floresta uma aldeia, e ela havia aprendidoque podia comprar lá fósforos por meio pêni que podiam ser vendidos na rua por umpêni inteiro. Se ela vendesse fósforos em quantidade suficiente, poderia comprar umafatia de pão, voltar para sua meia-água na floresta e ali dormir com as únicas roupasque possuía.Chegou o vento, e ficou muito frio. Ela não tinha sapatos, e seu casaco era tãofino que chegava a ser transparente. Seus pés há muito haviam passado do ponto deestar azuis de frio. Seus dedos dos pés estavam brancos, assim como os dedos dasmãos e a ponta do nariz. Ela perambulava pelas ruas, implorando a desconhecidosque comprassem fósforos dela. Mas ninguém parava e ninguém prestava a mínimaatenção a ela.Por isso, uma noite ela se sentou dizendo para si mesma que tinha fósforos eque podia acender uma fogueira para se aquecer. Só que ela não tinha nem gravetosnem lenha. Resolveu acender os fósforos assim mesmo.239Ela se sentou com as pernas esticadas para a frente e acendeu o primeirofósforo. Ao fazê-lo, pareceu-lhe que o frio e a neve desapareciam por completo. O queela viu no lugar da neve rodopiante foi uma sala, uma linda sala com um enormefogão de cerâmica verde-escuro, com uma porta de ferro trabalhado em arabescos.Tanto calor emanava do fogão que o ar chegava a ondular. Ela se aconchegou junto aele e se sentiu no paraísoDe repente, porém, o fogão se apagou, e ela estava mais uma vez sentada naneve, tremendo tanto que os ossos do seu rosto retiniam. E assim ela acendeu osegundo fósforo. A luz iluminou a parede do edifício ao lado de onde ela estavasentada, e ela subitamente pôde ver através da parede. Na sala por trás da parede,havia uma toalha alvíssima sobre a mesa, e ali na mesa havia porcelana do brancomais branco. Numa travessa, um ganso, que acabava de ser preparado. E,exatamente quando ela esticou a mão para alcançar o banquete, a miragemdesapareceu.Ela estava novamente na neve, mas agora seus joelhos e quadris não doíammais. Agora o frio abria caminho pelo seu torso e pêlos braços com formigamentos eardências, e por isso ela acendeu o terceiro fósforo.E na chama do terceiro fósforo havia uma linda árvore de Natal, com umabelíssima decoração de velas brancas, babados de renda e maravilhosos enfeites devidro, além de milhares e milhares de pequenos pontos de luz que ela não conseguiadiscernir direito.Ela olhou para o alto dessa árvore enorme que crescia cada vez mais eavançava cada vez mais na direção do teto até que se transformou nas estrelas do céulá em cima. Uma estrela atravessou brilhante o céu, e ela se lembrou de suai mãe lheter dito que, quando morre uma alma, uma estrelai cai.E do nada surgiu sua avó, tão carinhosa e delicada, e ai menina se sentiu felizao vê-la. A avó levantou o avental, envolveu nele a criança, abraçou-a bem apertado, ea menina sei sentiu contente.Mas a avó também começou a desaparecer. A menina acendia cada vez maisfósforos para manter a avó consigo... cada vez mais fósforos para mantê-la consigo...cada vez mais... e elas começaram a subir juntas para o céu, onde não havia nem frio,nem fome, nem dor. E pela manhã, entre as casas, encontraram a menina imóvel emorta.============================Afugentando a fantasia criativaEssa criança está num ambiente em que as pessoas não se importam com ela.Se você está num ambiente desses, saia daí. Essa criança está num meio no qual o queela tem, foguinhos em palitos — o início de toda possibilidade criativa — não évalorizado. Se você estiver numa aflição semelhante, vire as costas e vá embora. Essacriança está numa situação psíquica na qual há poucas opções. Ela se resignou ao seu"lugar" na vida. Se isso aconteceu com você, pare de se resignar e saia.O que a menina dos fósforos deve fazer? Se os seus instintos estivessemintactos, suas opções seriam inúmeras. Caminhe até uma outra cidade, esconda-senuma carroça, abrigue-se num depósito de carvão. A Mulher Selvagem saberia o quefazer em seguida, mas a menina dos fósforos não conhece mais a Mulher Selvagem. Apequena criança selvagem está morrendo de frio; tudo o que resta dela é uma pessoaque se movimenta como se em transe.240Estar com pessoas reais que nos aqueçam, que apóiem e elogiem nossacriatividade, é essencial para a corrente da vida criativa. Do contrário, acabamoscongeladas. O ambiente propício é um coro de vozes tanto interiores quantoexteriores que observa o estado do ser da mulher, tem o cuidado de incentivá-lo e, senecessário, também