As lágrimas são um rio que nos leva a algum lugar. O choro forma um rio emvolta do barco que carrega a vida da alma. As lágrimas erguem seu barco das pedras,soltam-no do chão seco, carregam-no para um lugar novo, um lugar melhor.Há oceanos de lágrimas que as mulheres nunca choraram por terem sidoensinadas a levar para o túmulo os segredos dos pais e das mães, dos homens, dasociedade, bem como os seus próprios. O choro da mulher sempre foi consideradomuito perigoso, pois ele abre os trincos e os ferrolhos dos segredos que ela carrega.Na realidade, porém, para o bem da alma selvagem da mulher, é melhor chorar. Paraas mulheres, as lágrimas são um princípio de iniciação para o ingresso no clã dascicatrizes, essa eterna tribo de mulheres de todas as cores, todas as nacionalidades,todos os idiomas, que no decorrer dos séculos passaram por algo de grandioso e quemantiveram seu orgulho.Todas as mulheres têm histórias pessoais tão abrangentes e poderosas quantoa força espiritual existente nos contos de fadas. Existe, no entanto, um tipo singularde história que está relacionado aos segredos da mulher, especialmente àquelesassociados à vergonha. São algumas das histórias mais importantes que a mulherpode dedicar seu tempo a destrinchar. Para a maioria das mulheres, essas históriasestão incrustadas, não como pedras preciosas numa coroa, mas como cascalho negrona pele da alma.Os segredos como assassinosDurante os vinte anos da minha experiência profissional, ouvi milhares de"segredos", histórias que, em geral, eram mantidas ocultas por muitos anos, às vezesquase pela vida inteira. Quer o segredo de uma mulher esteja encoberto por umsilêncio imposto por ela mesma, quer ela tenha sofrido ameaças por parte de alguémmais poderoso do que ela, seu medo profundo é o da privação dos seus direitos, deser considerada indesejável, da destruição dos relacionamentos que são importantespara ela e às vezes até mesmo da violência física, se ela revelar o segredo.Alguns segredos das mulheres consistem em terem contado alguma mentiradeslavada ou em terem praticado alguma perversidade proposital que prejudicou oumagoou alguém. No entanto, na minha experiência, esses são raros. A maioria dossegredos das mulheres se relaciona à transgressão de algum código social ou moraldo sistema de valores da pessoa, da religião ou da cultura. Alguns desses atos,acontecimentos e opções, especialmente aqueles relacionados à liberdade dasmulheres em toda e qualquer seara, costumaram ser denunciados pela cultura comovergonhosos para as mulheres, mas não para os homens.O problema dos segredos envoltos em vergonha está no fato de eles isolarem amulher da sua natureza instintiva, que essencialmente é livre e alegre. Quando existeum segredo atroz na psique, a mulher não consegue nem chegar perto dele e narealidade, por defesa, evita entrar em contato com qualquer coisa que a lembre dessesegredo ou que faça com que sua dor crônica se intensifique.Essa manobra defensiva é comum e, como nos efeitos retardados dos traumas,influencia secretamente a mulher naquilo que ela irá ou não realizar no mundoobjetivo: os livros, filmes ou acontecimentos com os quais ela irá se envolver; do queela irá rir ou não; e a que interesses ela irá se dedicar. Nesse sentido, ocorre um279cerceamento da natureza selvagem, que deveria ser livre para fazer, ser, examinar oque bem entender.Em geral, os segredos seguem os mesmos temas encontrados no teatro sério.Alguns desses temas são a traição, o amor proibido, a curiosidade censurável, atosdesesperados, atos forçados, o amor não-correspondido, o ciúme e a rejeição, avingança e a fúria, a crueldade consigo mesmo ou com outros; sonhos, desejos eanseios reprováveis; estilos de vida e interesses sexuais condenados; gravidezes não-planejadas; o ódio e a agressão; o ferimento ou a morte acidentais; promessas não-cumpridas; falta de coragem; descontrole emocional; impossibilidade de terminaralgo; incapacidade de fazer algo; manipulação e interferência por baixo do pano;descaso; violência; e a lista continua, sendo que a maioria dos temas se incluiria nacategoria de erro lamentável.1Os segredos, como os contos de fadas e os sonhos, também seguem as mesmasestruturas e padrões de energia encontrados no drama. Os segredos, no entanto, emvez de obedecer à estrutura heróica, seguem a estrutura trágica. O drama heróicocomeça com uma heroína em viagem. Às vezes ela não está psicologicamente alerta.