O urso da meia-lua
Sob a orientação da Mulher Selvagem, resgatamos o antigo,o intuitivo e o arrebatado. Quando nossa vida reflete a dela, agimos com coesão. Persistimos, ou aprendemos a persistir se ainda não sabemos. Tomamos as medidas necessárias para manifestar nossas idéias no mundo. Recuperamos o foco de atenção quando o perdemos, ouvimos nossos ritmos pessoais, ficamos mais próximas de amigos e parceiros que estejam em harmonia com ritmos selváticos e integrais. Optamos por relacionamentos que propiciam nossa vida instintiva e criativa. Estendemos nossa mão para beneficiar os outros. E estamos dispostas a ensinar parceiros receptivos tudo sobre os ritmos selváticos, se necessário.Existe, porém, um outro aspecto do autodomínio, que é lidar com o que só pode ser chamado de fúria da mulher. A liberação dessa fúria é obrigatória. Uma vez que a mulher se lembre das origens da sua fúria, ela passa a considerar que não pode nunca parar de ranger os dentes. Por ironia, também sentimos muita ansiedade para dispersar essa fúria, pois ela nos dá uma impressão nociva e aflitiva. Queremos nos apressar e nos livrar dela.Reprimi-la, no entanto, não funciona. É como tentar guardar fogo num saco de aniagem. Não é aconselhável que nos queimemos, nem que queimemos outras pessoas. Portanto, cá estamos nós com essa emoção poderosa que achamos ter caído sobre nós sem que a chamássemos. É um pouco parecido com o lixo tóxico. Ele existe,ninguém o quer, mas existem poucos locais para depositá-lo. É preciso ir muito longe para que se encontre um terreno onde enterrá-lo. Segue-se uma versão literária de uma história japonesa intitulada "Tsukina Waguma, o urso da meia-lua", que pode ajudar a nos mostrar o que fazer quanto a isso. A história me foi dada pelo sargento I.Sagara, um veterano da Segunda Guerra Mundial e paciente do Hines Veteran'sAssistance Hospital em Illinois, há muitos anos.=================================Era uma vez uma jovem mulher que vivia numa perfumada floresta de pinheiros. Seu marido esteve fora, lutando na guerra, muitos anos. Quando ele afinal foi liberado, voltou para casa com o pior dos humores. Ele se recusou a entrar na casa pois havia se acostumado a dormir nas pedras. Ele só queria ficar só e permanecia na floresta tanto de dia quanto à noite.A jovem esposa ficou tão feliz quando soube que o marido estava afinal voltando para casa. Ela cozinhou e fez compras, e fez compras e cozinhou. Preparou pratos e mais pratos, tigelas e mais tigelas, de delicioso queijo branco de soja, três tipos de peixe, três tipos de algas, arroz salpicado com pimenta vermelha e belos camarões frios, grandes e alaranjados.Com um tímido sorriso, ela levou os alimentos até o bosque e se ajoelhou ao lado do marido esgotado pela guerra, oferecendo-lhe a bela refeição que havia preparado. No entanto, ele se pôs de pé e chutou as travessas de modo que o queijo 259 de soja caiu, os peixes saltaram no ar, as algas e o arroz caíram na terra e os grandes camarões alaranjados rolaram pelo caminho abaixo.— Deixe-me em paz! — rugiu ele, voltando-lhe as costas. Ele estava tão furioso que ela sentiu medo. E afinal, em desespero, ela foi procurar a gruta da curandeira que morava fora da aldeia.— Meu marido foi ferido gravemente na guerra — disse a esposa. — Ele sofrede uma raiva permanente e não come nada. Só quer ficar ao ar livre e não se dispõe avoltar a viver comigo. A senhora não pode me dar uma poção que faça com que elevolte a ser carinhoso e gentil?— Isso eu posso fazer por você — asseverou-lhe a curandeira. — Mas vouprecisar de um ingrediente especial. Infelizmente, acabou todo meu pêlo de urso demeia-lua. Por isso, você deve subir a montanha, encontrar o urso negro e me trazerum único pêlo da meia-lua que ele tem no pescoço. Depois, eu lhe darei o que vocêprecisa, e a vida voltará a ser boa.Algumas mulheres teriam se sentido desencorajadas com essa tarefa. Algumasteriam considerado que todo esse esforço era impossível. Mas não ela, pois ela erauma mulher que amava.— Ah! Como lhe sou grata! É tão bom saber que existe uma solução.E assim ela se preparou para a viagem e na manhã seguinte partiu para amontanha.— Arigato zaishö — dizia ela, o que é uma forma de cumprimentar a montanhae lhe dizer "Obrigada por me deixar escalar seu corpo".Ela se embrenhou nos contrafortes, onde havia rochas semelhantes a grandespães de forma. Subiu até um platô coberto de mata. As árvores tinham galhos longose caídos e folhas que se pareciam com estrelas.— Arigato zaishö — entoou. Era uma forma de agradecer as árvores porerguerem seus cabelos para que ela pudesse passar por baixo. E assim ela conseguiuatravessar a floresta e começou a subir de novo.Agora estava mais difícil. A montanha tinha flores espinhosas que se prendiamna barra do seu quimono e rochas que arranhavam suas mãos delicadas. Estranhospássaros escuros saíram voando na sua direção no crepúsculo, deixando-a assustada.Ela sabia que eles eram os muen-botoke, espíritos dos mortos que não tinhamparentes. Ela entoou orações para eles.— Vou ser sua parenta. Vou dar-lhes descanso. Ela prosseguia subindo pois erauma mulher que amava. Subiu até ver neve no pico da montanha. Logo seus pésestavam frios e molhados, e ela continuava a escalar, pois era uma mulher queamava. Começou uma tempestade, e a neve penetrava direto nos seus olhos e fundonas suas orelhas. Mesmo sem ver, ela continuava a subir.— Arigato zaishö — cantou a mulher quando a nevasca parou, para agradeceraos ventos por terem parado de cegá-la. Ela procurou abrigo numa caverna rasa e malconseguiu lugar para seu corpo inteiro. Embora tivesse uma bolsa cheia de alimentos,ela não comeu, mas se cobriu com folhas e adormeceu. Pela manhã, o ar estava calmoe plantinhas verdes chegavam a atravessar a neve aqui e acolá.— Ah — pensou ela. — Agora, ao urso da meia-lua.Ela procurou o dia inteiro e quase ao anoitecer encontrou grossos cordões debosta. E não precisou procurar mais, pois um gigantesco urso negro passoupesadamente pela neve, deixando profundas marcas de patas e garras. O urso dameia-lua deu um rugido feroz e entrou na sua toca. A mulher enfiou a mão na trouxae colocou numa tigela a comida que trouxera. Ela colocou a tigela do lado de fora datoca e voltou correndo para o seu esconderijo. O urso sentiu o cheiro da comida e saiucambaleando da toca, rugindo tão alto que pequenas pedras se soltaram do lugar. O260urso fez um círculo em volta da comida de uma certa distância, farejou o ventomuitas vezes e depois comeu tudo de uma só vez. O enorme urso foi andando de ré esumiu dentro da sua toca.Na noite seguinte, a mulher agiu da mesma forma, servindo o alimento natigela, mas dessa vez não voltou para seu esconderijo, recuando apenas metade docaminho. O urso sentiu o cheiro da comida, saiu pesadamente da toca, rugiu paraabalar os céus e as estrelas, deu uma volta, farejou o ar com extremo cuidado, masafinal engoliu a comida e voltou para a toca. Isso continuou por muitas noites até quenuma noite escura a mulher sentiu ter coragem suficiente para esperar ainda maisperto da toca do urso.Ela pôs a comida na tigela do lado de fora da toca e ficou esperando junto àabertura. Quando o urso sentiu o cheiro e saiu, ele viu não só a comida mas tambémum par de pequenos pés humanos. O urso virou a cabeça de lado e rugiu tão alto quefez os ossos do corpo da mulher zumbirem.A mulher tremia, mas não recuava. O urso se ergueu nas patas traseiras,estalou as mandíbulas e rugiu tanto que a mulher pôde ver bem o céu vermelho emarrom da sua boca. Mesmo assim, ela não saiu correndo. O urso rugiu ainda mais eestendeu seus braços como se quisesse agarrá-la, com suas dez garras suspensascomo dez facas sobre sua cabeça. A mulher tremia como uma folha ao vento, maspermaneceu onde estava.— Por favor, meu querido urso — implorou ela. — Por favor, vim toda essadistância em busca de uma cura para meu marido. — O urso voltou as patasdianteiras para a terra fazendo voar a neve e olhou direto no rosto assustado damulher. Por um instante, ela teve a impressão de ver cordilheiras inteiras, vales, riose aldeias refletidos nos olhos vermelhíssimos do urso. Uma paz profunda caiu sobreela, e seus tremores passaram.— Por favor, urso querido, eu venho lhe trazendo aumento todas essas noites.Será que eu podia ficar com um dos pêlos da meia-lua do seu pescoço? — O ursoparou e pensou, essa mulherzinha seria fácil de devorar. No entanto, ele de repente sesentiu cheio de pena dela.