a conforta. Não tenho certeza do número de amigos de queprecisamos, mas decididamente um ou dois que considerem o seu talento, qualquerque ele seja, pan de cielo, o pão dos céus. Toda mulher tem direito a um coro deelogios.Quando as mulheres estão ao relento, no frio, elas costumam viver de fantasiasem vez de ação. Fantasias desse tipo são o grande anestésico. Conheço mulheresdotadas de vozes maravilhosas. Conheço mulheres contadoras inatas de histórias.Quase tudo que lhes sai da boca é de improviso e bem elaborado. No entanto, elas sesentem isoladas ou de algum modo destituídas dos seus direitos. Elas são tímidas, oque muitas vezes é um disfarce para um animus esfaimado. Elas têm dificuldade paraperceber que recebem apoio de dentro, de amigos, da família ou da comunidade.Para evitar o destino da menininha dos fósforos, há um importante passo quevocê deve dar. Qualquer um que não apóie sua arte, sua vida, não é digno do seutempo. É duro mas é verdade. Se não pensarmos assim, adotamos direto os trapos damenina dos fósforos e somos forçadas a viver uma; fração de vida que mata pelo friotodo pensamento, toda esperança, talentos, escritos, alegrias, projetos e danças.O calor deveria ser o principal alvo da menininha dos fósforos. Na história,porém, ele não é. Pelo contrário, ela tenta vender os fósforos, suas fontes de calor.Essa atitude não deixa o feminino nem um pouco mais quente, rico ou sábio, eimpede seu desenvolvimento futuro.O calor é um mistério. Ele de certo modo nos cura e nos gera. Ele é quem soltao que está preso demais, propicia o movimento livre, o misterioso impulso de ser, oprimeiro vôo das idéias novas. Não importa o que o calor seja, ele aproxima aspessoas cada vez mais.A menina dos fósforos não está num ambiente em que possa se desenvolver.Não há calor, não há gravetos, não há lenha. Se estivéssemos no seu lugar, o quepoderíamos fazer? Para começar, poderíamos não acalentar a terra de fantasia que amenina cria ao acender os fósforos. Existem três tipos de fantasias. O primeiro é afantasia do prazer: uma espécie de sorvete mental, exclusivamente destinada àfruição, como quando sonhamos de olhos abertos. O segundo tipo de fantasia é aformação intencional de imagens. Essa fantasia é como uma sensação deplanejamento. Ela é usada como veículo para nos levar a agir. Todos os sucessos —psicológicos, espirituais, financeiros e criativos — começam com fantasias dessanatureza. E existe ainda o terceiro tipo, aquela fantasia que paralisa tudo. É o tipo defantasia que impede a ação adequada nos momentos críticos.Infelizmente, é essa a fantasia criada pela menina dos fósforos. É uma fantasiaque não tem nada a ver com a realidade. Ela está relacionada, sim, à sensação de quenão há nada a ser feito mesmo e que não faz diferença se mergulhamos numa fantasiavã. Às vezes, essa fantasia está na mente da mulher. Às vezes, ela lhe chega numagarrafa de bebida, numa seringa, ou na falta dessas coisas. Às vezes, a fumaça de umalucinógeno é o meio de transporte; ou ainda muitos quartos descartáveis,mobiliados com uma cama e um desconhecido. As mulheres nessas situações estãorepresentando a menininha dos fósforos em cada noite de fantasias e de maisfantasias, acordando congeladas e inertes a cada amanhecer. Existem muitas formasde perder o rumo, de perder nosso foco de atenção.E o que poderá reverter essa situação e restaurar a auto-estima e o amor-próprio? Temos de descobrir algo muito diferente do que o que a menina dos fósforos241tinha. Precisamos levar nossas idéias para um lugar onde elas encontrem apoio. Esseé um passo enorme concomitante com a volta ao foco de atenção: encontrar um lugarpropício. Pouquíssimas mulheres têm condição de criar apenas com o próprio gás.Precisamos de todos os estímulos que pudermos encontrar.A maior parte do tempo as pessoas têm idéias fantásticas. Vou pintar aquelaparede de uma cor que eu aprecie; vou bolar um projeto com o qual toda a cidade seenvolva; vou fazer uns azulejos para meu banheiro e, se eu realmente gostar deles,vou vender alguns; vou voltar a estudar; vou vender a casa para viajar, vou ter umfilho, deixar isso e começar aquilo, seguir o meu caminho, me organizar, ajudar acorrigir essa ou aquela injustiça, proteger os desassistidos.Esses tipos de projeto precisam ser acalentados e alimentados. Eles precisamde apoio vital — de pessoas carinhosas. A menininha dos fósforos está aosfrangalhos. Como diz a velha canção folclórica, esteve por