Às vezes ela é excessivamente meiga e não percebe o perigo. Por vezes ela já foimaltratada e faz os gestos desesperados de um animal em cativeiro. Não importacomo comece, a heroína acaba caindo nas garras de qualquer coisa ou de qualquerum e sofre severas provas. Então, recorrendo à sua inteligência e por ter quem seimporte com ela, ela é libertada e cresce em conseqüência disso.2Na tragédia, a heroína é raptada, forçada ou entra direto no inferno, sendosubseqüentemente dominada, sem que ninguém ouça seus gritos ou dê atenção asuas queixas. Ela perde as esperanças, perde contato com a riqueza da própria vida eentra em colapso. Em vez de ser capaz de saborear sua vitória sobre a adversidade, oua prudência das suas escolhas e sua resistência, ela é aviltada e entorpecida. Ossegredos que a mulher guarda são quase sempre dramas heróicos que degeneraramem tragédias que não dão em nada.Porém, nem tudo é tão sombrio quanto parece. O modo de reverter um dramatrágico num drama heróico está em revelar o segredo, em falar a respeito dele comalguém, em escrever um outro final, em examinar nosso papel nele e quais as nossasqualidades ao suportá-lo. Esse aprendizado compõe-se em partes iguais de dor eprudência. O fato de se ter passado por tudo isso é uma vitória do espírito profundo eselvagem.Portanto, esses segredos cheios de vergonha que as mulheres guardam sãohistórias muito antigas. Qualquer pessoa que tenha guardado um segredo emdetrimento de si mesma viu-se soterrada pela vergonha. Nessa aflição universal, opróprio padrão é arquetípico: ou bem a heroína foi forçada a fazer algo ou, pela perdado instinto, caiu em alguma armadilha. Tipicamente, ela é incapaz de corrigir a tristecondição. Ela está presa ao segredo por algum tipo de juramento ou pela vergonha.Ela concorda por medo da perda do amor, da perda da consideração, da perda dosmeios básicos de subsistência. Para lacrar ainda mais o segredo, é lançada umamaldição sobre a pessoa, ou pessoas, que o revelar. Há a ameaça de alguma coisaterrível caso o segredo seja um dia revelado.As mulheres foram advertidas de que certos acontecimentos, certas opções ecircunstâncias na sua vida, geralmente relacionados ao sexo, ao amor, ao dinheiro, àviolência e/ou a outras dificuldades comuns à condição humana, são de naturezaextremamente vergonhosa, não merecendo nenhum tipo de absolvição. Isso não éverdade.Todo mundo faz opções pouco inteligentes em termos de palavras e atos,quando ainda não têm melhores conhecimentos e antes de perceber quais serão as280conseqüências. Não há nada neste planeta, ou neste universo, que esteja fora doslimites do perdão. Nada. "Ah, não!" você dirá. "Isso que eu fiz não tem perdão." E eudigo que não há nada que um ser humano possa ter feito, esteja fazendo ou possa vira fazer que esteja fora dos limites do perdão. Nada mesmo.O Self não é uma força punitiva que corre por aí castigando as mulheres,homens e crianças. O Self é um deus selvagem que entende a natureza das criaturas.Muitas vezes é difícil para nós "agir corretamente", em especial quando os instintosbásicos, incluindo-se a intuição, estão isolados. Nesse caso, é difícil fazerespeculações quanto às conseqüências antes do fato, em vez de depois dele. A almaselvática tem um lado profundamente compassivo que leva esse fato emconsideração.No arquétipo do segredo, é lançado sobre a psique da mulher uma espécie deencantamento, como uma rede escura, e ela é encorajada a acreditar que o segredonão deve jamais ser revelado. Além do mais, ela deve acreditar que, se o revelar, todasas pessoas decentes que por acaso a encontrarem irão insultá-la para todo