Capítulo 10

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Lei LongWei

Acordei do pesadelo, havia revisto a guerra, meus irmãos dragões tombando, sendo abatidos como aves no período de caça. Dez. Cem. Mil. Fogo jorrado aos inimigos como uma cachoeira. Não era o bastante. Havia veneno nas flechas e nas águas dos córregos. As batalhas eram armadilhas planejadas para nossa queda. A vitória tinha nos abandonado e a morte se tornou nossa companhia. Não havia escapatória, nossa arrogância de acreditar sermos os poderosos e invencíveis, se transformaram em covas cavadas a espera de nossos corpos.

Os mensageiros enviados aos aliados, nunca voltaram.

O Palácio das Nuvens foi tomado e os dragões não tinham mais um lar, estávamos condenados a viver fugindo, caçados como animais que seriam comidos mais tarde. Medo como nunca sentimos antes se infiltrava em nossas veias. A certeza silenciosa do fim era como uma música fúnebre que nunca findava.

Fiz tudo o possível para proteger os acampamentos, cedi metade da minha energia para erguer escudos, mas mesmo quando alcançávamos as Fortalezas Secretas, fomos exterminados. Sempre os levava de uma fortaleza a outra, mas éramos poucos para o mar de cultivadores selvagens que vinham nos assassinar. Foi uma chacina, uma atrás da outra. E mesmo depois de tantos anos, ainda não conseguia chorar, estava seco e tão cansado.

Meus ombros estavam curvos devido aos anos em que carreguei o fardo da sobrevivência do meu povo. Anos sem ver um fio de esperança ou um fim menos deplorável para seres que um dia foram os primeiros no continente. Minha mente estava nublada, ainda envolta nas nuvens de desespero e dor que nunca pareciam se dissipar. Eu me sentia tão cansado, quando essa sina findaria? Quando a desesperança me deixaria? Estou tão cansado. Tão cansado.

Meus olhos focados em um ponto qualquer não registraram quando o imortal se aproximou, só o notei ao ouvi sua voz.

– Posso me aproximar para trocar as bandagens? – o imortal indagou, parecia receoso de se acercar sem permissão.

Pisquei ainda um pouco lento.

O encarei, absorvendo sua imagem, o relevo de suas bochechas, o rosado de seus lábios, o traçado retilíneo de seu nariz e seus olhos, que estavam levemente esverdeados agora. Uma boa aparência não era indicio de nada, já vivi muito e vi lindas rosas serem mais mortíferas que a mais mortal erva venenosa.

Desviei o olhar, meu coração batia descompassado no peito, como um tambor.

– Preciso trocar as suas bandagens e aplicar a medicação para acelerar a sua cura, afinal, creio que seja seu objetivo encontrar seus soldados. – insistiu, perante meu silêncio.

Minha atenção foi atraída para ele, porém não me perdi em sua beleza, foquei no potinho de bambu entre seus dedos elegantes e brancos como jade. Aquilo devia ser algum medicamento cicatrizante ou algum veneno, mesmo que não houvesse muito sentido me matar depois de fazer tanto para me manter vivo. 

E isso apontava para outra questão, porque um imortal manteria seu inimigo jurado vivo? O que ele queria de mim, afinal?

Liu YuanQi ainda esperava uma resposta minha.

– Hum-hum. – concordei.

Ele se aproximou e eu cooperei ao abrir meu hanfu. Rápido, o imortal se colocou a tirar as bandagens ensanguentadas, o corte por baixo estava limpo e sem sinais de infecções. Liu YuanQi acenou com a cabeça, satisfação aquecendo seus olhos. Minha respiração ficou presa nos pulmões, um misto de sentimentos esquisitos nasciam no horizonte desértico do meu coração. Isso me deixava inquieto.

Odeio essas sensações estranhas despertadas com sua mera presença. Odeio esse descontrole, que ameaça a sobrevivência do meu ódio. O que era aquilo? Me concentrei em olhar para o chão.