baixo tanto tempo que atélhe parece que está por cima. Nada pode vicejar nesse nível. Queremos nos colocarem situações nas quais, como as plantas e as árvores, possamos nos voltar para o sol.Mas é preciso que haja um sol. Para conseguir isso temos de nos mexer, nãosimplesmente ficar ali sentadas. Temos de fazer alguma coisa para tornar diferentenossa situação. Se não nos mexermos, estaremos de volta às ruas vendendo fósforos.Amigos que a amem e que tenham carinho pela sua vida criativa são osmelhores sóis do mundo. Quando uma mulher, como a menininha dos fósforos, nãotem nenhum amigo, ela também se sente congelada de angústia bem como, às vezes,de raiva. Mesmo que se tenha amigos, eles podem não ser sóis. Eles podem confortá-la em vez de mantê-la informada das suas circunstâncias cada vez mais gélidas. Eles aconsolam — mas isso é muito diferente do cuidado e carinho. O cuidado e o carinholevam a mulher de um lugar para outro. Eles são como cereais matinais psíquicos.A diferença entre o consolo e o cuidado e carinho é a seguinte: se você temuma planta que está doente porque vocês a mantém num armário escuro e você lhediz palavras tranqüilizadoras, isso é consolo. Se você tira a planta do armário e a põeao sol, lhe dá algo para beber e depois conversa comi ela, isso é cuidado e carinho.Uma mulher enregelada sem cuidado e sem carinho tem a propensão a sevoltar para incessantes fantasias hipotéticas. No entanto, mesmo que ela esteja nessacondição de enregelamento, especialmente se ela estiver numa situação dessas, eladeve recusar a fantasia consoladora. É que esse tipo de fantasia nos deixará mortassem a menor dúvida. Você sabe como essas fantasias letais se apresentam, "Um diaquem sabe..."''Se ao menos eu tivesse...", "Ele vai mudar..." e "Se eu só aprender ameu controlar... quando eu realmente estiver pronta, quando eu tiver XYZ suficiente,quando as crianças crescerem, quando eu me sentir mais segura, quando euencontrar outra pessoa e logo que eu...", e assim por diante.A menininha dos fósforos tem uma avó interna que em vez de gritar com ela"Acorde! Levante-se! Não importa a que custo, descubra um lugar quente!", preferelevá-la para uma vida de fantasia, levá-la para o "céu". Mas o céu não vai ajudar aMulher Selvagem, a criança selvagem acuada ou a menininha dos fósforos nessasituação. Essas fantasias consoladoras não devem ser detonadas. Elas são distraçõessedutoras e letais que nos afastam do trabalho verdadeiro.Vemos a menina dos fósforos fazer uma espécie de permuta, um tipo decomércio maléfico, quando ela vende os fósforos, os únicos objetos que possui quepoderiam aquecê-la Quando as mulheres estão desconectadas do amor benéfico damãe selvagem, elas estão vivendo com o equivalente a uma dieta de subsistência nomundo exterior. O ego mal consegue se manter vivo, recebendo o mínimo dealimento de fora e voltando a cada noite do ponto de onde começou, sem parar. Ali amenina adormece, exausta.242Ela não pode despertar para uma vida com um futuro porque sua desgraça écomo um gancho no qual ela se pendura todos os dias. Nas iniciações, passar algumtempo sob condições difíceis faz parte de uma separação forçada da acomodação e doconforto. Como transição iniciática, esse período tem seu término, e a mulher"recém-preparada" começa uma vida criativa e espiritual revitalizada e esclarecida.No entanto, poderia ser dito que as mulheres na situação da menininha dos fósforosforam envolvidas numa iniciação que deu errado. As condições hostis não servempara um aprofundamento, só para dizimar. É preciso que elas escolham um outrolocal, outro ambiente, com tipos diferentes de apoio e de orientação.Historicamente, e em especial na psicologia dos homens, a doença, o exílio e osofrimento são muitas vezes compreendidos como uma separação iniciática,ocasionalmente com enorme significado. No entanto, para as mulheres, há outrosarquétipos iniciáticos que têm origem na psicologia e no físico da mulher. Dar à luz éum deles; o poder do sangue é outro, assim como estar apaixonada ou ser objeto deum amor benéfico. Receber a bênção de alguém que ela admira, receberensinamentos profundos e positivos de alguém mais velho do que ela: todas essas sãoiniciações intensas e que possuem suas próprias tensões e ressurreições.Seria possível dizer que a menina dos fósforos chegou muito perto e noentanto ficou longe demais do estágio transicional de movimento e de ação que teriacompletado sua iniciação. Embora ela