o sempre.Essa ameaça a mais, além da própria vergonha secreta, faz com que a mulher sesubmeta não a uma, mas a duas cargas.Esse tipo de ameaça de encantamento é um passatempo apenas para aquelaspessoas que habitam um espaço negro e limitado no seu coração. Entre as pessoascheias de amor e carinho pela condição humana, vale exatamente o contrário. Elasajudariam a extrair o segredo, por saberem que ele gera uma ferida incurável até queo tema se expresse em palavras e disponha de testemunhas.A zona mortaA guarda de segredos isola a mulher daqueles que lhe dariam amor, auxílio eproteção. Ela faz com que a mulher carregue a carga da dor e do medo sozinha, e àsvezes no lugar de um grupo inteiro, seja a família, seja a cultura. Além disso, comoafirmou Jung, guardar segredos nos isola do inconsciente. Ali onde há um segredovergonhoso, há sempre na psique da mulher uma zona morta, um local que não temsensibilidade ou resposta adequada aos acontecimentos contínuos da sua própriavida emocional ou aos acontecimentos da vida emocional dos outros.A zona morta tem imensas proteções. Ela é um lugar de inúmeras portas emuros, todos fechados com vinte trincos, e os homunculi, as pequenas criaturas quehabitam os sonhos das mulheres, estão sempre ocupados na construção de maisportas, mais represas, maior segurança, para que o segredo não escape.No entanto, não há como enganar a Mulher Selvagem. A Mulher Selvagem temconsciência dos fardos obscuros que a mente da mulher carrega bem amarrados comcordas e faixas. Esses espaços na mente da mulher não são sensíveis à luz ou à graça,de tão cobertos que estão. E é claro que, já que a psique é extremamentecompensatória, o segredo irá de qualquer jeito descobrir uma forma de sair, se nãofor em palavras concretas então sob a forma de melancolias repentinas, de acessos defúria intermitentes e misteriosos, de todos os tipos de dores, esforços e tiques físicos,conversas inacabadas que terminam de repente e sem explicação e súbitas reaçõesestranhas a filmes e até mesmo a comerciais de televisão.O segredo sempre descobre um meio de sair, se não for direto através depalavras, então em termos somáticos; e na maior parte das vezes de uma forma quelhe permita ser tratado e auxiliado abertamente. Portanto, o que faz a mulher quandodescobre que o segredo está vazando? Ela corre atrás dele com enorme dispêndio deenergia. Ela o alcança, o embrulha e o enfurna de novo na zona morta. Ela chamaseus humunculi — os guadiões internos e defensores do ego — para que construam281mais portas, mais paredes. A mulher descansa encostada ao seu túmulo psíquico maisrecente, gotejando sangue e respirando como uma locomotiva. A mulher que guardaum segredo é uma mulher exausta.Minhas nagynénik, tias, costumavam contar uma historieta sobre essa questãodos segredos. Elas a intitulavam "A mulher dos cabelos de ouro" ou "Arányos Haj,cabelos dourados".===========================A mulher dos cabelos de ouroEra uma vez uma mulher lindíssima, mas muito estranha, de longos cabelosdourados, finos como fios de ouro. Ela era pobre e não tinha nem pai nem mãe.Morava sozinha no bosque e tecia num tear feito de galhos de nogueira-preta. Umbrutamontes, que era filho do carvoeiro, tentou forçá-la a se casar com ele, e ela,numa tentativa para se livrar dele, lhe deu uma mecha de cabelos dourados.Ele, no entanto, não sabia ou não se importou em saber se o ouro que ela lhedera tinha valor monetário ou espiritual. Assim, quando ele tentou trocar o cabelopor mercadorias no mercado, as pessoas zombaram dele e o consideraram louco.Furioso, ele voltou à noite à cabana da mulher, matou-a com suas própriasmãos e enterrou o corpo junto ao rio. Por muito tempo, ninguém notou sua ausência.Ninguém perguntava por sua casa, nem por sua saúde. Na sua cova, porém, oscabelos dourados não paravam de crescer. A linda cabeleira abriu o solo negro parasubir em curvas e espirais e foi crescendo cada vez mais, em arcos e volteios,crescendo até que sua cova se cobrisse de ondulantes juncos dourados.Uns pastores cortaram os juncos anelados para fazer flautas e, quando foramtocá-las, as flautinhas começaram a cantar sem parar,Aqui jaz a mulher dos cabelos douradosassassinada e enterrada, morta pelo filho do carvoeiroporque tinha vontade de viver.E foi assim que o homem que havia tirado a vida da mulher dos cabelosdourados foi descoberto e levado à justiça para que quem vive nos bosques selvagensdo mundo, como nós vivemos, pudesse mais uma vez estar em segurança.