Capítulo 15
Estava decidido a deixar a cidade.
Não queria voltar a trabalhar na clínica do meu pai. Ainda tinha vontade de fazer a diferença e ajudar os mais necessitados em comunidades pouco assistidas.
Mas sabia que teria que fazer isso em outro lugar.
Contudo, não podia ir embora sem antes conversar com Yanli.
Tinha uma vergonha imensa só de imaginá-la na minha frente, mas precisava esclarecer as coisas, deixar claro — ainda mais — que não tinha ideia de que Lan Zhan era o esposo dela, de que jamais teria me relacionado com ele sabendo disso.
Ensaiei essa conversa por três dias e na sexta-feira finalmente tomei coragem e apareci na lanchonete restaurante em que ela trabalhava.
Assim que cruzei a porta do Pier de Lótus e a avistei parada atrás do balcão, atendendo a um cliente, senti uma vontade desesperadora de sair correndo dali, de simplesmente refazer os meus passos e resolver aquela situação através de uma mensagem de texto.
Mas mantive-me firme e aguardei até que ela finalizasse o atendimento para me aproximar.
— Achei que você não fosse aparecer — ela comentou assim que me notou. Yanli forçou um sorriso e acrescentou: — Eu só não fui até a sua casa porque não queria correr o risco de cruzar com o idiota do Wangji... Se isso acontecesse, um de nós dois não sairia vivo.
Ela foi até a porta e virou a placa, destacando o “fechado”. Sentamo-nos em uma das mesas e fiquei mais tranquilo, já que o tom da nossa conversa obviamente não seria nada pesado, como havia imaginado.
— Eu juro que não sabia que vocês eram casados — fiz questão de começar a conversa ressaltando isso, caso ainda houvesse alguma dúvida da parte dela.
— Eu ia te dizer a mesma coisa... Queria esclarecer isso depois daquela acusação estúpida do Wangji... — ela respondeu, forçando um sorriso. — Fala sério? Eu praticamente forcei você a transar com ele durante as nossas conversas. Então seria no mínimo bem bizarro eu ter conhecimento disso.
Só de me lembrar das conversas que havíamos tido sobre Lan Zhan , ficava envergonhado.
— Agora que eu sei que o Wangji era o seu vizinho, tudo parece ridiculamente óbvio... Não sei como não me dei conta disso antes... — ela prosseguiu, voltando os olhos escuros pra mim. — Você me disse que morava num apartamento... E o Wangji mora num pântano. Ele é o próprio Shrek.
Isso roubou-me um sorriso.
“Um bem bonito” acrescentei mentalmente.
— Você não desconfiou nem quando descobri que ele era casado? — indaguei, chocado com a falha de comunicação entre nós.
— Não, Wei Ying. Eu não tinha ideia de que ele também gostava de homens. E você agia como se ele realmente tivesse uma relação com a esposa, quando tudo o que nós temos é um contrato de casamento.
Era ridículo e, ao mesmo tempo, totalmente compreensivo. Yanli não imaginaria o ex dela enquanto falávamos sobre o meu “vizinho gostoso”, principalmente porque se tratava de uma relação homoafetiva.
— Eu vim pra acabar com esse clima estranho — tornei a falar, realmente feliz pela nossa conversa estar sendo tão tranquila. — Não queria ir embora sem fazer isso.
Imediatamente, ela arregalou os olhos escuros.
— Como assim ir embora?
Fiz uma careta e respondi: — Não tem como eu continuar morando do lado da casa dele...
— Mas vocês já conversaram sobre tudo isso?
Neguei com um aceno de cabeça.
— Não, mas...
— Não deixa de falar com ele, amigo — Yanli me interrompeu. Antes que pudesse questionar o motivo, ela prosseguiu: — Não vou entrar muito nos detalhes, porque acho que é Wangji quem tem que contar essa história para você, mas a verdade é que eu também fui muito injusta com ele.
Aquilo me surpreendeu.
Mas não tanto quanto o que veio a seguir: — Ele é um babaca de carteirinha, mas também tem um coração enorme e sei que ele gosta mesmo de você. Se não gostasse, não teria falado comigo naquele dia, insinuando que estava interferindo na relação de vocês dois.
— Eu não sei...
— Não vá embora antes de conversar com ele — ela tornou a falar. — E, depois que tiver essa conversa, tenta não me detestar também.
Forcei um sorriso e lhe disse: — Não vou.
Encerraria a nossa conversa, mas uma coisa passou pela minha mente e me obrigou a questionar: — Você ainda sente alguma coisa por ele?