possua os meios para uma experiênciainiciática na sua vida miserável, não há ninguém nem dentro nem fora dela queoriente seu processo psíquico.Em termos psíquicos, no sentido mais negativo possível, o inverno traz o beijoda morte — ou seja, uma frieza — a tudo o que toca. A frieza representa o fim de umrelacionamento. Se você quiser matar alguma coisa, basta agir com frieza. Assim quevemos congelados nosso sentimento, nosso pensamento ou nossa atividade, orelacionamento não é mais possível. Quando os seres humanos querem abandonaralguma coisa dentro de si mesmos ou pretendem dar um "gelo" em alguém, eles osignoram, deixam de convidá-los, isolam-nos, fazem o maior esforço para não ter nemmesmo de ouvir sua voz ou pôr os olhos sobre eles. É essa a situação na psique damenina dos fósforos.A menina dos fósforos perambula pelas ruas e implora a desconhecidos quecomprem fósforos dela. Essa cena mostra um dos aspectos mais desconcertantesquanto ao instinto ferido das mulheres, a entrega da luz por um preço baixo. Aspequenas luzes nos palitos são semelhantes às luzes maiores às caveiras nas pontasdas varas, na história de Vasalisa. Elas representam a sabedoria mas, o que é maisimportante, elas acionam a conscientização, substituindo o escuro pela luz,recendendo o que acabou se apagando. O fogo é o principal símbolo da revivificaçãona psique.Temos aqui a menina dos fósforos em extrema necessidade de, mendigando,oferecendo na realidade algo de valor muito maior — uma luz — do que o valorrecebido em troca — um pêni. Quer esse "grande valor dado em troca de um valormenor" esteja dentro da nossa psique, quer ele seja vivenciado por nós no mundoobjetivo, o resultado é o mesmo: maior perda de energia. Nessas circunstâncias, amulher não consegue suprir suas próprias necessidades. Algo que quer viver implorapela vida, mas não obtém resposta. Temos, aqui, alguém que como Sofia, o espíritogrego da sabedoria, tira a luz das profundezas, mas a revende em espasmos defantasia inútil. Maus amantes, patrões execráveis, situações de exploração, complexosardilosos de todos os tipos atraem a mulher para essas escolhas243Quando a menina dos fósforos resolve acender os fósforos, ela está usandoseus recursos para fantasiar em vez de usá-los para agir. Ela queima sua energia deum modo quase que instantâneo. Isso aparece com evidência na vida da mulher. Elaestá determinada a entrar para a faculdade, mas demora três anos para decidir qualprefere. Ela vai fazer aquela série de quadros mas, como não tem um lugar em quepossa exibir o conjunto, não dá prioridade à pintura. Ela quer fazer isso ou aquilo,mas não reserva tempo para aprender, para desenvolver bem sua sensibilidade ousua técnica. Ela tem dez cadernos cheios de sonhos, mas fica enredada no seu fascíniopela interpretação e não consegue pôr em ação seu significado. Ela sabe que devesair, começar, parar, avançar, mas não faz nada disso. lE assim compreendemos seus motivos. Quando a mulher tem seussentimentos congelados, quando ela não consegue mais se sentir, quando seu sangue,sua paixão, não mais atingem as extremidades da sua psique, quando ela estádesesperada; em todos esses casos, uma vida de fantasia é muito mais agradável doque qualquer outra coisa ao alcance dos seus olhos. A pequena chama dos seusfósforos, por não ter nenhuma lenha a queimar, acaba queimando sua psique com seela fosse uma grande acha seca. A psique começa a se iludir. Ela agora vive no fogo defantasia da satisfação de todos os anseios. Esse tipo de fantasia é como uma mentira.Se você a repetir com bastante freqüência, começará a acreditar nela.Esse tipo de angústia de conversão, na qual os problemas ou questões sãominimizados com a entusiástica fantasia de soluções irrealizáveis ou de temposmelhores, não ataca apenas as mulheres; ele é o maior obstáculo enfrentado pelahumanidade. O fogão na fantasia da menina dos fósforos representa pensamentoscalorosos. Ele é também um símbolo do centro, do coração, da lareira. Ele nos diz quesua fantasia está à procura do self verdadeiro, do coração da psique, do calor de umlar interno.De repente, porém, o fogão se apaga. A menina dos fósforos, como todas asmulheres nesse tipo de aflição psíquica, descobre que está novamente sentada naneve. Vemos aqui que esse tipo de fantasia é momentâneo e destrutivo. Ele não temnada a queimar, a não ser nossa energia. Muito embora a mulher possa usar suasfantasias para se manter aquecida, ela mesmo assim acaba num frio profundo.A menina dos fósforos acende outros palitos. Cada fantasia se extingue, e acriança volta a congelar na neve. Quando a psique está gelada, a pessoa se volta parasi mesma e para ninguém mais. Ela risca um terceiro fósforo. Ele é o número três doscontos de fadas, o número mágico, o ponto no qual algo de novo pode acontecer.Nesse caso, porém, como a fantasia supera a ação, nada de novo ocorre.