— É verdade —disse o urso da meia-lua, sem afastar as garras da sua cabeça. —Você foi boa para mim. Pode ficar com um dos meus pêlos. Mas arranque-o rápido,vá embora e volte para sua gente.O urso ergueu seu enorme focinho para que aparecesse a meia-lua branca doseu pescoço, e a mulher viu ali a forte pulsação do seu coração. A mulher pôs uma dasmãos no pescoço do urso, e com a outra segurou um único pêlo branco e lustroso.Rapidamente ela o arrancou. O urso recuou e gritou como se estivesse ferido. E essador assumiu a forma de bufos irritados.— Ah, obrigada, urso da meia-lua, muitíssimo obrigada. — A mulher seinclinou em reverência e voltou a se inclinar. Mas o urso rosnou e avançou um passo.Ele rugiu para a mulher com palavras que ela não entendia e, no entanto, palavrasque de algum modo havia conhecido toda a vida. Ela se voltou e correu montanhaabaixo com a maior velocidade possível. Ela passou correndo debaixo das árvores defolhas com formato de estrelas. E o tempo todo ela agradecia às árvores por ergueremos galhos para ela passar. Ela veio tropeçando pelas pedras que pareciam grandespães de forma, sempre agradecendo à montanha por deixar que ela escalasse seucorpo.Embora suas roupas estivessem esfarrapadas, seu cabelo desalinhado, seurosto sujo, ela desceu a escada de pedra que levava até a aldeia, seguiu pela estrada deterra atravessando a cidade até o outro lado e entrou na cabana onde a curandeiraestava sentada cuidando do fogo.261— Olhe! Olhe! Consegui, encontrei, conquistei um pêlo do urso da meia-lua! —gritou a jovem mulher.— Que bom — disse a curandeira com um sorriso. Ela examinou a mulheratentamente, pegou o pêlo de um branco puríssimo e o segurou perto da luz. Elasopesou o longo pêlo com uma das mãos e o mediu com um dedo e exclamou: — É!Este é um autêntico pêlo do urso da meia-lua. — De repente, porém, ela se voltou elançou o pêlo no meio do fogo, onde ele estalou, pipocou e se consumiu numa belachama laranja.— Não — gritou a mulher. — O que a senhora fez?— Fique calma. Está certo. Tudo está bem — disse a curandeira. — Você selembra de cada passo que deu para escalar a montanha? Você se lembra de cadapasso que deu para conquistar a confiança do urso da meia-lua? Você se lembra doque viu, do que ouviu e do que sentiu?— Lembro — disse a mulher. — Lembro-me muito bem.— Então, minha filha — disse a velha curandeira com um sorriso meigo —,volte por favor para casa com seus novos conhecimentos e proceda da mesma formacom seu marido.==============================A raiva como mestraO tema central dessa história é encontrado em todos os cantos do mundo. Emalguns casos, é uma mulher que empreende a escalada; em outros, é um homem. Oobjeto mágico sendo procurado é uma pestana, um pêlo do nariz, um dente ou algumoutro elemento físico. Variações quanto ao tema são encontradas na Coréia, naAlemanha e nos montes Urais. Na China, o doador é um tigre. No Japão, o animal nahistória é às vezes um urso, às vezes uma raposa. Na Rússia, o objeto procurado é abarba de um urso. Numa das versões, o pêlo procurado é do queixo da própria BabaYaga.A história do "Urso da meia-lua" pertence, como outras neste livro, a umacategoria de relatos que chamo de histórias de revelação. As histórias de revelaçãonos permitem vislumbrar suas estruturas curativas ocultas e seu significado maisprofundo, em vez de apenas seu conteúdo óbvio. O conteúdo dessa história nos dizque a paciência ajuda a aliviar a raiva, mas a mensagem maior trata do que a mulherdeve fazer para restaurar a ordem na psique, curando com isso o self enfurecido.Nas histórias de revelação, tudo fica implícito em vez de ser declarado. Nessahistória, a estrutura de sustentação revela um modelo completo para tratar a raiva epara se curar dela: a procura de uma força restauradora calma e sábia (a ida àcurandeira), a aceitação do desafio de entrar num terreno psíquico que nuncahavíamos abordado antes (a escalada da montanha), o reconhecimento das ilusões (aatitude para escalar as rochas, para correr debaixo das árvores), o descansopropiciado aos nossos velhos sentimentos e pensamentos obsessivos (o encontro comos muen-botoke, espíritos inquietos sem parentes para enterrá-los), o agrado aogrande Self compassivo (a alimentação do urso com paciência e a retribuição dagentileza por parte do urso), a compreensão do lado furioso da psique compassiva (oreconhecimento de que o urso, o Self compassivo, não é manso).A história mostra a importância de trazer esse conhecimento psicológico atéaqui embaixo, até nossa vida real (a descida da montanha e a volta à aldeia), deaprender que a cura reside na busca e na prática, não numa única idéia (destruição262do pêlo). O cerne da história é, "aplique tudo isso à sua raiva, e tudo correrá bem" (oconselho da curandeira para que volte para casa e aplique esses princípios).Essa história faz parte de um grupo de histórias que começam com oprotagonista procurando agradar a alguma criatura solitária e ferida. Seconsiderarmos a história como se todos os seus componentes pertencessem à psiquede uma única mulher, podemos ver que a psique possui um setor muito torturado eenfurecido na imagem do marido de volta ao lar depois da guerra. O espírito amorosoda psique, a esposa, toma a si a responsabilidade de descobrir uma cura para a raiva epara a fúria a fim de que ela e seu amado possam viver em paz e com amor mais umavez. Trata-se de um esforço meritório para todas as mulheres, pois ele trata a fúria emuitas vezes nos permite descobrir nosso caminho até o perdão.A história nos mostra que a paciência é um bom remédio a ser aplicado à raivanova ou antiga, da mesma forma que a dedicação à busca da cura. Embora a cura e oinsight sejam diferentes para cada pessoa, a história propõe algumas idéiasinteressantes a respeito de como se envolver com o processo.A história do "Urso da meia-lua" vem do Japão, onde viveu um grandepríncipe-filósofo chamado Shotoku Taishi, na virada do século VI. Entre outrascoisas, ele ensinou que o trabalho psíquico deve ser feito tanto no mundo internoquanto no externo. Mas ainda mais do que isso, ele pregou a tolerância para com todoser humano, todo animal e toda emoção.Mesmo as emoções grosseiras e confusas são uma forma de luz, que estala eexplode de energia. Podemos usar a luz da raiva de modo positivo, para iluminarlugares que geralmente não vemos. Um uso negativo da raiva consiste em concentrá-la destrutivamente num único ponto minúsculo até que, como o ácido gerando umaúlcera, ela abre um buraco negro que perfura todas as camadas delicadas da psique.Existe, porém, um outro jeito. Toda emoção, mesmo a raiva, possuiconhecimento, insight, o que alguns chamam de iluminação. Nossa raiva pode, poralgum tempo, ser nossa mestra... algo de que não devemos nos livrar tão rápido, mas,sim, pelo que devemos escalar a montanha, algo a ser identificado, algo com queaprender, algo a ser tratado internamente e depois ser transformado em algo útilpara o mundo, ou algo que deixamos voltar ao pó. Na vida selvagem, a raiva não é umitem isolado. Ela é uma substância à espera de nossos esforços transformadores. Ociclo da raiva é como qualquer outro ciclo: ela sobe, cai, morre e é liberada comoenergia nova.Quando nos permitimos aprender com nossa raiva, assim transformando-a,nós a dispersamos. Nossa energia volta para ser usada em outras áreas,especialmente na área da criatividade. Embora algumas pessoas aleguem conseguircriar a partir de uma raiva crônica, o problema é que a raiva limita o acesso aoinconsciente coletivo — esse infinito reservatório de imagens e pensamentosimaginários — de tal forma que a pessoa que cria a partir da raiva costuma recriar amesma coisa inúmeras vezes, sem produzir nada de novo. A raiva não-transformadapode se tornar uma mantra constante acerca de como fomos oprimidas, feridas etorturadas.Uma das minhas amigas, companheira de representações, que afirma tersempre sentido raiva, recusa toda e qualquer ajuda para enfrentá-la. Quando escreveroteiros sobre a guerra, fala de como as pessoas são más; quando escreve roteirossobre a cultura, personagens perversos também aparecem. Quando escreve sobre oamor, surgem as mesmas pessoas com más intenções idênticas. A raiva corrói nossaconfiança de que algo de bom possa ocorrer. Aconteceu algo com nossa esperança. Epor