===================Embora essa história transmita a costumeira recomendação de que se tomecuidado em locais solitários e ermos, a mensagem interior é profunda: a de que aforça da vida da bela mulher selvagem, encarnada por seus cabelos, continua acrescer, a viver e a transmitir uma sabedoria a nível consciente mesmo depois defisicamente silenciada e enterrada. A história é provavelmente um fragmento de umanarrativa de morte e ressurreição muito maior e mais antiga, girando em torno deuma divindade feminina.Esse trecho é bonito e muito ilustrativo. Além disso, ele nos diz algo a respeitoda natureza dos segredos e talvez até mesmo o que é que morre na psique quando avida da mulher não é devidamente valorizada. Nessa história, o assassinato da282mulher que mora lá na floresta é o segredo. Ela representa uma kore, o aspecto damulher-que-não-quer-se-casar da psique feminina. A parte da mulher que desejaficar só consigo mesma é mística e solitária num sentido positivo e se dedica aescolher e criar idéias, pensamentos e iniciativas.É essa mulher selvagem refreada que mais sofre com traumas ou com a guardade um segredo... esse sentido integral do self que não precisa ter muita coisa à suavolta para se sentir feliz, esse coração da psique feminina que tece na floresta no tearde nogueira-preta e está em paz ali.No conto de fadas ninguém pergunta por essa mulher vital. Isso não éincomum nesses contos ou na vida real. As famílias das mulheres mortas no "Barba-azul" também não vêm procurar suas filhas. Em termos culturais, isso carece deinterpretação. É triste, mas todas sabemos o que significa, e infelizmente muitasmulheres compreendem essa falta de interesse de primeira mão. Embora as pessoaspossam perceber que no fundo seu coração está partido, elas podem, inadvertida oupropositalmente, fechar os olhos à evidência da sua dor.Entretanto, parte do milagre da psique selvagem reside no fato de que, nãoimporta a profundidade da "morte" da mulher, não importa a extensão dos danos,sua vida psíquica continua e surge a céu aberto, onde em circunstâncias de grandeemoção ela acabará saindo sob a forma de canção. É então que o mal perpetrado épercebido pelo consciente, e a psique começa sua recuperação.É uma idéia bastante interessante a de que a força vital da mulher possacontinuar a crescer mesmo que ela aparente estar sem vida. Trata-se de umapromessa de que, mesmo sob as condições mais insubstanciais, a força da vidaselvagem mantém nossas idéias vivas e em desenvolvimento debaixo da terra,embora apenas por algum tempo. Com o tempo, elas irão abrir seu caminho até asuperfície. Essa força vital não deixará o assunto em paz até que sejam revelados oparadeiro e as circunstâncias.Como acontece com os pastores na história, isso envolve inspirar o ar e deixarpassar o ar da alma ou pneuma através dos juncos, a fim de saber o verdadeiro estadode coisas da psique e o que deve ser feito em seguida. É essa a função do lamento.Depois, começa a escavação.Embora alguns segredos sejam fortificantes — por exemplo, aqueles usadoscomo parte de uma estratégia para se atingir um objetivo competitivo, ou aquelessegredos agradáveis guardados só pelo prazer de saboreá-los — os segredos davergonha são muito diferentes, tão diferentes quanto uma medalha adornada comfitas e uma faca ensangüentada. Esta última precisa ser trazida à superfície,testemunhada por pessoas compassivas sob condições generosas. Quando a mulherguarda um segredo vergonhoso, é apavorante ver a enorme quantidade de culpa e detortura que ela impõe a si mesma. Toda a culpa e a