É irônico que haja uma árvore de Natal na história. A árvore de Natal evoluiude um símbolo pré-cristão da vida eterna—a árvore que mantinha suas folhas verdesmesmo no inverno. Seria possível dizer que isso era o que poderia salvá-la, a idéia dapsique da alma sempre verde, sempre crescendo, sempre em movimento. Mas oquarto não tem teto. A idéia da vida não pode ser contida na psique. A ilusão assumiuo comando.A avó é tão carinhosa, tão dedicada, e no entanto ela é a morfina final, o últimotrago de cicuta. Ela atrai a criança Para o sono da morte. Em seu sentido maisnegativo, esse é o sono da acomodação, o sono do entorpecimento — "Tudo bem, dápara eu agüentar"; o sono da negação — "Basta que eu olhe para o outro lado". Esse éo sono da fantasia maligna, no qual esperamos que todo sofrimento físico desapareçacomo que por mágica.Trata-se de um fato psíquico que, quando a libido ou a energia definha aoponto de não mais se ver a respiração no espelho, a natureza da vida-morte-vidaaparece, representada aqui pela avó. É sua a tarefa de chegar no momento da morte244de alguma coisa, de incubar a alma que deixou sua casca para trás e de cuidar dessaalma até que ela possa renascer.Essa é a bênção da psique de todo mundo. Mesmo diante de um final dolorosoquanto o da menina dos fósforos, há um raio de luz. Quando se reúnem tempo,insatisfação e pressão suficientes, a Mulher Selvagem da psique lançará vida nova namente da mulher, dando-lhe a oportunidade de agir em seu próprio interesse maisuma vez. Como podemos ver pelo sofrimento envolvido, é muito melhor curar nossadependência da fantasia do que aguardar, com desejo e esperança, que sejamosressuscitadas dos mortos.A renovação do fogo criativoImaginemos, portanto, agora que temos tudo reunido, que não temos a menordúvida quanto ao nosso propósito, que não estamos nos afogando numa fantasiaescapista, que estamos integradas e que nossa vida criativa prospera. Precisamos demais uma qualidade. Precisamos saber o que fazer, não se perdermos nosso foco deatenção, mas quando o perdermos; ou seja, quando estivermos temporariamentedesgastadas. O quê? Depois de todo esse esforço, ainda poderíamos perder nossorumo? Poderíamos, sim, mas ele fica perdido apenas por um tempo limitado, pois é aordem natural das coisas. Felizmente, os camponeses da Europa Oriental járesolveram tudo isso para nós. Eles têm um conto de fadas maravilhoso intitulado"Os três cabelos de ouro".Esta é uma história que os contadores vêm transmitindo às pessoas hácentenas, talvez milhares, de anos, pois ela representa um arquétipo. É essa anatureza dos arquétipos...eles deixam uma comprovação, eles se entretecem nashistórias, nos sonhos e nas idéias dos mortais. Ali eles se tornam um tema universal,um conjunto de instruções, residindo não se sabe onde, mas atravessando o tempo eo espaço para iluminar cada nova geração. Há um ditado que diz que as histórias têmasas. Elas conseguem atravessar voando os montes Cárpatos para ir se abrigar nosUrais. Elas dão, então, um salto até as Sierras e seguem seu espinhaço até pular paraas Montanhas Rochosas, e assim por diante.Esta versão de "Os três cabelos de ouro" é romena. Existem também versõesteutônicas e celtas. Ela ainda é conhecida na periferia da região desértica que cobreparte do México e dos Estados Unidos. É uma história que trata da recuperação dorumo perdido. O rumo é composto de sentir, ouvir e seguir a orientação da voz daalma. Muitas mulheres conseguem ter uma perfeita noção de rumo mas, quandoperdem contato com ela, ficam dispersas como um colchão de penas aberto que seespalhou por todo o campo.