trás da falta de esperança geralmente está a raiva; por trás da raiva, a dor; por263trás da dor, normalmente algum tipo de tortura, às vezes recente, mas quase sempremuito remota.Na terapia física pós-traumática, sabemos que são boas as chances de que,quanto mais cedo se tratar do dano físico, menores e menos graves serão suasconseqüências. Da mesma forma, quanto mais rápido se imobilizar a pessoa e setratar do trauma, mais curto será o tempo de recuperação. Isso também vale para ostraumas psicológicos. Em que condições estaríamos se tivéssemos quebrado umaperna na infância e trinta anos depois ainda não a tivéssemos engessadodevidamente?O trauma original acabaria causando uma tremenda perturbação em outrossistemas e ritmos do corpo, como por exemplo nos padrões imunológicos,osteopáticos e de locomoção. A situação é exatamente a mesma com antigos traumaspsicológicos. Em muitos casos, eles não receberam atenção na época, fosse porignorância, fosse por negligência. Agora, estamos como que de volta da guerra, mas aimpressão é a de que ainda guerreamos com a mente e com o corpo. No entanto, aoabrigar a raiva — ou seja, a herança do trauma — em vez de procurar soluções paraela, em vez de procurar o que a gerou, o que podemos fazer com ela, acabamos nostrancando num quarto cheio de raiva pelo resto da nossa vida. Isso não é jeito de seviver, seja de modo intermitente ou não. Existe vida para além de uma raivairracional. Como vemos na história, basta uma prática consciente para contê-la ecurá-la. E temos condição de conseguir. Na realidade, é só dar um passo de cada vez.A procura da curandeira: a escalada da montanhaPortanto, em vez de procurar ter um "bom comportamento" e não sentir raiva,ou em vez de usá-la para incinerar todo e qualquer ser vivo num raio de cemquilômetros, é melhor primeiro convidar a raiva para se sentar conosco, tomar umpouco de chá e conversar para que possamos descobrir o que provocou essa suavisita. A princípio, a raiva age como o marido irado na história. Ela não querconversa; ela não quer comer; só quer ficar ali sentada, vociferando, ou então nãoquer ser perturbada. É nesse ponto crítico que chamamos a curandeira, nosso selfmais sábio, nossos melhores recursos para ver além da irritação e exasperação doego. A curandeira é sempre a "que vê longe". É ela quem pode nos dizer a vantagemque pode advir da exploração dessa onda emotiva.As curandeiras nos contos de fadas representam geralmente um aspecto calmoe imperturbável da psique. Muito embora o mundo externo possa estar em ruínas, acurandeira interna não se perturba com tudo isso e mantém a calma para calcular omelhor meio de prosseguir. A psique de toda mulher contém essa "ordenadora". Elafaz parte da psique natural e selvagem, e nós já nascemos com ela. Se a tivermosperdido, podemos invocá-la novamente ao examinar com calma a situação queprovoca nossa raiva, projetando-nos para o futuro para decidir, a partir desse pontoprivilegiado, o que nos deixaria orgulhosas do nosso comportamento passado, edepois agindo de acordo com isso.A indignação, ou irritação, que sentimos naturalmente com relação a váriosaspectos da vida e da cultura é exacerbada quando houve repetidas ocorrências dedesrespeito, perseguição, negligência ou extrema insegurança1na infância. A pessoaferida dessa forma fica sensibilizada para futuros traumas e utiliza todas as defesaspara evitá-los.2 Significativas perdas de poder, ou seja, a perda da certeza de quesomos dignos de cuidado, respeito e atenção, geram uma tristeza extrema ejuramentos irados por parte da criança de que, quando adulta, ela nunca mais sepermitirá ser ferida daquela forma.264Além disso, se a mulher foi criada com expectativas positivas inferiores às deoutros membros da família, com severas restrições à sua liberdade, às suas atitudes,ao seu linguajar, entre outras, é provável que sua raiva normal cresça diante deassuntos, tons de voz, gestos, palavras e outros gatilhos sensoriais que a façam selembrar dos acontecimentos originais.3 Podemos chegar bem perto de umareconstituição dos traumas da infância ao examinar com cuidado o que faz com queos adultos percam o controle.4Queremos usar a raiva como uma força criadora. Queremos usá-la paramudar, desenvolver e proteger. Portanto, quer a mulher esteja tratando da irritaçãomomentânea de um filho, quer se trate de uma queimadura extensa e grave, aperspectiva da curandeira é a mesma. Quando há tranqüilidade, pode haveraprendizado; soluções criativas são possíveis. No entanto, quando há vastosincêndios com ventos e chuvas, seja no mundo subjetivo, seja no objetivo, tudo arde enão sobra nada a não ser cinzas. Queremos poder olhar de volta para nossos atos comdignidade. Queremos algo para mostrar em vez de sentir a raiva.Embora seja fato que às vezes precisamos expressar nossa raiva antes depodermos avançar para uma tranqüilidade esclarecedora, isso precisa sofrer algumtipo de contenção. Se não for assim, é como jogar um fósforo aceso na gasolina. Acurandeira concorda: essa raiva pode ser transformada, mas preciso de algo de umoutro mundo, algo do mundo instintivo, o mundo em que os animais falam e osespíritos vivem.No budismo, existe uma ação de busca chamada nyübu, que significa entrarnas montanhas para alcançar a compreensão de si mesmo e para fazer os laços comos deuses. Trata-se de um antigo ritual ligado aos ciclos de preparo da terra, desemeadura e colheita. Embora seja bom passear nas montanhas concretas, existemtambém montanhas no mundo subterrâneo, no nosso próprio inconsciente, efelizmente todas dispomos da entrada para o mundo subterrâneo da nossa própriapsique, podendo por isso penetrar rapidamente nas montanhas em busca derenovação.Nos contos, como na mitologia, a montanha é às vezes usada como um símbolopara descrever os níveis de autocontrole que devemos atingir antes de podermospassar para o nível seguinte. A parte de baixo da montanha, os contrafortes,representa muitas vezes o impulso no sentido da conscientização. Tudo que ocorrenos contrafortes é considerado em termos da maturação da consciência. A partecentral da montanha é com freqüência vista como o estágio de consolidação doprocesso, a parte que testa o conhecimento adquirido nos níveis inferiores. A partemais alta representa o aprendizado intensificado. Ali, o ar é rarefeito. É precisopersistência e determinação para cumprir as tarefas. O pico da montanha simboliza oconfronto com o conhecimento absoluto, como o da velha que mora no alto damontanha ou, como nessa história, o do urso velho e sábio.Por isso, vale a pena subir a montanha quando não sabemos o que fazer.Quando somos atraídas para aventuras sobre as quais sabemos muito pouco, isso criavida e desenvolve a alma. Ao escalar a montanha desconhecida, adquirimos overdadeiro conhecimento da psique instintiva e dos atos criativos de que ela é capaz— é essa a nossa meta. O aprendizado ocorre sob formas diferentes com pessoasdiferentes. No entanto, o ponto de vista instintivo que emana do inconscienteselvagem, e que é cíclico, passa a ser o único que faz sentido e que dá sentido à vida, ànossa vida. Ele é aquilo que infalivelmente nos fala sobre o que fazer em seguida.Onde podemos encontrar esse processo que nos libertará? Na montanha.Encontramos na montanha outras pistas sobre como transformar a mágoa, onegativismo e o excesso de rancor da raiva, todos a princípio plenamente justificados.265Uma dessas pistas é a expressão "Arigato zaishö", que a mulher entoa para agradeceràs árvores e às montanhas por lhe permitirem passagem. Numa tradução literal, aexpressão significa "Obrigada, Ilusão". Em japonês, zaishö representa um modo clarode se olhar para aquilo que prejudica a compreensão mais profunda de nós mesmas edo mundo.Uma ilusão ocorre quando algo gera uma imagem que não é real, como porexemplo as ondas de calor numa estrada que a fazem parecer ondulada. É real queexistam ondas de calor, mas a estrada não é realmente ondulada. É essa a ilusão. Aprimeira parte da informação é exata, mas a segunda, a conclusão, não é.Na história, a montanha permite a passagem da mulher, e as árvores erguemseus galhos para o mesmo fim. Isso simboliza uma dispersão das ilusões que permiteque a mulher prossiga na sua busca. No budismo, diz-se que existem sete véus deilusão. À medida que cada um é eliminado, diz-se que a pessoa compreendeu maisum aspecto da verdadeira