tortura que ameaçavam se abatersobre a mulher se ela contar o segredo acaba se abatendo do mesmo jeito, apesar deela não o ter revelado a ninguém. Tudo a ataca de dentro.A mulher selvática não consegue conviver com isso. Os segredos vergonhososfazem com que a pessoa viva atormentada. Ela não consegue dormir, pois um segredohumilhante é como um cruel arame farpado que se engancha no seu ventre quandoela tenta sair correndo. Os segredos da vergonha são destrutivos não só da saúdemental da mulher mas também dos seus vínculos com a Mulher Selvagem. A MulherSelvagem escava as coisas, joga-as para o alto, corre atrás delas. Ela não enterra eesquece. Se por acaso enterrar, ela se lembra do que foi enterrado e do local, e nãopassará muito tempo até que ela o desenterre de volta.Manter em segredo a vergonha perturba profundamente a psique. Os segredospassam a irromper nos sonhos. Um analista muitas vezes precisa ir além do conteúdo283manifesto, e às vezes até mesmo do conteúdo arquetípico, de um sonho para ver queele na realidade está divulgando o próprio segredo que a sonhadora não pode e nãoousa dizer em voz alta.Existem muitos sonhos que, ao serem analisados, são vistos como sonhossobre sentimentos vastos e imensos que a pessoa, na vida real, não consegueverbalizar. Alguns desses sonhos dizem respeito aos segredos. Algumas das imagensde sonhos mais comuns são as luzes, de origem elétrica ou não, tremeluzindo e/ou seapagando, sonhos em que a pessoa que sonha adoece por ter comido algo, outros emque a pessoa que sonha não consegue se mexer devido ao perigo e aqueles nos quais apessoa que sonha tenta gritar, mas não sai nenhuma voz.Lembram-se de canto hondo, o canto profundo, e de hambre del alma, a almafaminta? Com o tempo, essas duas forças, através dos sonhos e da própria força davida selvagem da mulher, sobem até a superfície da psique e deixam sair o gritonecessário, o grito que liberta. A mulher descobre, então, a sua voz. Ela canta, revelao segredo e é ouvida. Recupera seus alicerces psíquicos.Esse conto de fadas e outros a ele semelhantes são bálsamos a serem aplicadossobre as feridas secretas. Eles são incentivo, orientação e resolução. O que seencontra por trás da formação da sabedoria dos contos de fadas é o fato de que, tantopara os homens quanto para as mulheres, danos ao self, à alma e à psique causadospor segredos e por outros motivos, fazem parte da vida da maioria das pessoas. Nempodem ser evitadas as cicatrizes subseqüentes. Existe, no entanto, ajuda para essesdanos e existe a cura, sem a menor sombra de dúvida.As feridas são genéricas; existem as que são específicas dos homens e asespecíficas das mulheres. O aborto provocado deixa uma cicatriz. O abortoespontâneo deixa uma cicatriz. Perder um filho de qualquer idade deixa uma cicatriz.Às vezes estar perto de uma outra pessoa ajuda a formar cicatrizes. Podem surgirextensas cicatrizes como conseqüência de escolhas ingênuas, de se cair numaarmadilha, bem como de escolhas acertadas. Existem tantos formatos de cicatrizesquantos são os tipos de ferida psíquica.A repressão de temas secretos cercada de vergonha, medo, raiva, culpa ouhumilhação acaba por isolar todas as outras partes do inconsciente que se encontramperto do local do segredo.3 É como aplicar uma anestesia, digamos, no tornozelo deuma pessoa para fazer uma cirurgia. Uma boa parte da perna acima e abaixo dotornozelo também é afetada pela anestesia, não apresentando mais sensação. É assimque a guarda de um segredo funciona na psique. Ela é um anestésico gotejandoconstantemente por via intravenosa, e que amortece muito mais do que a área emquestão.Não importa a natureza do segredo, não importa quanta dor esteja envolvidana sua guarda, a psique é afetada do mesmo jeito. Eis um exemplo. Uma mulher, cujomarido quarenta anos antes havia cometido suicídio três meses após o casamento, foiaconselhada pela família dele a ocultar não só as provas da grave enfermidadedepressiva de que ele sofria mas também sua profunda raiva e dor emocional daquelaépoca. Em