É importante ter um repositório para tudo o que sentimos e ouvimos danatureza selvagem. Para algumas mulheres, é o seu diário, onde elas deixamregistrada cada pena que passa voando; para outras, é sua arte criadora: elas dançama natureza selvagem, elas a pintam, elas a transformam num enredo. Você se lembrada Baba Yaga? Ela tem um grande caldeirão. Ela viaja pêlos céus num caldeirão quena realidade é um pilão com sua mão. Em outras palavras, ela tem um repositório noqual guarda as coisas. Ela tem um modo de pensar, um meio de se locomover de umlocal para outro que é contido. É, os repositórios são a solução para o problema detoda perda de energia, isso e mais alguma coisa. Vejamos...245=============================Os três cabelos de ouroUma vez, numa noite escuríssima e trevosa, o tipo de noite em que a terra ficanegra, as árvores parecem mãos retorcidas e 0 céu é de um azul-escuro de meia-noite,um velho vinha cambaleando pela floresta, meio às cegas devido aos galhos dasárvores. Os ramos arranhavam seu rosto, e ele trazia um pequeno lampião numa dasmãos. A vela dentro do lampião tinha uma chama cada vez mais baixa. O homemtinha os cabelos amarelos e compridos, dentes amarelos e rachados e unhas amarelase recurvas. Ele andava todo dobrado, e suas costas eram arredondadas como um sacode farinha. Sua pele era tão vincada que caía em folhos do seu queixo, das axilas e dosquadris.Ele se apoiava numa árvore e se forçava a avançar; depois se agarrava numaoutra para avançar mais um pouco. E assim, remando desse jeito e respirando comdificuldade ele ia atravessando a floresta.Cada osso nos seus pés ardia como fogo. As corujas nas árvores piavamacompanhando o gemido das suas articulações à medida que ele seguia pelas trevas.Muito ao longe, tremeluzia uma luzinha, um chalé, um fogo, um lar, um local dedescanso; e ele se esforçava na direção daquela luz. No exato instante em que chegouà porta, ele estava tão cansado, tão exausto, que a pequena chama no seu lampião seapagou e o velho caiu porta adentro desmaiado.Dentro da casa, uma velha estava sentada diante de uma bela fogueira e ela seapressou a chegar até ele, segurou-o nos braços e o levou mais para perto do fogo. Elao abraçou como' uma mãe abraça o filho. Ela se sentou na cadeira de balanço e oembalou. E ali ficaram os dois, o pobre e frágil velhinho, apenas um saco de ossos, e avelha forte que o embalava.— Pronto, pronto. Calma, calma. Pronto, pronto. Ela o embalou a noite inteirae, quando ainda não havia amanhecido mas estava quase chegando a hora, ele estavaextremamente remoçado. Ele era agora um belo rapaz, de cabelos dourados emembros longos e fortes. Mas ela continuava a embalá-lo.— Pronto, pronto. Calma, calma. Pronto, pronto. E quando a manhã foi seaproximando cada vez mais, o rapaz foi se transformando numa linda criancinha comcabelos dourados trançados como palha de milho.No momento exato do raiar do dia, a velha arrancou bem rápido três fios dalinda cabeça da criança e os jogou nos ladrilhos. Eles fizeram um barulhinho.Tiiiiiing! Tiiiiiiing! Tiiiiiiiiing!E a criancinha nos seus braços desceu do seu colo e saiu correndo para a porta.Voltando o rosto por um instante para a velha, o menino deu um sorrisodeslumbrante, virou-se e saiu voando para o céu para se tornar o brilhante sol damanhã.1 9=======================Tudo à noite é diferente. Por isso, para entender essa história precisamosmergulhar numa consciência noturna, um estado no qual percebemos com maiorrapidez cada estalido ou ruído. É à noite que ficamos mais próximos de nós mesmos,mais próximos de idéias e sentimentos essenciais que não são tão registrados duranteo dia.A noite é o mundo de Mãe Nyx, a mulher que criou o mundo. Ela é a VelhaMãe dos Dias, uma das megeras da vida e da morte. Quando é noite num conto de246fadas, sabemos que estamos no inconsciente. São João da Cruz chamou-a de "noiteescura da alma''. Nessa história, ela é um período em que um homem muito velho vaienfraquecendo cada vez mais. É uma hora na qual estamos nas últimas, em algumsentido importante.Perder o rumo significa perder a energia. A tentativa absolutamenteequivocada quando perdemos o rumo é a de correr para arrumar tudo de novo.Correr não é o que devemos fazer. Como vemos na História, sentar e balançar é o quedevemos fazer. A paciência, a paz e o balanço renovam as idéias. Só o ato de entreteruma idéia e a paciência para embalá-la são o que algumas mulheres poderiamchamar de grande prazer. A Mulher Selvagem o considera uma necessidade.Isso é algo que os lobos conhecem inteiramente. Quando um intruso aparece,os lobos podem rosnar, latir ou até mesmo mordê-lo, mas eles também podem, a umaboa distância, recuar para o interior do grupo, sentando-se todos juntos como umafamília faria. As costelas se enchem e se esvaziam, sobem e descem. Eles estãotomando rumo, estão se reposicionando, voltando ao centro de si