natureza da vida e do self. Erguer os véus fortalece a pessoao suficiente para que aceite o significado da vida, para que desvende os padrões dosacontecimentos, dos seres e das coisas; e para que acabe aprendendo a não levar tão asério a primeira impresso, mas a sempre procurar mais fundo.No budismo, erguer os véus é necessário para que a pessoa se ilumine. Amulher nessa história está numa expedição para trazer a luz para as trevas da raiva.Para conseguir isso, ela precisa compreender as muitas camadas da realidade ali namontanha. Temos tantas ilusões acerca da vida. "Ela é bonita e, por isso, desejável"pode ser uma ilusão. "Sou boa e, por isso, serei aceita" pode também ser uma ilusão.Quando procuramos nossa verdade, também estamos procurando dispersar nossasilusões. Quando pudermos ver o que está por trás dessas ilusões, que no budismochamaríamos de "obstáculos à iluminação", seremos capazes de descobrir o ladooculto da raiva.Eis algumas ilusões freqüentes acerca da raiva. "Se eu perder minha raiva,serei outra. Ficarei mais fraca." (A primeira suposição é correta, mas a conclusão nãoé exata.) "Aprendi minha raiva com meu pai [minha mãe, avó, quem quer que seja] eestou condenada a me sentir assim pelo resto da minha vida." (Primeira afirmação,correta; conclusão, equivocada.) Essas ilusões são contestadas pela procura, pelasperguntas, pelo estudo, por espiar debaixo das árvores e escalar o corpo damontanha. Perdemos nossas ilusões quando nos arriscamos ao encontro com oaspecto da natureza que é verdadeiramente selvagem: um mentor da vida, da raiva,da paciência, da suspeita, da desconfiança, do segredo, do distanciamento e daengenhosidade... o urso da meia-lua.Enquanto a mulher está na montanha, algumas aves investem em sua direção.Elas são os muen-botoke, espíritos de mortos que não têm família para alimentá-los,consolá-los, sepultá-los. Ao orar por eles, ela se torna sua família, cuidando deles e osconfortando. Segue-se uma forma útil para a compreensão dos mortos órfãos dapsique. Eles são as idéias, pensamentos e palavras criativas na vida da mulher quesofreram morte prematura e que contribuem profundamente para sua raiva. Numcerto sentido, poderíamos dizer que a raiva resulta de fantasmas que não foramdevidamente sepultados. No final deste capítulo, sob o título de Descansos, hásugestões de como tratar os muen-botoke da psique da mulher.Como a história ilustra, vale a pena agradar ao urso sábio, à psique instintiva, enão deixar de lhe oferecer alimento espiritual, quer se trate de igreja, orações,psicologia arquetípica, vida imaginária, arte, alpinismo, canoagem, viagens ou o queseja. Para se aproximar do mistério do urso, você lhe oferece alimento. É um beloesforço consertar a raiva: desnudar as ilusões, adotá-la como mestra, pedir ajuda àpsique instintiva, sepultar os mortos.266O espírito do ursoO que nos ensina o símbolo do urso, em contraste com o da raposa, do texugo,do quetçal, no que diz respeito ao trato com o self enfurecido? Para os antigos, o ursosimbolizava a ressurreição. O animal dorme por um longo período, no qual suapulsação se reduz a quase nada. É freqüente que o macho emprenhe a fêmeaimediatamente antes da hibernação, mas, como que por milagre, o óvulo e oespermatozóide não se unem de imediato. Eles permanecem separados no caldouterino da ursa até bem mais tarde. Perto do final da hibernação, o óvulo e oespermatozóide se unem, e tem início a divisão celular, de tal modo que os filhotesnasçam na primavera quando a mãe estiver despertando, na hora certa para cuidardos novos filhotes e os preparar para a vida. Não só pelo fato de acordar dahibernação como se voltasse da morte, mas ainda mais pelo motivo de a ursadespertar com uma nova ninhada, esse animal é uma profunda metáfora para a vidahumana, para a volta e o crescimento de algo que parecia extinto.Associa-se o urso a muitas deusas caçadoras: Ártemis e Diana na Grécia eRoma, e Muerte e Hecoteptl, divindades femininas de lama nas culturas latino-americanas. Essas deusas concediam às mulheres o poder de rastrear, de conhecer,de "sacar" os aspectos psíquicos de todas as coisas. Para os japoneses, o urso é umsímbolo de lealdade, sabedoria e força. No norte do Japão, onde vive a tribo Ainu, ourso é aquele que pode conversar diretamente com Deus e trazer mensagens para osseres humanos. O urso da meia-lua é considerado um ser sagrado, que recebeu amarca branca no pescoço da deusa budista Kwan-Yin, cujo símbolo é a meia-lua.Kwan-Yin é a deusa da Profunda Compaixão, e o urso é seu emissário.5Na psique, o urso pode ser compreendido como a capacidade de se regular aprópria vida, especialmente a vida emocional. A força do urso está na sua capacidadede se movimentar em ciclos, de estar totalmente alerta ou de se acalmar entrandonum sono hibernal que renova suas energias para o ciclo seguinte. A imagem do ursoensina ser possível manter uma espécie de manômetro na nossa vida emocional, eespecialmente que podemos ser ferozes e generosas ao mesmo tempo. Podemos serlacônicas e prolíficas. Podemos proteger nosso território, deixar claros nossos limites,abalar os céus caso seja necessário, e ainda ser disponíveis, acessíveis, férteis, tudo aomesmo tempo.O pêlo do pescoço do urso é um talismã, um lembrete do que se aprendeu.Como vemos, seu valor é inestimável.O fogo transformador e a ação corretaO urso demonstra enorme compaixão pela mulher ao lhe permitir quearranque um dos seus pêlos. Ela desce correndo a montanha, realizando todos osgestos, canções e louvores que haviam surgido espontaneamente nela durante aescalada. Ela chega correndo à curandeira, cheia de ansiedade. Ela poderia ter dito,"Olhe, consegui. Fiz o que a senhora mandou. Resisti. Consegui." A velha curandeira,que também é gentil, demora um pouco, permite que a mulher saboreie seu feito edepois lança ao fogo o pêlo conquistado a duras penas.A mulher fica perplexa. O que essa curandeira louca fez? "Vá embora", diz acurandeira. "Pratique o que aprendeu." Para o zen, o momento em que o pêlo éjogado ao fogo e a curandeira diz essas palavras simples é considerado o momento daverdadeira iluminação. Observem que a iluminação não ocorre na montanha. Ela267ocorre quando, com a incineração do pêlo do urso da meia-lua, a projeção de umacura mágica se desfaz. Todas nós enfrentamos essa questão, pois todas nósesperamos que, se nos esforçarmos muito e perseguirmos um objetivo sagrado eelevado, chegaremos a algo, alguma substância, algo material que de repente tornarátudo perfeito para sempre.No entanto, não é assim que funciona. Funciona exatamente da forma descritana história. Podemos deter todo o conhecimento do universo, e ele se reduz a umponto: praticá-lo. Ele se reduz a voltar para casa e implementar passo a passo o quesabemos. Com a freqüência necessária, pelo tempo que for possível, ou para sempre:a opção que predominar. Dá tranqüilidade saber que, quando estamos com a raivafervendo, sabemos o que fazer com exatidão e com a habilidade de quem conhece oofício: aguardar, soltar as ilusões, levar a raiva para uma escalada na montanha,conversar com ela, respeitá-la como mestra.Essa história nos dá muitos sinais, muitas idéias a respeito de como atingir oequilíbrio: criar paciência, ser gentil com o ser furioso e lhe dar tempo para superarsua raiva através da busca e da introspecção. Existe um velho ditado:Antes do zen, as montanhas eram montanhas, e as árvores eramárvores.Durante o zen, as montanhas eram tronos dos espíritos, e as árvoreseram as vozes da sabedoria.Depois do zen, as montanhas eram montanhas, e as árvores eram árvores.Enquanto a mulher estava na montanha, aprendendo, tudo era mágico. Agoraque ela desceu da montanha, o pêlo supostamente mágico foi queimado no fogo quedestrói a ilusão, e chegou a hora de "depois do zen". A vida deve voltar ao planoprático. Mesmo assim, a mulher tem o tesouro da sua experiência na montanha. Elatem o conhecimento. A energia que estava enfaixada pela raiva pode ser empregadaem outras atividades.Ora, a mulher que conseguiu se entender com a raiva volta à vida cotidianacom novos conhecimentos, com um novo sentido de poder viver sua vida com maiorhabilidade. No entanto, um dia no futuro, alguma coisa — um olhar, uma palavra, umtom de voz, a sensação de estar sendo tratada com condescendência, de não estarsendo apreciada ou de estar sendo manipulada contra a própria