conseqüência disso, ela desenvolveu uma "zona morta" relacionada àaflição dele, à sua própria aflição, bem como sua raiva do estigma cultural vinculadoao acontecimento como um todo.Ela permitiu que a família do marido a traísse ao concordar com a exigência deque nunca deveria revelar o fato de como haviam tratado seu marido com crueldadedurante anos a fio. E a cada ano no aniversário do suicídio do marido, a famíliamantinha um silêncio total. Ninguém ligava para perguntar, "Como está se sentindo?Você gostaria de receber visita hoje? Você sente falta dele? Sei que deve sentir. Vamos284sair! para fazer alguma coisa juntos?" A mulher cavava a sepultura do marido maisuma vez e enterrava sozinha a sua dor, ano após ano.Com o tempo, ela começou a evitar outros dias de comemoração: aniversáriosde casamento e de nascimento, até mesmo o seu próprio. A zona morta foi seespalhando do centro do segredo para fora, não só cobrindo os acontecimentoscomemorativos, mas se estendendo a outros festejos e até além deles. Todos essesacontecimentos típicos das famílias e das amizades eram menosprezados pelamulher, que os considerava uma perda de tempo.No seu inconsciente, porém, eles eram gestos vazios, já que ninguém se haviaaproximado dela nos seus tempos de desespero. Sua dor crônica e a guardavergonhosa daquele segredo haviam corroído aquela área da psique que regulava osrelacionamentos. Na maior parte das vezes, ferimos os outros no ponto, ou bempróximo do ponto, onde nós mesmas fomos feridas.Se, no entanto, a mulher deseja manter todos os seus instintos e ser capaz dese movimentar livremente dentro da própria psique, ela pode revelar seu segredo ouseus segredos a algum ser humano da sua confiança, recontando-os quantas vezesconsiderar necessário. Geralmente uma ferida não se cura apenas com um primeirotratamento, às vezes são necessários cuidados contínuos até que se cure.Quando afinal o segredo se revela, a alma precisa de uma resposta melhor doque "Hummmmm, é mesmo? Que pena!" ou "Pois é, a vida é dura" tanto por parte dequem conta como por parte de quem ouve. Quem conta tem de se esforçar para nãodepreciar a questão. E é uma bênção se quem ouve for uma pessoa que saiba escutarcom o coração comovido e que possa se retrair, estremecer e sentir uma fisgada dedor no coração sem perder o controle. Parte da cura de um segredo reside em contá-lo para que outros se comovam com ele. Dessa forma, a mulher começa a serecuperar da vergonha ao receber o auxílio e os cuidados que lhe faltaram durante odrama original.Em grupos pequenos de mulheres nos quais haja intimidade, realizo esseintercâmbio quando peço às mulheres que se reunam e tragam fotografias das mães,tias, irmãs, companheiras, avós e de outras mulheres que sejam significativas paraelas. Alinhamos todos os retratos. Alguns estão rachados, alguns descascados, algunsmanchados com círculos de café ou de água; alguns foram rasgados e depois coladosnovamente com fita adesiva; alguns estão envoltos em papel celofane. Muitos trazemno verso belas inscrições arcaicas, "Ah, só você!", "Amor para sempre", "Eu e Joe emAtlantic City", "Eu e minha maravilhosa companheira de quarto" ou ainda "Essas sãoas colegas da fábrica".Sugiro que cada mulher comece dizendo, "essas são as mulheres da minhafamília" ou "essas são as mulheres de quem sou herdeira". As mulheres olham paraessas fotos das suas parentas e amigas e, com profunda compaixão, começam acontar as histórias e segredos de cada uma, como lhes chegaram ao conhecimento: agrande alegria, a grande mágoa, o grande esforço, a grande vitória na vida de cadauma delas. Em todo o tempo que passamos juntas, há momentos em que não se podemais ir adiante, pois muitas lágrimas tiram muitos barcos da doca seca e lá saímosnós velejando juntas por algum tempo.4Aqui o que conta é uma verdadeira lavagem de roupas femininas de uma vezpor todas. A proibição universal de se lavar a roupa suja em público é irônica porquegeralmente a "roupa suja" também nunca chega a ser lavada no seio da família. Láembaixo