Eu estava prestes a pegar as minhas coisas e deixar a cidade, mas, ainda assim, queria saber se existia algum sentimento na relação deles.
— Não, eu não sinto — ela me respondeu com uma expressão séria. Ainda me observando, Yanli acrescentou: — E esse foi o problema com a gente.
As palavras de Yanli ficaram presas em minha mente. Sabia que para alguém como ela — que parecia detestar Lan Zhan com todas as forças — me aconselhar a conversar com ele, significava que eu realmente deveria fazer isso.
No entanto, a simples ideia de cruzar com ele já me deixava desconcertado e aflito.
Sentia-me envergonhado com a simples ideia de assumir os meus sentimentos. Então ensaiei um monólogo na cozinha, pensando em tudo o que diria para ele, tentando elaborar uma forma para que tudo aquilo não se tornasse um motivo de piada. Passei quase uma hora falando sozinho, andando de um lado para o outro e tenho certeza de que perderia mais trinta minutos naquilo, se não tivesse ouvido batidas na porta.
Antes mesmo de abri-la, eu sabia que se tratava de Lan Zhan .
Foi como se pudesse senti-lo próximo de mim.
— Oi — ele sussurrou, dessa vez sem acrescentar o seu costumeiro “doutor”. — Eu sinto muito por ter agido como um babaca — ele tornou a falar de forma rápida, como se não quisesse me dar tempo para fechar a porta em sua cara.
Lan Zhan segurava um prato com uma fatia de bolo de laranja, o mesmo que era vendido na feirinha. — E pra provar isso, eu preparei esse bolo... É uma receita antiga de família... Da minha vozinha.
Isso me despertou um sorriso.
Aquelas eram exatamente as palavras que eu havia usado quando me desculpei com ele.
Como Lan Zhan se apropriou das minhas palavras, nada mais justo do que eu usar as dele.
— Aceita dividir comigo? — disse ao abrir o restante da porta, permitindo com que ele entrasse em meu apartamento.
Lan Zhan usava uma camiseta cinza e uma calça de moletom preta velha, cheia de bolinhas. Sua expressão facial, que costumava ser extremamente confiante, estava um pouco abatida e seus olhos fugiam de mim.
Ele parecia inquieto, como se ainda estivesse formulando exatamente o que me diria.
Fui até a cozinha pegar dois garfos.
Assim que retornei para a sala, sentamo-nos no sofá, com o prato com o bolo nos dividindo.
Dei uma garfada e provei um pedaço, em uma tentativa de evitar ser a pessoa que iniciaria aquela conversa. Felizmente, Lan Zhan não faz a mesma coisa, prolongando ainda mais todo aquele sofrimento.
— Eu não sei o que aquela cobra da Yanli falou pra você, mas quero deixar claro que não é verdade — ele começou, assim que teve a minha atenção.
— Tudo o que eu fiz, foi dar amor e carinho e em troca...
— Na verdade, foi ela quem me convenceu a conversar com você — eu o interrompi, em uma tentativa de impedi-lo de continuar ofendendo a minha amiga. — Eu ainda não tenho ideia do que aconteceu entre vocês, mas quero deixar claro que só não fechei aquela porta na sua cara porque ela praticamente implorou para que eu tivesse uma conversa com você.
A testa franzida do meu vizinho mostrou-me que aquilo também havia sido uma surpresa para ele.
— A Yanli? — ele indagou não escondendo a descrença.
— Sinceramente? É um pouco difícil de acreditar.
Balancei a cabeça, confirmando.
— Eu estava decidido a ir embora, mas não queria fazer isso sem resolver as coisas com ela primeiro. Yanli foi a minha única amiga aqui na cidade... — expliquei, deixando-o ciente da minha intenção de partir. — E ela disse que eu deveria falar com você antes.
— Como assim você estava pensando em ir embora? — ele questionou, como se não tivesse prestado atenção em mais nada. — E ela não é a sua única amiga na cidade.
Nesse instante, eu me senti envergonhado, porque Lan Zhan tinha razão. Tecnicamente, nós éramos amigos e inclusive começamos dessa forma, ainda que existisse interesse sexual de ambos os lados.
— Lembra daquilo que eu disse, antes mesmo da gente começar a se envolver? — Dessa vez, não esperei por uma resposta de Lan Zhan . — Eu não queria um clima estranho com você e...
— Você não precisa ir embora — ele me interrompeu. — Eu prometo não incomodar mais você.
Aparentemente, Lan Zhan ainda não entendia qual era o problema, aquilo que me fazia considerar a ideia de abandonar a cidade, mesmo amando o lugar em que morava e o trabalho que eu exercia.