vontade — qualqueruma dessas coisas emergirá novamente. E então novamente a mulher se incendiará.6A raiva residual de antigas feridas pode ser comparada aos efeitos traumáticosde um ferimento por estilhaços. A pessoa pode conseguir catar praticamente todos ospedaços de metal estilhaçado do míssil, mas os caquinhos menores permanecem.Seria de se pensar que, se a maioria foi retirada, tudo bem. Mas não é assim. Emcertas ocasiões, esse caquinhos minúsculos se torcem e retorcem, causando uma dorsemelhante à do ferimento original (o ferver da raiva) mais uma vez.Não é, porém, a imensa raiva original que provoca esse jorro, mas são ínfimaspartículas dela, elementos irritantes deixados na psique que nunca sãocompletamente eliminados. Eles causam uma dor que é quase tão intensa quanto ado ferimento original. É assim que a pessoa se retesa, temendo o golpe violento dador e, de fato, gerando mais dor. Eles se envolvem em manobras drásticas em trêsfrentes: uma que tenta conter o evento objetivo; uma que tenta conter a dor que seespalha , a partir do antigo ferimento interno; e uma terceira que tenta garantir asegurança da sua posição mergulhando de cabeça numa posição psicológica dedefesa. É demais pedir a um único indivíduo que enfrente o equivalente a um bandode três e tente nocautear todos eles ao mesmo tempo. É por isso que é imperativoparar no meio de tudo isso, recuar e procurar a solidão. É demais tentar lutar e lidar268ao mesmo tempo com a sensação de que se foi atingido nas vísceras. A mulher queescalou a montanha retira-se, trata do evento anterior em primeiro lugar, em seguidado evento mais recente, toma decisões acerca da sua posição, sacode o pêlo, ergue asorelhas e volta a aparecer para agir com dignidade.Nenhuma de nós pode fugir inteiramente da nossa história. Sem dúvida,podemos mantê-la num segundo plano, mas ela está ali do mesmo jeito. No entanto,se você quiser agir em seu próprio benefício, você superará a raiva e acabará seacalmando e se sentindo bem. Não perfeita, mas bem. Você será capaz de seguir emfrente. Ficará para trás o tempo da raiva em estilhaços. Cada vez você lidará melhorcom ela, pois saberá quando chegar a hora de voltar a procurar a curandeira, deescalar a montanha, de se livrar das ilusões de que o presente é uma reapresentaçãoexata e calculada do passado. A mulher lembra-se de que pode ser feroz e generosa aomesmo tempo. A raiva não é como o cálculo renal — se esperarmos tempo suficiente,a dor passa. Não e não. Você precisa tomar a atitude correta. Só assim ela passará, esua vida será mais criativa.A raiva legítimaOfereça a outra face, ou seja, ficar calada diante da injustiça ou dadesconsideração, é uma atitude a ser avaliada com muito cuidado. É uma coisa usar aresistência passiva como arma política da forma que Gandhi ensinou multidões afazer; já é bem diferente o fato de a mulher ser incentivada ou forçada a se calar parapoder sobreviver a uma situação insuportável de poder corrupto ou injusto nafamília, na comunidade ou no mundo. As mulheres nesse caso são isoladas danatureza selvagem, e seu silêncio não é de serenidade, mas representa uma enormedefesa para não sofrer violência. É um erro que os outros considerem que, só porquea mulher está calada, isso quer dizer que ela aprova a vida que leva.Existem ocasiões em que se torna imperioso liberar uma raiva que abale oscéus. Existe a ocasião — muito embora ela seja rara, um dia decididamente elaaparece — para se liberar todo o poder de fogo que se tem. É preciso que seja emreação a alguma ofensa grave, que tenha peso e ataque a alma ou o espírito. Todos osoutros caminhos razoáveis para a mudança devem ser tentados primeiro. Se elesfracassarem, teremos de escolher a hora certa. Existe sem a menor dúvida a horaadequada para soltar a raiva a todo vapor. Quando as mulheres prestam atenção aoself instintivo, como o homem na história que se segue, elas sabem quando chegou ahora. Intuitivamente, elas sabem e agem de acordo. E isso é certo. Certíssimo.Esta história vem do Oriente Médio. Versões dela são contadas pelos sufis,budistas e hindus.7 Ela pertence à categoria da história que trata da realização do atoproibido ou censurado com o objetivo de redimir a sua vida.==========================As árvores ressecadasEra uma vez um homem cujo temperamento irascível lhe havia custado maiorperda de tempo e de bons amigos do que qualquer outro aspecto da sua vida. Ele seaproximou de um velho sábio, vestido em farrapos.— Como vou poder um dia ter controle sobre esse demônio da raiva? —perguntou-lhe.269O velho recomendou ao homem que se postasse num oásis seco bem longe nodeserto, que ficasse ali sentado entre as árvores ressecadas e que puxasse do poço aágua salobra para qualquer viajante que por lá passasse.E o homem, no esforço de dominar a raiva, partiu para o deserto, para o lugardas árvores ressecadas. Durante meses a fio, envolto em mantos e albornoz para seproteger das tempestades de areia, ele puxava a água azeda e a oferecia a todos quechegavam. Anos se passaram, e ele nunca mais sofreu crises de fúria.Um dia, um cavaleiro sombrio chegou ao oásis morto e lançou um olhar dedesprezo ao homem que lhe oferecia água numa tigela. O viajante zombou da águaturva, recusou-a e começou a se afastar.O homem que oferecia água foi acometido de uma fúria repentina, tanto queficou cego de raiva e, puxando o viajante de cima do camelo, matou-o ali mesmo. Quehorror! Ele ficou imediatamente aflito por ter sido dominado pela raiva. E vejam aoque ela o havia levado.De repente, surgiu outro cavaleiro a grande velocidade. Ele examinou o rostodo morto.— Graças a Alá, você matou o homem que estava indo assassinar o rei!Nesse momento, a água turva do oásis tornou-se límpida e doce, e as árvoresressecadas do oásis reverdeceram e irromperam em jubilosa floração.============================Interpretamos esse conto em termos simbólicos. Não se trata de uma históriasobre assassinatos. Trata-se de uma lição para que não liberemos a raivaindiscriminadamente, mas na hora certa. A história começa quando o homemaprende a oferecer água, a vida, mesmo sob condições de seca. Oferecer a vida é umimpulso inato na maioria das mulheres. Elas são muito competentes nessa tarefa amaior parte do tempo. No entanto, existe também a hora do acesso que vem dasentranhas, a hora da raiva acertada, da fúria legítima.8Muitas mulheres são sensíveis como a areia é sensível à onda, como as árvoressão sensíveis à qualidade do ar, como uma loba pode ouvir o passo de um outroanimal entrando em seu território de mais de um quilômetro de distância. Omagnífico dom das mulheres com essa sintonia consiste em ver, ouvir, pressentir,receber e transmitir imagens, idéias e sentimentos com a velocidade de um raio. Amaioria das mulheres consegue sentir as alterações mais sutis no temperamento deuma outra pessoa, consegue ler expressões faciais e corporais — sendo essacapacidade chamada de intuição — e, muitas vezes, a partir de uma infinidade depistas minúsculas que se reúnem para lhe dar informação, sabe o que está passandona cabeça dos outros. Para poder usar esses talentos selvagens, as mulheres mantêm-se abertas a todas as coisas. E é essa mesma abertura que deixa vulneráveis suasfronteiras, expondo-as a danos ao espírito.Como o homem na história, a mulher pode ter o mesmo problema em graumais ou menos intenso. Ela pode sustentar uma forma de raiva pulverizada que aforça a criticar, criticar, criticar; a usar a frieza como uma anestesia; ou ainda a dizerdoces palavras quando no fundo quer punir ou depreciar. Ela pode impor sua própriavontade àqueles que dela dependem, ou pode ameaçá-los com o término dorelacionamento ou do afeto. Ela pode se refrear nos elogios, ou mesmo deixar dereconhecer o mérito devido e em geral ter uma atitude reveladora de danos aosinstintos. Parte-se do pressuposto de que a pessoa que trata os outros dessa maneira270está sofrendo uma agressão violenta dentro de sua própria psique por parte de umdemônio que age exatamente da mesma forma com ela.Muitas mulheres que sofrem desse problema resolvem mergulhar numacampanha de purificação, não ser mais mesquinhas, ser "mais simpáticas", maisgenerosas. Isso é válido e muitas vezes representa um alívio para os que a cercam,desde que ela não se identifique em excesso com o fato de ser uma pessoa dadivosa,como o homem na história. Ele está lá no oásis