no canto mais escuro do porão, a "roupa suja" da família simplesmente ficaali jogada, dura com seu segredo para sempre. A insistência em se manter segredo éum veneno. Na realidade, ela quer dizer que a mulher não tem nenhum apoio à suavolta para lidar com as questões que lhe causam dor.285Muitas das histórias secretas das mulheres são do tipo que a família e osamigos não têm condição de examinar. Eles não acreditam, tentam fazer pouco doassunto ou se desviar dele, e na realidade é totalmente compreensível que ajamassim. Se eles as examinassem, se as iluminassem, trabalhassem com elas, teriam decompartilhar da dor da mulher. Nenhuma possibilidade de ficar ali parada,controlada. Nenhuma chance de um "Pois é..." seguido de silêncio. Nada de"precisamos tentar nos ocupar para não ficar repisando essas coisas". Não, se acolega, a família, a comunidade de uma mulher são solidárias na dor pela morte damulher dos cabelos dourados, todas terão de acompanhar o cortejo fúnebre. Todasterão de chorar junto ao túmulo. Ninguém vai conseguir se desvencilhar disso, e serámuito duro para todas.Quando a mulher dedica mais atenção à questão da sua própria vergonhasecreta do que outros membros da sua família ou da sua comunidade, é só ela quemsofre conscientemente.5 Nunca se realiza o objetivo psicológico da família, o de reunirforças. No entanto, a natureza selvagem exige que nosso ambiente seja purificado deirritações e ameaças, que aquilo que oprime seja reduzido ao mínimo possível. Porisso, é geralmente apenas uma questão de tempo até que a mulher invoque a coragemdesde os ossos da alma, corte uma flauta de junco e revele o segredo de sua própriavoz.Eis o que fazer com segredos vergonhosos, com base em estudos sobreconselhos arquetípicos extrapolados de dezenas de contos de fadas, como porexemplo "Barba-azul", "Mr. Fox", "Robber Bridegroom", "Mary Culhane",6 entreoutros, nos quais a heroína se recusa a guardar o segredo de uma forma ou de outra efica assim liberada para viver intensamente.Veja o que estiver vendo. Conte para alguém. Nunca é tarde demais. Se vocêachar que não consegue contar o segredo em voz alta, basta fazê-lo por escrito.Escolha uma pessoa que seus instintos julguem ser de confiança. O assunto complexocuja abordagem lhe causa tanta preocupação estará muito melhor no mundo lá forado que preso aqui dentro, supurando. Se preferir, procure um terapeuta que saibalidar com segredos. Ele deverá ser uma pessoa solidária, sem nenhuma necessidadede fazer alarde sobre o que é certo e errado, que sabe a diferença entre a culpa e oremorso e tem conhecimento da natureza da dor e da ressurreição do espírito.Qualquer que seja o segredo, agora compreendemos que ele faz parte dasnossas funções para o resto da vida. O seu resgate cura uma ferida que esteve aberta,mas mesmo assim ficará uma cicatriz. Com mudanças no tempo, a cicatriz pode doere voltará a fazê-lo. Isso faz parte da natureza da verdadeira dor.Durante anos, a psicologia tradicional de todas as linhas considerouequivocadamente que a dor era um processo pelo qual se passava uma vez,preferivelmente no decurso de um ano, e que depois terminava. Havia algo de erradose o indivíduo não conseguisse ou não quisesse completar o processo dentro desseperíodo. Agora, porém, sabemos o que os seres humanos sabem instintivamente háséculos: que certos danos, mágoas e vergonhas nunca acabam de ser lamentados.Sendo a perda de um filho pela morte ou pelo abandono uma das dores maisduradouras, se não for a mais duradoura de todas.Num estudo7 realizado com diários escritos ao longo de muitos anos, Paul C.Rosenblatt, Ph.D., concluiu que as pessoas podem se recuperar da pior parte da dorda sua alma no primeiro ou no segundo ano após uma tragédia, dependendo dossistemas de apoio dessa pessoa, entre outros aspectos. Daí em diante, porém, elacontinua a passar por períodos de dor intensa. Embora esses episódios passem ararear no tempo e a encurtar na sua duração, eles apresentam praticamente a mesmaintensidade de dor quase física da