mesmos eresolvendo o que é importante e o que fazer em seguida. Estão decidindo que "nãovão fazer nada agora mesmo, que só vão ficar ali sentados, respirando, embalando-sejuntos"Ora, muitas vezes quando as idéias não estão funcionando bem, ou quando nósnão as estamos trabalhando bem, perdemos nosso rumo. Isso faz parte de um ciclonatural e ocorre porque a idéia ficou ultrapassada, ou porque nós perdemos acapacidade de vê-la por um ângulo novo. Nós mesmas ficamos velhas edesconjuntadas como o velho em "Três cabelos de ouro". Embora haja muitas teoriassobre "bloqueios" criativos, a verdade é que bloqueios brandos vêm e voltam como ascondições atmosféricas e como as estações do ano — com as exceções dos bloqueiospsicológicos de que falamos anteriormente, como não mergulhar na própria verdade,como o medo da rejeição, o medo de dizer o que se sabe, a preocupação com a própriacompetência, a poluição da correnteza básica, entre outros.Essa história é tão admirável por delinear todo o ciclo de uma idéia, a ínfimaluz que lhe é concedida, que é obviamente a própria idéia, o fato de ela se cansar epraticamente se extinguir, tudo como parte do seu ciclo natural. Nos contos de fadas,quando acontece algo de mau, isso significa que algo novo precisa ser tentado, umanova energia precisa ser aplicada, uma força mágica, de cura e ajuda precisa serconsultada.Aqui mais uma vez vemos a velha La Que Sabé, a mulher, de dois milhões deanos. Ela é "aquela que sabe". Ser mantido diante do seu fogo é algo revigorante,reparador.2 0 É para esse fogo e para os braços dela que o velho se arrasta, pois semeles ele morreria.O velho está cansado de passar tempo demais dedicado ao trabalho que lhedemos. Vocês alguma vez viram uma mulher trabalhar como se o diabo estivesseagarrado no seu dedão do pé, só para de repente entrar em colapso e não dar maisum passo sequer? Você alguma vez viu uma mulher totalmente dedicada a algumaquestão social que um belo dia virou as costas e mandou tudo para o inferno? É queseu animus está esgotado. Ele precisa ser embalado por La Que Sabé. A mulher cujasidéias ou energias feneceram, murcharam ou cessaram completamente precisa sabero caminho até a velha curandera e precisa levar o animus exausto até lá para que elese recupere.Trabalho com muitas mulheres que são ativistas sociais, são profundamenteengajadas nas questões sociais. Não resta a menor dúvida a esse respeito: quandochega o ponto extremo do seu ciclo, elas ficam exaustas e se arrastam pela florestaafora, com as pernas rangendo e a chama tremeluzindo, pronta para se apagar. É247nessa hora que elas dizem: "Para mim, chega. Vou embora. Vou devolver minhacredencial da imprensa, meu distintivo, meu macacão, meu..." não importa o queseja. Elas querem emigrar para Auckland. Elas vão ver televisão comendobiscoitinhos de soja e nunca mais olhar pela janela para o mundo lá fora. Elas vãocomprar sapatos baratos, vão se mudar para um bairro onde nunca aconteça nada,vão fazer compras por telefone pelo resto de suas vidas. De agora em diante, elas vãose preocupar com sua própria vida, afastar os olhos... e assim vai.Qualquer que seja sua idéia de uma trégua, muito embora elas estejam falandocom um cansaço e uma frustração humilhantes, eu sempre digo que é uma boa idéia,que chegou a hora de descansar. Ao ouvir isso elas geralmente berram, "Descansar!Como posso descansar quando o mundo inteiro está se destruindo diante dos meusolhos?"No final, porém, a mulher precisa descansar agora, ser embalada, recuperarseu rumo. Ela precisa rejuvenescer, recuperar sua energia. Ela acha que não podefazer isso, mas pode sim, pois o círculo de mulheres, sejam elas mães, alunas, artistasou ativistas, sempre se dispõe a suprir a falta das que saem de licença. A mulhercriativa precisa de descanso agora para voltar ao seu trabalho intenso mais tarde. Elaprecisa ir visitar a velha na floresta, a revitalizadora, a Mulher Selvagem numa dassuas muitas apresentações. A Mulher Selvagem já espera que o animus fique exaustocom certa regularidade. Ela não se espanta quando ele lhe cai porta adentro. Ela estápronta. Ela não virá correndo até nós em pânico. Ela simplesmente nos apanha e nossegura até que recuperemos nossas forças.Nem nós deveríamos entrar em pânico ao perdermos o ímpeto ou o rumo. Àsua semelhança, devemos entreter a idéia com tranqüilidade e ficar com ela algumtempo. Quer nosso foco de atenção esteja voltado para o aperfeiçoamento pessoal,para