e, ao servir os outros, começa a sesentir cada vez melhor. Ele passa a se identificar com a serenidade, com a mesmice,da sua vida.Da mesma forma, a mulher que evita todas as confrontações começa a se sentirmelhor. Essa sensação é, porém, temporária. Não é esse o aprendizado queprocuramos. Queremos aprender a decidir quando permitir a raiva justa e quandonão. Essa história não trata do esforço para alcançar a santidade. Ela trata de saberquando agir de um modo selvagem e integrado. A maior parte do tempo, os lobosevitam os confrontos, mas quando precisam fazer valer seu território, quando algumacoisa ou alguém os persegue constantemente, ou os acua, eles têm seu próprio jeitovigoroso de explodir. Isso acontece raramente, mas a capacidade de expressar essaraiva faz parte do seu repertório, e deveria fazer parte do nosso também.Houve muita especulação quanto ao fato de uma mulher furiosa serapavorante no seu poder de provocar medo e tremores nos que a cercam. No entanto,essa é uma projeção da angústia pessoal do observador, demasiada para que qualquermulher a suporte. Na sua psique instintiva, a mulher tem o poder, quando provocada,de se enfurecer com consciência — e isso realmente é algo poderoso. A raiva é um dosmeios inatos de que ela dispõe para começar a criar e manter os equilíbrios que lhesão caros, tudo que ela realmente ama. E seu direito e, em certas horas e sob certascircunstâncias, é seu dever moral.Para as mulheres, isso significa que existe uma hora para mostrar os dentes,para mostrar a poderosa capacidade de defender seu território, para dizer "até aqui enem mais um passo, não passe a responsabilidade adiante, não se intrometa, tenhouma coisa a dizer, tudo isso decididamente vai mudar"!Como o homem no início de "As árvores ressecadas", e como o guerreiro em "Ourso da meia-lua", muitas mulheres com freqüência têm dentro de si um soldadoexausto, cansado da luta, que simplesmente não quer mais saber de batalhas, que nãoquer tocar nesse assunto, que não quer lidar com isso. Em decorrência dessesentimento abre-se na psique um oásis seco. Seja por dentro, seja por fora, ele é umaárea de enorme silêncio, que está pedindo, esperando, que ocorra algo ruidoso, umaquebra, uma fragmentação, um abalo que volte a gerar vida.O homem na história fica a princípio perplexo com seu feito de matar oviajante. Contudo, quando ele compreende que nesse caso aplicava-se a máxima deser a "primeira idéia, a idéia correta", ele se vê liberado da norma simplista de "nuncase enfurecer". Como no "Urso da meia-lua", a iluminação não ocorre durante o atoem si. Ela ocorre quando a ilusão é destruída e a pessoa percebe o significadosubjacente.DescansosVimos, portanto, que desejamos transformar a raiva num fogo que prepara ascoisas em vez de num fogo de conflagração. Vimos que a elaboração da raiva nãopode ser completa sem o ritual do perdão. Falamos sobre o fato de a raiva dasmulheres muitas vezes derivar da situação na sua família de origem, da cultura que a271cerca e às vezes de traumas da vida adulta. No entanto, independente da fonte dessaraiva, algo tem de acontecer para reconhecê-la, abençoá-la, contê-la e liberá-la.É freqüente que a mulher torturada desenvolva uma percepção deslumbrantede uma profundidade e amplitude excepcionais. Embora eu nunca fosse desejar quealguém sofresse tortura a fim de aprender os meandros secretos do inconsciente, ofato é que ter sobrevivido a uma repressão brutal faz com que surjam dons quecompensam e protegem.Nesse sentido, a mulher que levou uma vida torturante e nela mergulhoufundo dispõe, sem a menor dúvida, de uma profundidade incalculável. Apesar de elater alcançado essa profundidade através da dor, se ela tiver cumprido a árdua tarefade se agarrar à consciência, ela terá uma profunda e próspera vida da alma e umaferoz crença em si mesma independente de eventuais hesitações do ego.Há uma época na nossa vida, geralmente na metade da vida, em queprecisamos tomar uma decisão — possivelmente a decisão psíquica mais importantepara nossa vida futura — a respeito de nos tomarmos amargas ou não. As mulherescostumam chegar a esse estágio pouco antes ou pouco depois dos quarenta anos. Elasestão num ponto em que estão "cheias até a raiz dos cabelos", em que "para elas,chega", em que isso foi a gota d'água" e em que "estão irritadas a ponto de explodir".Seus sonhos de quando tinham vinte anos podem estar jogados de qualquer jeito.Pode haver corações partidos, casamentos desfeitos, promessas esquecidas.Qualquer um que viva muito acumula lixo. Não há como evitá-lo. No entanto,se a mulher quiser voltar à sua natureza instintiva em vez de mergulhar numa atitudeamarga, ela renascerá, revitalizada. Nascem ninhadas de lobos todos os anos.Geralmente são uns bichinhos de pelagem escura, de olhos ainda fechados, que miamo tempo todo, cobertos de terra e palha, mas de imediato eles estão alerta,brincalhões e amorosos, querendo a proximidade e o carinho. Eles querem brincar,querem crescer. A mulher que volta à Mulher Selvagem também voltará à vida. Elavai querer brincar. Ela ainda vai querer crescer. Mas antes, é preciso que haja umapurificação.Gostaria de lhes apresentar o conceito dos Descansos. Se você alguma vezviajou pelo velho México, pelo Novo México, pelo sul do Colorado, pelo Arizona oupor certas partes do sul dos Estados Unidos, terá visto pequenas cruzes brancas juntoà estrada. São os descansos, sepulturas.9 Você também as irá encontrar à beira depenhascos ao longo de estradas especialmente lindas mas perigosas na Grécia, naItália e em outros países do Mediterrâneo. Às vezes as cruzes estão reunidas emgrupos de duas, de três, de cinco. Há nomes de pessoas inscritos nelas — JesusMendez, Arturo Buenofuentes, Jeannie Abeyta. Às vezes, as letras são formadas depregos; as vezes, são pintadas ou entalhadas na madeira.É comum que essas cruzes sejam profusamente decoradas com floresverdadeiras ou artificiais, ou que cintilem com palha recém-cortada grudada ataliscas de madeira, fazendo a com que brilhem como ouro ao sol. Às vezes, odescanso não passa de duas varetas ou dois pedaços de cano amarrados com cipó eenfiados no chão. Nos trechos mais pedregosos, a cruz é simplesmente pintada numagrande pedra junto à estrada.Os descansos são símbolos que registram uma morte. Bem ali, exatamentenaquele ponto, a jornada de alguém pela vida afora foi interrompidainesperadamente. Foi um acidente de automóvel, ou alguém vinha andando pelaestrada e morreu ali de insolação, ou ainda ali ocorreu uma briga. Alguma coisaaconteceu ali que alterou a vida daquela pessoa e a vida dos outros para sempre.Antes de completarem vinte anos, as mulheres já morreram centenas demortes. Elas iam numa direção ou noutra e foram impedidas de prosseguir. Elas272tinham sonhos e esperanças que também foram cortados na raiz. Qualquer uma quenão concorde é porque ainda está dormindo. Todas essas mortes podem passar peloprocesso dos descansos.Embora esses fatos aprofundem o sentido de individualidade, dediferenciação, de crescimento e expansão, de floração, de despertar e se manter alertae consciente, eles também são tragédias profundas e assim devem ser pranteados.Criar descansos significa examinar sua vida e marcar os pontos em queocorreram as pequenas mortes, las muertes chiquitas, e as grandes mortes, lasmuertes grandotas. Gosto de traçar uma linha cronológica da vida da mulher numalonga faixa de papel branco de açougue e assinalar com uma cruz ao longo dessalinha, desde sua tenra infância até o presente, os pontos em que morreram aspectos epartes do seu self e da sua vida.Assinalamos a ocasião em que se optou por não seguir por uma determinadaestrada, caminhos que foram obstruídos, emboscadas, traições e mortes. Desenhouma pequena cruz na linha cronológica nos pontos que deveriam ter sido pranteadosou que ainda precisam sê-lo. Também escrevo "esquecido" naqueles pontos que amulher pressente mas que ainda não vieram à tona. Também escrevo "perdoado"acima dos fatos de que a mulher já praticamente se liberou.Recomendo que você faça descansos, que se sente com uma linha cronológicada sua vida e diga "Onde estão as cruzes? Onde estão os pontos que devem serlembrados, que devem ser abençoados?" Em todos eles há significados que vocêtrouxe até sua vida atual. Eles precisam ser lembrados, mas ao mesmo tempoprecisam ser esquecidos. Leva tempo. E exige Paciência.Lembre-se