Nesse ínterim, o imortal abriu o recipiente com a medicina, um cheiro suave de ervas verdes orvalhadas impregnou o ar, era capim de sálvia, excelente para feridas por suas propriedades cicatrizantes. Liu YuanQi colocou um pouco da medicação no centro de sua palma, a mexeu, infundindo um pouco do próprio qi, potencializando o efeito da erva.

Ele se curvou na minha direção, dedos espalhando o remédio pelo meu torso. Por que fazia isso? Eu tentava extraí a verdade de algum lugar do fundo de seus olhos cor de avelã, talvez entrever algum sinal de maldade ou crueldade inerentes ao seu tipo, no entanto só havia um sentimento morno, como um abraço quente no fim de um dia cansativo, uma energia capaz de encher de vitalidade até a mais ressequida das criaturas.

No breve instante que nossos olhares se encontraram, percebi que mesmo um deserto poderia ter seus oásis. Meu coração se encheu daquele sentimento enigmático. As memórias da outra vida me encheram a mente. Mais uma vez, eu era o jovem Bai HuoWu, tinha sua ambição de forjar a mais poderosa espada, sua inventividade efervescente e sua atitude descompromissada.

Eu já fui assim. Quando o reino não me pesava na forma de uma coroa, eu praticamente morava na ferraria das montanhas de fogo, inventando itens, misturando metais. Do aço modelei flores, que mais tarde seriam conhecidas como a Lótus Noturna. Forjei  peça por peça do conhecido jardim Yínsè Diáoshí no Palácio das Nuvens, um lugar feito por mim para demonstrar as infinitas formas que o metal pode tomar. Há belezas a serem feitas sem necessitar que uma espada nasça. Pois nem tudo precisar andar de mãos dadas com a guerra. Claro, era fácil pensar assim quando já havia feito minha conta de espadas imortais.

Mesmo que eu não quisesse admitir, Bai HuoWu era um aspecto meu que havia se perdido nos dias mansos. Tinha esquecido disso. É engraçado como a tranquilidade só é valorizada diante do caos e como acabamos mudando. Estamos sempre mudando.

Liu YuanQi pareceu ter findado o curativo, visto que já prendia a bandagem em seu lugar, ele fez menção de se erguer, minhas mãos se agarraram em seu pulso. O imortal parou de se levantar, suas sobrancelhas se contraíram. Eu não sabia o que exatamente estava fazendo quando falei:

– O que quer de mim, Liu YuanQi?

Seu rosto permanecia frio e insondável, como uma máscara construída na intenção de nunca se mostrar plenamente a ninguém. Isso só denunciava que possuía tantas cicatrizes quanto eu.

– Me salvou, me curou do veneno e continua tão dedicado em me ajudar a recuperar a saúde. Por quê? Há muito aprendi que não existe almoço grátis no mundo. O que você quer?

Me sondou, parecendo ver através da máscara que eu também ostentava, entrevendo o que insistia em negar. Que contrariando minhas palavras anteriores, Bai HuoWu e eu não éramos tão diferentes, como seriamos se somos partes de um mesmo espirito? E a pior de todas as conclusões, era que seu amor pelo imortal me abalava, como tremor de terra é capaz de destruir um pagode de 6 metros de altura.

Um pouco de hesitação se infiltrou em seu rosto imperturbável, aquela aparente dúvida durou pouco tempo, logo certeza encheu suas feições.

– Você me fez amar, deve se responsabilizar por isso.

Ele fechou a distância entre nós, olhos fechados, seus lábios encostaram os meus, meu coração batia rápido, estava prestes a abri um buraco entre minhas costelas. E foi assim, que Liu YuanQi me beijou pela segunda vez.

 E foi assim, que Liu YuanQi me beijou pela segunda vez

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A Espada que Corta as TrevasOnde histórias criam vida. Descubra agora