Eu não queria ter que dizer com todas as letras, entretanto, também queria esclarecer as coisas, realmente me certificar de que ele soubesse dos meus sentimentos, para que lá na frente eu não tivesse margem para nenhum “e se”.
Não queria nada me assombrando.
— É impossível você não me incomodar, Lan Zhan — afirmei, como se isso não fosse óbvio o bastante, como se já não estivesse escrito em minha testa.
— Essa cidade não é grande o suficiente para nós dois.
— Estou pedindo desculpas e juro que não vou mais...
— Eu estou perdidamente apaixonado por você — finalmente confessei, corando diante dos seus olhos dourados claros, que se arregalaram assim que a palavra “apaixonado” deixou os meus lábios. — O seu jogo foi ótimo, você jogou tão bem ao ponto de conseguir mexer com os meus sentimentos.
— O quê? Não, porra... Nada disso foi uma droga de jogo, Wei Ying! — Lan Zhan passou longos segundos em silêncio e isso nos colocou num clima constrangedor, quase como se ele estivesse com pena de mim, que, em minhas próprias palavras, estava perdidamente apaixonado por ele. Ao menos, até que ele prosseguisse:
— Eu amo você. E eu me apaixonei há muito, muito tempo, quando você ainda me via como o seu vizinho nojento.
— Eu nunca vi você como o meu vizinho nojento — deixei isso claro, ainda absorvendo as palavras dele, que mudavam absolutamente tudo. — Você estava mais para o meu vizinho gostoso.
A minha última frase fez com que ele sorrisse.
Um sorriso lindo e contagiante.
— Achei que você enxergasse a nossa relação apenas como sexo fácil. — A expressão do rosto de Lan Zhan tornou a ficar séria e isso fez com que eu enxergasse angústias que ainda não havia notado em seu rosto, preocupações que eu pensei serem só minhas. — Em alguns momentos... Na verdade, em todos eles, você demonstrou que jamais ficaria com um homem como eu. Inclusive era isso o que você enfatizava sempre que terminávamos de transar.
Doeu muito não poder discordar daquela acusação.
Ele não estava errado, eu realmente agi daquela maneira.
E, até então, não tinha me dado conta do quanto tudo aquilo soava ofensivo, era como se eu tivesse dado a entender que ele não era digno de mim.
Uma vez mais, constatava que a minha irmã realmente tinha razão, que eu deixava uma trilha de corações partidos pelo caminho e nem mesmo me dava conta disso.
— Então, o meu ego ferido realmente quis provar um ponto depois daquele mal-entendido envolvendo o meu casamento. — Os olhos dele fixaram-se em mim. — Mas isso não é uma justificativa, eu sei que fui um babaca e quero que saiba que eu sinto muito.
— Eu admito que fui um pouco dramático — assumi, finalmente vendo tudo com mais clareza, sem toda aquela névoa me confundindo. — Agi quase como se você tivesse cometido um crime... Quando, na verdade, você estava apenas agindo de uma maneira muito parecida como eu agiria na mesma situação. Talvez o verdadeiro problema e o que mais mexeu comigo, foi ver as minhas piores partes sendo refletidas em você.
— E é aí que nós discordamos, meu amor. Você não tem partes ruins — ele sussurrou, arrancando-me um sorriso bobo. — Tudo em você é lindo.
Eu queria me jogar em cima daquele homem e beijá-lo.
E foi exatamente o que eu fiz, pulando por cima do bolo e tomando aqueles lábios gostosos pra mim. Subi em cima dele enquanto continuamos a nos beijar, matando toda a saudade que estávamos sentindo.
Uma parte minha queria prosseguir com aquilo, com o sexo maravilhoso de reconciliação que estávamos prestes a ter, mas eu queria e precisava continuar com aquela conversa, ainda tinha muitas dúvidas, principalmente envolvendo o relacionamento dele com a Yanli.
Antes de voltar a me envolver com Lan Zhan , eu queria que tudo estivesse mais do que esclarecido, não queria mais nenhuma dúvida ou mal-entendido.
— Eu quero muito continuar com isso — disse, não disfarçando o meu sorriso safado, tampouco escondia o fato de amar estar por cima daquele seu corpo grande, que parecia se encaixar tão bem ao meu.— Mas antes disso, eu preciso saber que droga de relacionamento é esse que você tem com a Yanli?
(....)
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"UM AMOR DE VIZINHO
FanfictionSINOPSE: Wei Ying é um pediatra que, após sofrer com uma crise de consciência, decide abandonar a vida fútil e luxuosa que levava em Pequim e realmente honrar o seu juramento como médico, ajudando moradores de uma pequena comunidade na cidade de Yil...