capítulo treze

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As primeiras sessões de terapia foram complicadas. Eram dois dias na semana e pelo tempo de 1 hora e meia. No início eu ficava tão tensa com as indagações sutis da Dr. Mirian que a sessão era quase torturante.

Um dia disse a ela que havia perdido tudo. Ela afirmou que tudo englobava muita coisa e perguntou exatamente o que eu tinha perdido. Eu disse que só interessava a mim. Ela disse que minha arrogância era uma forma de autodefesa e eu a usava toda vez que me sentia acuada. Ela tinha razão.

Aos poucos fui me soltando melhor na terapia, ainda me sentia completamente acuada e às vezes até tensa. Toda vez que tinha uma pergunta muito íntima em relação a mim mesma eu me sentia quase sufocada. Lidar comigo estava sendo complicado

A psicóloga me passava muitos textos para interpretar e algumas atividades, umas eram de escrever os sentimentos que determinada situação prococara. Outras eram para definir situações, sonhos ou sentimentos em uma só palavra ou imagem.

A atividade daquela semana era ler e refletir sobre um poema de Carlos Drummond de Andrade. Este se chamava Consolo na praia, e seus primeiros versos eram assim:

Vamos, não chores...
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
[...]

O texto se iniciava com um ar brando de esperança mas aos poucos dava lugar a melancolia e ao cansaço de uma pessoa que não conquistara muitas coisas na vida além de eternas feridas e um cão. Alguém que cansou de lutar e sabia que outros viriam e lutariam pelas mesmas causas e agora almejava descansar, ter um consolo na praia.

Foi a interpretação que tive e o que disse a Mirian naquela tarde ensolarada, dentro daquele escritório climatizado

- É assim que se sente? - ela me olhava seriamente

- Não tenho nem o cão - afirmei com uma risada melancólica mas a mulher a minha frente permaneceu séria

- Mas tens a vida

- Outros lutarão em meu lugar

- Não pelos seus motivos, não do seu jeito

Realmente. Sua resposta fez com que eu me calasse

- Perdeste tudo menos a vida, então não seria melhor começá-la novamente? Ressignificá-la? Redefini-la? Vivê-la de uma forma melhor, tendo aprendido com o passado, pois este não pode ser apagado mas pode servir de lição para que não se repita. Lidando com os traumas ao invés de fugir deles e entendendo melhor a si mesmo no processo de autoidentificação.- suspirou
- Você ainda pode recomeçar querida, nunca é tarde demais se ainda tiver resiliência.

Ela tinha razão.
Ela quase sempre tinha razão
É tempo de recomeço e eu deveria recomeçar
Deveria me dar uma segunda chance

Minha única resposta é assentir com a cabeça completamente pensativa.

Passaram-se alguns minutos, o total silêncio pairava sobre a sala, podia-se ouvir somente o barulho baixo do ar-condicionado. Mirian me olhava como se esperasse alguma resposta

- É que... as vezes eu me sinto como o José do poema de Carlos Drummond. E agora José? Ele perdeu tudo que tinha, perdeu até mesmo a dignidade e o direito de morrer.

Ela me olhou compenetrada por algum tempo. Tinha em média 55 anos, o cabelo era castanho escuro e cacheado, e contornava seu rosto, o comprimento acima dos ombros largos. Em sua face havia traços marcantes, olhos grandes e vívidos. Era alta e andava sempre muito bem vestida.

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