questões do mundo, quer para um relacionamento, isso não importa. O animussempre acaba se desgastando. Não se trata de uma hipótese; trata-se, sim, de quandoisso vai ocorrer. Levar a cabo longas empreitadas, tais como diplomar-se, concluirum original, completar uma obra, cuidar de uma pessoa enferma, todas essasatividades apresentam momentos em que a energia que um dia foi jovem fica velha ecai prostrada sem conseguir ir adiante.Para as mulheres, é melhor que elas tenham conhecimento disso desde o inícioporque as mulheres costumam ser surpreendidas pela fadiga. É então que elas uivam,resmungam, sussurram, queixando-se do fracasso, da incompetência e coisassemelhantes. Não, não. Essa perda de energia é o que é. Ela faz parte da natureza.A suposição da força eterna no masculino é equivocada. Trata-se de umaintrojeção cultural que precisa ser desviada da psique. Esse engano faz com que tantoas energias masculinas no cenário interior quanto os homens de verdade na culturadecepcionem. Todos por natureza precisam de uma trégua para recuperar as forças.O modus operandi da natureza da vida-morte-vida é cíclico e se aplica a todo mundoe a todas as coisas.Na história, três fios de cabelo são jogados ao chão, como no ditado, "Jogueum pouco de ouro no chão". Esse ditado provém de desprender las palabras, que natradição dos contadores de histórias, dos cuentistas, significa jogar fora algumas daspalavras da história para torná-la mais forte.O cabelo simboliza o pensamento, aquilo que emana da cabeça. Jogar cabelono chão ou fora torna o menino de certo modo mais leve, faz com que ele brilhe aindamais. Da mesma maneira, sua idéia ou iniciativa desgastada pode brilhar ainda maisse você tirar um pouco dela para jogar fora. É a mesma idéia de um escultorremovendo mais mármore a fim de revelar mais a forma oculta. Um meio poderoso248de renovar ou reforçar nossa intenção ou nossa ação que ficou extenuada consiste emjogar algumas idéias fora e concentrar nossa atenção.Arranque três fios de cabelo da sua iniciativa, jogando-os os ao chão. Eles setransformarão num alarme de despertador. Jogá-los ao chão gera um ruído psíquico,um repique, uma ressonância no espírito da mulher que faz com que a atividaderetome. O som da queda de algumas das nossas muitas idéias se transforma numaespécie de proclamação de uma nova era ou de uma nova oportunidade.Na realidade, a velha La Que Sabé está podando ligeiramente o ladomasculino. Sabemos que o corte dos galhos secos ajuda a árvore a crescer com maisforça. Sabemos também que a eliminação das flores de certas plantas faz com queelas fiquem mais vigorosas, mais exuberantes. Para a mulher selvagem, o ciclo dedesenvolvimento e redução do animus é natural. Trata-se de um processo arcaico,antiqüíssimo. Desde tempos imemoráveis, é assim que as mulheres abordam omundo das idéias e suas manifestações objetivas. É assim que as mulheres agem. Avelha no conto de fadas dos três cabelos de ouro nos ensina, na verdade volta a nosensinar, como é que se faz.Portanto, qual é o objetivo desse resgate e dessa concentração, desse chamadoao falcão para que volte, dessa corrida com os lobos? É procurar a jugular, chegardireto ao miolo e aos ossos de tudo que existe na sua vida, porque é ali que esta o seuprazer, é ali que está a sua alegria, é ali que está o Éden da mulher, aquele local ondehá tempo e liberdade de ser, de perambular, de se maravilhar, de escrever, cantar ecriar sem medo. Quando os lobos pressentem prazer ou perigo, a princípio eles ficamtotalmente imóveis. Ficam parados como estátuas, em total concentração parapoderem ver, ouvir, perceber o que exatamente está ali, perceber o que está ali na suaforma mais essencial.É isso o que a Mulher Selvagem nos oferece: a capacidade de ver o que estádiante de nós com a concentração de atenção, com a imobilidade para ver, ouvir,sentir com o tato, com o olfato, com o gosto. A concentração é o uso de todos osnossos sentidos, incluindo-se a intuição. É desse mundo que as mulheres vêmresgatar suas próprias vozes, seus próprios valores, sua imaginação, sua clarividência,suas histórias e suas antigas recordações. São esses os resultados do trabalho daconcentração e da criação. Se você perdeu o rumo para se concentrar, sente-se e fiqueimóvel. Segure a idéia e a embale. Mantenha uma parte dela, jogue outra parte fora, eela se renovará. Não é preciso fazer mais nada.

Mulheres que Correm com os LobosOnde histórias criam vida. Descubra agora