ocasião original.286Esses dados nos ajudam a entender a normalidade da dor a longo prazo.Quando um segredo não é revelado, a dor persiste do mesmo jeito, e por toda a vida.A guarda de segredos prejudica a higiene natural e autocurativa da psique e doespírito. Essa é mais uma razão para revelarmos nossos segredos. A revelação e a dornos salvam da zona morta. Elas nos permitem deixar para trás o culto fatal dossegredos. Podemos chorar e chorar muito, e sair cobertas de lágrimas, mas nãomanchadas de vergonha. Podemos sair daí mais profundas, com o totalreconhecimento de quem somos e plenas de uma nova vida.A Mulher Selvagem nos abraçará enquanto estivermos chorando. Ela é o Selfinstintivo. Ela consegue suportar nossos gritos, nossos uivos, nosso desejo de morrersem morrer. Ela sabe aplicar os melhores remédios nos piores lugares. Ela ficarásussurrando e murmurando nos nossos ouvidos. Ela sentirá dor pela nossa dor. Ela asuportará. Não fugirá. Embora haja cicatrizes inúmeras, é bom lembrar que, emtermos de resistência à tração e capacidade de absorver pressão, uma cicatriz é maisforte do que a pele.O capote expiatórioÀs vezes no meu trabalho com mulheres mostro-lhes como fazer um capoteexpiatório longo, de tecido ou de algum outro material. Um capote expiatório é umcasaco que descreve em detalhes, pintados ou escritos e com todo tipo de coisascosturadas ou pregadas nele, os insultos que a mulher sofreu na sua vida, todas asofensas, calúnias, traumas, feridas, cicatrizes. É a sua afirmação da experiência damulher de ser transformada em bode expiatório. Às vezes demoramos apenas um dia,ou dois para fazer um casaco desses; outras vezes demoramos meses. Ele é deextrema utilidade para a descrição de todas as mágoas, baques e golpes da vida damulher.À princípio, fiz um capote expiatório para mim mesma. Ele logo ficou tãopesado que precisou de um cortejo de musas para carregar a cauda. À minha intençãoera a de fazer esse casaco e mais tarde, depois de ter posto todo esse lixo psíquiconum único objeto psíquico, eu poderia dispersar uma parte da minha antigafragilidade ao incinerá-lo. O que aconteceu, porém, foi que pendurei o casaco no tetodo corredor e cada vez que passava por ele, em vez de me sentir mal, ei| me sentiabem. Descobri que admirava os ovarios da mulher que podia usar um casacodaqueles e ainda estar andando inabalável, cantando, criando e abanando o rabo.Descobri que isso também se aplicava às mulheres com que eu trabalhava. Elasnunca queriam destruir seus capotes expiatórios depois de prontos. Elas queriamguardá-los para sempre, quanto mais repulsivos e sangrentos, melhor. Às vezes,também os chamamos de mantos de combate pois eles são prova da resistência, dasderrotas e das vitórias das mulheres como indivíduos e das suas parentas.É também uma boa idéia que as mulheres contassem sua idade não pelos anosmas pelas marcas de combate. "Qual é a sua idade?" perguntam-me às vezes. "Tenhodezessete marcas de combate", respondo. Geralmente as pessoas não se retraem, mascomeçam alegremente a medir sua idade pelas marcas de combate.Como o povo lakota pintava hieróglifos em peles de animais para registrar osacontecimentos do inverno, e os povoai náuatle, maia e egípcio possuíam seus códicesde registro dos grandes eventos da tribo, das guerras, das vitórias, as mulheres têmseus capotes expiatórios, seus mantos de combate. Fico me perguntando o que nossasnetas e bisnetas irão pensar das nossas vidas assim registradas. Espero que tudo issoprecise ser explicado a elas.287Que não reste nenhuma dúvida a respeito, pois você o conquistou com asdifíceis opções da sua vida. Se alguém lhe perguntar sua nacionalidade, sua origemétnica ou sua linhagem, dê um sorriso enigmático. Responda: "Clã das Cicatrizes".
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Mulheres que Correm com os Lobos
Non-FictionMulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem é um livro da analista junguiana, autora e poetisa Clarissa Pinkola Estés VOU DEIXAR ELE COMPLETO ATÉ O FINAL DO MÊS;