As histórias como bálsamos medicinaisAqui vou tentar esboçar para vocês parte da tradição decontar histórias onde estão minhas origens...1Sempre que se conta um conto de fadas, a noite vem. Não importa o lugar, nãoimporta a hora, não importa a estação do ano, o fato de uma história estar sendocontada faz com que um céu estrelado e uma lua branca entrem sorrateiros pelobeiral e fiquem pairando acima da cabeça dos ouvintes. Às vezes, ao final de umconto, o aposento enche-se de amanhecer; outras vezes um fragmento de estrela ficapara trás, ou ainda uma faixa de luz rasga o céu tempestuoso. E não importa o quetenha ficado para trás, é com essa dádiva que devemos trabalhar: é ela que devemosusar para criar alma.Na maior parte das vezes, a hora de contar histórias é determinada pelassensibilidades internas e pela necessidade externa. Algumas tradições designamépocas específicas para contar histórias. Entre as tribos dos pueblos, as histórias docoiote eram reservadas para serem contadas no inverno. Certas histórias da EuropaOriental somente são contadas no outono, depois da colheita. No trabalho comarquétipos e com a cura, avaliamos bem a hora de contar histórias. Examinamoscuidadosamente a hora, o lugar, a pessoa, a medicação necessária. No entanto, comgrande freqüência, mesmo essas medições são frágeis. Na maioria das vezes,contamos histórias quando somos convocados por elas, não ao contrário.Nas minhas tradições, existe um legado entre os contadores, através do qualum contador transmite suas histórias a um grupo de "sementes". As sementes sãocontadores que, segundo o que o mestre espera, irão preservar a tradição como aaprenderam. Como as "sementes" são escolhidas é um processo misterioso queoferece um desafio a uma definição exata, pois ele não se baseia num conjunto denormas, mas, sim, num relacionamento. As pessoas escolhem-se mutuamente; àsvezes elas vêm ao nosso encontro, mas com maior freqüência tropeçamos umas nasoutras e nos reconhecemos como se nos conhecêssemos há séculos.Nessa tradição, considera-se que as histórias são escritas como uma levetatuagem na pele de quem as viveu. A formação de curanderas, cantadoras ycuentistas é muito semelhante. Ela deriva da leitura dessa escrita levíssima, dodesenvolvimento do que se encontra nela.Da mesma forma, na tradição da cantadora/cuentista, as histórias possuempais, avós e às vezes padrinhos, que seriam a pessoa que lhe ensinou a história ou quea deu de presente para você (a mãe ou o pai da história), e a pessoa que ensinou ahistória a essa pessoa que a passou para você (o avô da história).Na minha opinião é assim que deveria ser.2 Fornecer os créditos da história émuito importante, pois mantém o vínculo genealógico: nós estamos numaextremidade; a placenta, na outra. Os padrinhos da história são geralmente aquelesque acompanharam a história de uma bênção. Às vezes é muito demorado o relatodos antecedentes da história, antes que cheguemos à história em si. Essa listagem damãe e da avó da história não é um preâmbulo longo e enfadonho, mas é, sim,temperada de pequenas anedotas. A história mais longa que se segue fica sendo,então, como um segundo prato.343Contar histórias é trazer à baila, trazer à tona. Não é uma atividade inútil.Embora haja o intercâmbio de histórias, quando duas pessoas trocam histórias comopresentes mútuos, na maior parte dos casos elas chegaram a se conhecer bem.Desenvolveram um relacionamento de parentesco, se ele já não existia. E é assimmesmo que deve ser.Apesar de algumas pessoas usarem as histórias apenas para diversão, no seusentido mais antigo as histórias são uma arte medicinal. Existem os que foramconvocados por essa arte medicinal; e os melhores, na minha opinião, são os que sedeitaram com a história e descobriram dentro de si mesmos e em profundidade todasas partes que se harmonizavam.Ao lidarmos com as histórias, estamos trabalhando com a energia arquetípica,que é muito parecida com a eletricidade. Ela pode animar e iluminar, mas no localerrado na hora errada e na quantidade errada, como qualquer medicamento podeproduzir efeitos nem um pouco desejados. Às vezes, pessoas que coletam históriasnão percebem o que estão pedindo quando querem saber uma história dessadimensão. Os arquétipos nos modificam. Se não houver modificação, então nãohouve nenhum contato real com o arquétipo. Transmitir uma história é umaresponsabilidade muito grande. Temos de nos certificar de que as pessoas estejampreparadas para as histórias que contam.No caso dos melhores contadores que conheço, as histórias crescem das suasvidas como as raízes fazem crescer a árvore. É que as histórias os criaram,transformando-os no que eles são. É fácil notar a diferença. Sabemos logo quandoalguém criou uma história e quando a história criou alguém. É deste último caso quetrata a minha tradição.Pode acontecer de um desconhecido me pedir uma das histórias que estiveescavando e modelando durante anos. O relacionamento é tudo. Como guardiã dessashistórias, posso dá-las ou não. Isso não depende de nenhuma lista de pré-requisitosespecíficos, mas de uma ciência da alma, de acordo com o dia e com orelacionamento.O modelo de mestre-aprendiz fornece o tipo de atmosfera conscienciosa naqual pude ajudar meus aprendizes a procurar e a desenvolver as histórias que irãoaceitá-las, que irão brilhar através delas, não ficar simplesmente na superfície do seuser como bijuteria barata. Há muitos tipos de possibilidade. Poucos são fáceis; osmais difíceis são muito mais numerosos. Positivamente, na história, ou no bálsamomedicinal, somos capacitadas pelo volume do self que estamos dispostas a sacrificarpara investir nela.Na tradição da cantadora, como na tradição da mesemondók, existe o que sechama de La Invitada, "a convidada" ou a cadeira vazia a cada vez que a história écontada. Às vezes, durante o relato de uma história, a alma de uma das ouvintes, oude mais de uma, vem sentar-se ali por ser essa a sua necessidade. Embora eu possater material para toda uma noite, muitas vezes altero esse material para ajudar oespírito que veio para a cadeira vazia, ou para brincar com ele. "A convidada" sempreexprime as necessidades de todas.Costumo estimular as pessoas a fazer sua própria escavação da história, pois asjuntas arranhadas, o fato de dormir na terra fria, a procura na escuridão e asaventuras pelo caminho valem tudo. É preciso que haja um pouco de sanguederramado em cada história, se quisermos que ela tenha função balsâmica.Espero que vocês saiam e deixem que as histórias lhes aconteçam, que vocês aselaborem, que as reguem com seu sangue, suas lágrimas e seu riso até que elasfloresçam, até que você mesma esteja em flor. Então, você será capaz de ver os344bálsamos que elas criam, bem como onde e quando aplicá-los. É essa a missão. Aúnica missão.
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Mulheres que Correm com os Lobos
Non-FictionMulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem é um livro da analista junguiana, autora e poetisa Clarissa Pinkola Estés VOU DEIXAR ELE COMPLETO ATÉ O FINAL DO MÊS;