de que no "Urso da meia-lua" a mulher disse uma oração econseguiu sepultar os mortos órfãos. É isso o que fazemos nos descansos. Descansosé uma técnica consciente que se compadece dos mortos órfãos da psique e lhes prestahomenagem, sepultando-os afinal.Seja boa para si mesma e crie descansos, sepulturas para aqueles seus aspectosque estavam a caminho de algum lugar, mas que nunca chegaram. Descansosassinalam os locais das mortes, os tempos sombrios, mas eles também são cartas deamor ao seu sofrimento. Eles são transformadores. Há muitas vantagens em prendercertas coisas à terra para que elas não saiam nos perseguindo. Há muitas vantagensem sepultá-las.O instinto ferido e a raivaAs mulheres [e os homens] costumam tentar atribuir um final a antigosepisódios dizendo, "Eu/ele/ela/eles deram o melhor de si". No entanto, dizer que"eles deram o melhor de si" não equivale ao perdão. Mesmo que seja verdade, essaafirmação peremptória elimina a possibilidade da cura. É como quando se aplica umtorniquete acima de um ferimento profundo. Deixar o torniquete no lugar depois dealgum tempo causa gangrena por falta de circulação. Negar a raiva e a dor nãofunciona.Se a mulher sofreu danos ao seu instinto, ela costuma se deparar com algunsdesafios relacionados à raiva. Em primeiro lugar, ela tem problemas para reconhecerinvasores. É lenta na percepção de violações do seu território e não se dá conta; daprópria raiva até que esteja dominada por ela. Como o homem no início de "Asárvores ressecadas", sua fúria se abate sobre ela como uma espécie de emboscada.Essa demora resulta de danos aos instintos provocados por exortações àsmeninas para que não percebam desavenças, para que tentem criar a paz a todocusto, para que não se intrometam e suportem a dor até que tudo se acalme ou se273disperse por algum tempo. A atitude típica dessas mulheres consiste em não agir emsintonia com a raiva na hora certa, talvez se adiantando ou tendo uma reaçãoretardada semanas, meses ou mesmo anos mais tarde, ao perceber o que deveriam oupoderiam ter dito ou feito.Geralmente isso não resulta de timidez ou de introversão, mas de um excessode raciocínio, de um esforço exagerado no " sentido de ser simpática e de uma falta deação por impulso. A alma selvagem sabe quando e como agir, se ao menos a mulherlhe der atenção. A reação correta contém percepção acrescida de quantidadesadequadas de compaixão e de força. O instinto prejudicado deve ser restauradoatravés da aplicação e imposição de limites definidos e da prática de respostas firmese, quando possível, generosas, mas mesmo assim sólidas.A mulher pode enfrentar dificuldades para liberar sua raiva mesmo quandoisso prejudica sua própria vida, mesmo quando a raiva faz com que ela não se livre deacontecimentos passados há anos como se tivessem ocorrido ontem. Repisar eventostraumatizantes com alguma intensidade por um certo tempo é muito importante paraa cura. No entanto, todo ferimento acaba sendo suturado, podendo se curar com aformação de cicatrizes.A fúria coletivaA fúria ou raiva coletiva é também uma função natural. Existe o fenômeno dedor grupal, ferimento grupal. As mulheres que se conscientizam em termos sociais,políticos ou culturais muitas vezes descobrem que têm de lidar com uma fúriacoletiva que se infiltra nelas insistentemente.Em termos psíquicos, é saudável que as mulheres sintam essa raiva. Ésaudável que elas usem essa raiva da injustiça para inventar formas de fazer surgirmudanças úteis. Já não é psicologicamente saudável que elas neutralizem essa raivade modo a não mais senti-la e, portanto, não mais pressionar pela evolução e pelamudança. Como ocorre com a raiva pessoal, a raiva coletiva também é uma mestra.As mulheres podem consultá-la, questioná-la sozinhas e com os outros. Existe umadiferença entre carregar por aí uma velha raiva enrustida e mexê-la com uma novacolher para ver quais usos práticos podem advir dela.A raiva coletiva é bem utilizada como motivação para procurar ou oferecerapoio, para imaginar meios de forçar grupos ou indivíduos a um diálogo ou paraexigir prestações de contas, avanços, aperfeiçoamentos. Esses são processosadequados nos modelos das mulheres que chegam à conscientização, de como seimportam com o que é essencial e importante para elas. Faz parte da psique instintivasaudável ter profundas reações ao desrespeito, à ameaça, à ofensa. Trata-se de umaparte essencial e esperada do aprendizado sobre os mundos coletivos da alma e dapsique.A prisão da raiva antigaSe e quando a raiva se transforma numa represa para o pensamento e a açãocriativa, ela precisa ser abrandada ou modificada. Para quem passou bastante tempoelaborando algum trauma, quer ele tenha sido provocado pela crueldade, negligência,falta de respeito, falta de responsabilidade, arrogância ou ignorância de alguém, querpor obra do destino, um dia chega a hora de perdoar a fim de liberar a psique paraque ela volte a um estado normal de calma e paz.1 0274Quando a mulher enfrenta dificuldades para se livrar da raiva ou da fúria,muitas vezes é porque ela está usando a raiva para ganhar forças. Embora a princípioessa possa ter sido uma decisão sábia, com o tempo ela precisa ter cuidado, pois araiva constante é um fogo que queima sua própria energia vital. Encontrar-se nesseestado é como voar pela vida com "o pé na tábua"; como tentar levar uma vidaequilibrada com o pé no acelerador até o fundo. O ímpeto da fúria não deve serconsiderado um substituto da vida cheia de paixão. Na é a vida na sua melhor forma.Trata-se de uma defesa cuja manutenção é muito cara, depois de passada anecessidade da sua proteção. Após algum tempo, ela arde incessantemente, poluinossas idéias com sua fumaça negra e prejudica outras formas de visão e depercepção.Não vou, porém, lhe dizer a mentira deslavada de que você tem condições deeliminar toda a sua fúria hoje ou na semana que vem, e que estará livre dela parasempre. A angústia e o tormento de tempos passados costumam surgir na psiquenuma freqüência cíclica. Embora um expurgo profundo elimine a maior parte da dore da fúria, nunca se consegue varrer completamente todo o resíduo. Ele deveria, noentanto, deixar cinzas bem leves, não um fogo voraz. Por isso, a limpeza da fúriaresidual precisa se tomar um ritual de higiene periódica, um ritual que nos libera,pois carregar a raiva antiga além do ponto de sua utilidade equivale a carregar umaansiedade constante, mesmo que inconsciente.Às vezes as pessoas se confundem e pensam que estar presa a uma raivaultrapassada significa queixas e enfurecimentos, acessos de raiva e de atirar coisas.Na maioria dos casos não é assim que funciona. Estar presa significa estar cansada otempo todo, ter uma grossa camada de cinismo, destruir a esperança, frustrar o novo,o promissor. Significa ter medo de perder antes de abrir a boca. Significa chegar aoponto de ebulição por dentro, deixando transparecer ou não. Significa amargossilêncios defensivos. Significa sentir-se desamparada. Existe, porém, uma saída, e éatravés do perdão."Ora, através do perdão?" você dirá num tom de repúdio. Qualquer coisamenos isso? No fundo, você sabe que um dia tudo se resumirá a isso. Pode ser queisso só chegue no seu leito de morte, mas chegará. Pense no seguinte: muitas pessoastêm dificuldades com o perdão porque lhes ensinaram que ele é um ato único a serconcluído de uma vez. Isso não é correio. O perdão tem muitas camadas, muitasestações. Na nossa cultura existe a idéia de que o perdão é absoluto. Tudo ou nada.Também nos ensinam que perdoar significa fechar os olhos, agir como se algo nãotivesse ocorrido. Isso também não é verdade.A mulher que conseguir atingir 95% de perdão de alguém ou de algumacontecimento trágico e danoso está praticamente qualificada para a beatificação, senão para a santidade. Se ela sentir uns 75% de perdão e 25% de "não sei se vou umdia conseguir perdoar totalmente, e nem sei se quero isso", estará mais próxima donormal. No entanto, 60% de perdão acompanhados de 40% de "não sei, não tenhocerteza e ainda estou pensando nisso" já são uma atitude decididamente satisfatória.Um nível de perdão de 50% ou menos pode ser considerado como esforço emandamento. Menos de 10%? Ou você está apenas começando, ou ainda não está seesforçando.Seja como for, quando tiver passado um pouco da metade do caminho, o restovirá com o tempo, geralmente em pequenos aumentos graduais. O