Num acesso de puro pavor, lanço o relógio na caixa e a fecho com força, como se assim pudesse fazê-la e o mundo inteiro desaparecer. Meus olhos sondam freneticamente em busca do responsável por me presentear com esse artefato amaldiçoado, mas não há ninguém à vista. O sol já se pôs no horizonte como uma foice afiada prestes a me decapitar, deixando para trás apenas um vento gelado que chicoteia meu rosto, provocando arrepios que ecoam até a alma.
Fito a caixa odiosa diante de mim. Ela parece dizer: sou real e não vou sumir. Quando a constatação me atinge, um suspiro profundo escapa dos meus lábios. Pego com dificuldade a caixa que parece pesar mais do que todas as minhas angústias. Caixas não deveriam ser tão pesadas assim. A minha vida não deveria ser assim... tantas coisas não deveriam ser como são. Há tantas coisas que fogem ao meu controle, como folhas levadas ao vento.
Praguejo contra a caixa mais uma vez enquanto a coloco sobre a mesa de mogno da sala. Ela parece um intruso deslocado no coração do sobrado ancestral da minha família. O sobrado é um legado de gerações da família Resende, mas foram as memórias dolorosas da morte da minha avó que fizeram minha mãe decidir deixá-lo para trás junto com meu pai. Enquanto eles partiram para Belo Horizonte em busca de uma nova vida, eu permaneci aqui, estudando Licenciatura em História na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
Moro em Ouro Preto, mas o campus do meu curso ficava no Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS) em Mariana, uma cidade vizinha. Foram 4 anos estudando em Mariana e fazendo diariamente o trajeto de 20 minutos entre Ouro Preto e Mariana. Contudo, a distância nunca foi uma preocupação para mim. Ao contrário, considero um privilégio estar em uma cidade que ostenta o título de patrimônio mundial tombado, como no caso de Ouro Preto.
O que mais me fascinou na matriz curricular do meu curso foi a história do Brasil e principalmente de Ouro Preto. Sempre me perguntei por que a história do nosso país é subestimada em comparação com a europeia e a americana. Após me formar, acredito mais ainda que a história do Brasil possui um potencial tão vasto e magnífico quanto qualquer outra.
Por muitos anos acreditei que minha vocação era trazer um pouco do fascínio que eu sentia por história para os meus alunos da Escola Estadual, mas vejo que falhei. Não consegui transmitir meu conhecimento nem despertar o interesse deles pelo que eu tinha para ensinar, compartilhar e contar.
O peso do fracasso é tão avassalador que sinto o ar ser expulso dos meus pulmões. É como se, mais uma vez, estivesse carregando aquela caixa amaldiçoada.
Dizem que devemos seguir nossa paixão. Foi por isso que escolhi me tornar professora de história. Porém, quem me dera tivessem me alertado de que, em algum ponto do caminho, eu começaria a odiar aquilo que uma vez tanto amei. A história, afinal, parece um ciclo interminável de repetições. Aqueles que desconhecem seu próprio passado estão destinados a reviver os mesmos erros que assombraram seus antecessores. Meu desejo era que meus alunos aprendessem, para que não caíssem nas armadilhas do passado, repetindo os equívocos daqueles que vieram antes deles.
Assim como repeti o erro da minha avó...
Mesmo com a caixa fechada, o tic-tac incessante do relógio de bolso ecoa em meus ouvidos, como um lembrete de que meu tempo está se esgotando. Estou prestes a fazer trinta anos e carrego as consequências de uma doença degenerativa, a inexistência de emprego formal e a incapacidade de fazer uma arte que seja reconhecida e valorizada. Olho para o meu passado, presente e futuro e me vejo sem grandes conquistas, sem marcar os itens considerados importantes da lista de afazeres de um adulto de sucesso: os 196 países do mundo permanecem intocados, o casamento e a família ainda são apenas perguntas que os familiares fazem e o sucesso parece uma miragem inalcançável. Sinto como se tivesse dormido durante todo esse tempo, apenas para despertar em meio a um pesadelo que se torna cada vez mais real.
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Uma Sombra no Ouro
FantasyUma mistura dos bestsellers "A biblioteca da meia-noite", "A vida invisível de Addie LaRue" e do clássico "O retrato de Dorian Gray" Às vésperas de seus 30 anos, as únicas conquistas na vida de Cecília Resende foram o diagnóstico de ansiedade e dep...