aspectoimportante do perdão consiste em começar e persistir. A conclusão do processo étrabalho para toda a vida. Você dispõe do resto da sua vida para trabalhar nospercentuais residuais. Na realidade, se pudéssemos entender tudo, tudo poderia serperdoado. Para a maioria das pessoas, porém, é preciso muito tempo no banho275alquímico para chegar a esse Ponto. E está certo. Nós dispomos da cura e, por isso,temos a paciência para acompanhar o processo.Algumas pessoas, graças ao seu temperamento inato, têm maior facilidadepara perdoar do que outras. Para alguns, trata-se de um dom; para a maioria, trata-sede uma técnica a ser aprendida. A sensibilidade e a vitalidade essencial parecemafetar a capacidade de dar pouca importância às coisas. A sensibilidade e a vitalidadeintensa nem sempre permitem que injustiças sejam ignoradas com facilidade. O fatode você não perdoar facilmente não quer dizer que você seja má. Você também não ésanta só por perdoar facilmente. Cada coisa a seu tempo.Para uma cura real, porém, precisamos dizer a nossa verdade, e não só a nossador e o nosso lamento, mas também; o mal que foi causado, a raiva e revolta e odesejo de autopunição ou de vingança que foi evocado em nós. A velha curandeira dapsique compreende a natureza humana com todas as suas fraquezas e concede operdão com base no relato da verdade nua e crua. Ela não dá apenas uma segundachance. Na maior parte das vezes ela dá muitas chances.Examinemos os quatro níveis de perdão que venho usando no meu trabalhocom pessoas traumatizadas ao longo dos anos. Cada nível tem algumas camadas.Pode-se lidar com eles em qualquer ordem e pelo tempo que se deseje, mas a seguireles estão relacionados na ordem que sugiro a minhas clientes.Os quatro estágios do perdão1. Deixar passar — deixar a questão em paz2. Controlar-se — renunciar à punição3. Esquecer — afastar da memória, recusar-se a repisar4. Perdoar — o abandono da dívidaDEIXAR PASSAR1 1Para se começar a perdoar, é bom deixar passar algum tempo. Ou seja, é bomdeixar de pensar provisoriamente na pessoa ou no acontecimento. Não se trata dedeixar algo por fazer, mas assemelha-se a tirar umas férias do assunto. Isso ajuda aevitar que fiquemos exaustas, permite que nos fortaleçamos por outros meios, quetenhamos outras alegrias na vida.Esse estágio é um bom treino para o abandono definitivo que mais adianteadvirá do perdão. Deixe a situação, a recordação, o assunto, tantas vezes quantas fornecessário. A idéia não é a de fechar os olhos, mas a de adquirir agilidade e força parase desligar da questão. Deixar passar envolve voltar a tecer, a escrever, ir até o mar,aprender e amar algo que a fortaleça e deixar que o tema saia do primeiro plano porum tempo. Isso é bom e é medicinal. As questões de danos passados irão atormentara mulher muito menos se ela garantir à psique ferida que lhe aplicará bálsamosmedicinais agora e que mais tarde tratará do assunto de quem provocou tal ferida.CONTROLAR-SE1 2A segunda fase é a do controle, especificamente no sentido de abster-se depunir; de não pensar no fato nem reagir a ele seja em termos grandes, seja em termospequenos. É de extrema utilidade a prática desse tipo de refreamento, pois eleaglutina a questão num único ponto, em vez de permitir que ela se espalhe por toda aparte. Essa atitude concentra a atenção para a hora em que a pessoa se dirigir aospróximos passos. Ela não quer dizer que a pessoa deva ficar cega, entorpecida ou que276perca sua vigilância protetora. Ela pretende conferir um prazo à situação para vercomo isso ajuda.Controlar-se significa ter paciência, resistir, canalizar a emoção. Esses sãomedicamentos poderosos. Faça tanto quanto puder. Esse é um regime de purificação.Você não precisa fazer tudo; você pode escolher um aspecto, como o da paciência, epraticá-lo. Você pode se abster de palavras, de resmungos punitivos, de agir de modohostil, ressentido. Ao evitar punições desnecessárias, você estará reforçando aintegridade da alma e da ação. Controlar-se é praticar a generosidade, permitindo,assim, que a grande natureza compassiva participe de questões que anteriormentegeravam emoções que iam desde a ínfima irritação até a fúria.ESQUECER1 3Esquecer significa afastar da lembrança, recusar-se a repisar um assunto — emoutras palavras, deixar de lado, soltar, especialmente da memória. Esquecer não querdizer entorpecer o cérebro. O esquecimento consciente consiste em deixar de lado oacontecimento, não insistir para que ele permaneça no primeiro plano, mas permitirque ele seja relegado ao plano de fundo ou mesmo que saia do palco.Praticamos o esquecimento consciente quando nos recusamos a invocar omaterial inflamável, quando nos recusamos a mergulhar em recordações. Esquecer éuma atividade, não uma atitude passiva. Significa não trazer certos materiais até asuperfície, nem revirá-los constantemente, nem se irritar com pensamentos, imagensou emoções repetitivas. O esquecimento consciente significa a determinação deabandonar a prática obsessiva, de ultrapassar a situação e perdê-la de vista, semolhar para trás, vivendo, portanto, numa nova paisagem, criando vida e experiênciasnovas em que pensar no lugar das antigas. Esse tipo de esquecimento não apaga amemória; ele simplesmente enterra as emoções que cercavam a memória.PERDOAR1 4Existem muitos meios e proporções com os quais se perdoa uma pessoa, umacomunidade, uma nação por uma ofensa. É importante lembrar que um perdão"final" não é uma capitulação. É uma decisão consciente de deixar de abrigarressentimento, o que inclui o perdão da ofensa e a desistência da determinação deretaliar. É você quem decide quando perdoar e o ritual a ser usado para assinalar esseevento. É você quem resolve qual é a dívida que você agora afirma não precisar maisser paga.Algumas pessoas optam pelo perdão total: liberando a pessoa de qualquer tipode reparação para sempre. Outras preferem interromper a reparação no meio,abandonando a dívida, alegando que o que está feito está feito e que a compensaçãojá é suficiente. Outro tipo de perdão consiste em isentar a pessoa sem que ela tenhafeito qualquer reparação emocional ou de outra natureza.Para certas pessoas, finalizar o perdão significa considerar o outro comindulgência, e isso é mais fácil quando as ofensas são relativamente leves. Uma dasformas mais profundas de perdão está em dar ajuda compassiva ao ofensor por umou outro meio.1 5 Isso não quer dizer que você deva enfiar a cabeça no ninho da cobra,mas, sim, ser sensível a partir de uma postura de compaixão, segurança e preparo.1 6O perdão é onde vão culminar toda a abstenção, o controle e o esquecimento.Não significa abdicar da própria proteção, mas da própria frieza. Uma formaprofunda de perdão consiste em deixar de excluir o outro, o que significa deixar demantê-lo à distância, de ignorá-lo, de agir com frieza, condescendência e falsidade. É277melhor para a psique da alma restringir ao máximo o tempo de exposição às pessoasque são difíceis para você do que agir como um robô insensível.O perdão é um ato de criação. Você pode escolher entre muitas formas deproceder. Você pode perdoar por enquanto, perdoar até que, perdoar até a próximavez, perdoar mas não dar outra chance — começa tudo de novo se acontecer outroincidente. Você pode dar só mais uma chance, dar mais algumas chances, dar muitaschances, dar chances só se... Você pode perdoar uma ofensa em parte, pela metade outotalmente. Você pode imaginar um perdão abrangente. Você decide.1 7Como a mulher sabe que perdoou? Você passa a sentir tristeza a respeito dacircunstância, em vez de raiva. Você passa a sentir pena da pessoa em vez deirritação. Você passa a não se lembrar de mais nada a dizer a respeito daquilo tudo.Você compreende o sofrimento que provocou a ofensa. Você prefere se manter foradaquele meio. Você não espera por nada. Você não quer nada. Não há no seutornozelo nenhuma armadilha de laço que se estende desde lá longe até aqui. Vocêestá livre para ir e vir. Pode ser que tudo não tenha acabado em "viveram felizes parasempre", mas sem a menor dúvida existe de hoje em diante um novo "Era uma vez" àsua espera.
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Mulheres que Correm com os Lobos
Non-FictionMulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem é um livro da analista junguiana, autora e poetisa Clarissa Pinkola Estés VOU DEIXAR ELE COMPLETO ATÉ O FINAL DO MÊS;