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CAPÍTULO DOIS


Comecei a manhã seguinte, minha primeira manhã oficial em minha nova casa, bebericando uma xícara de café e mastigando o resto de um donut amanhecido.
Não estava tão acordado quanto tinha imaginado que estaria durante a farra do dia anterior e silenciosamente amaldiçoei as palhaçadas do vizinho. O garoto foi comido, estapeado, depois gozou e dormiu. Yibo, idem. Pelo menos eu deduzi que ele se chamava assim, já que foi o nome que o rapaz que gostava de apanhar ficou repetindo. E, convenhamos, se fosse para ele inventar um nome, havia outros bem mais excitantes do que Yibo para serem gritados no momento do êxtase.
O êxtase… Deus, meus êxtases sumiram…
– Nadica de nada, hein, O? – suspirei, olhando para baixo.
Lá pelo quarto mês de jejum, desatei a falar com meus Os como se fossem uma entidade real. Bem, pareciam reais nos bons e velhos tempos, mas, infelizmente, agora que tinham me abandonado, eu já não sabia se um dia seria capaz de reconhecê-los. É um dia muito, muito triste aquele em que um ômega deixa de identificar seus próprios orgasmos, ruminei em pensamento enquanto contemplava melancolicamente os telhados de San Francisco através da janela aberta.
Estiquei as pernas e fui lavar a xícara de café. Depois de colocá-la no escorredor,passei a mão nos cabelos e reparei no caos que me rodeava. Havia planejado tudo com cuidado, etiquetado as caixas, repetido inúmeras vezes ao idiota da mudança que, se estava escrito
COZINHA, não significava BANHEIRO, porém nada disso importou: o apartamento estava uma zona. Por sorte, na noite anterior, tinha me lembrado de separar minha xícara favorita.
– O que você acha, Clive? Começamos por aqui ou pela sala de estar?
Ele estava aconchegado no peitoril da janela. Devo admitir que, quando procurava um novo lugar para morar, eu sempre avaliava os peitoris. Clive adorava observar o mundo lá fora, e era legal avistá-lo à minha espera ao voltar para casa.
Naquele exato momento, ele me fitou e pareceu acenar em direção à sala.
– Tudo bem, pela sala, então – falei, notando que só pronunciara três coisas desde que acordara e que todas as palavras anteriores haviam sido dirigidas ao meu pênis. Puxa…
Cerca de vinte minutos mais tarde, Clive começou a mirar um pombo, e eu, que estava organizando os DVDs, ouvi vozes na entrada do prédio. Meus vizinhos barulhentos! Corri até a porta, quase tropeçando numa caixa, e encostei o olho no visor para observar a porta ao fundo do corredor. Que depravado que eu sou. Mas não fiz nenhum esforço para parar de bisbilhotar.
Não conseguia enxergar claramente, mas era capaz de ouvir a conversa: a voz masculina baixa e acariciadora, seguida pelos inconfundíveis suspiros de seu interlocutor.
– Hummmm, Yibo, a noite de ontem foi fantástica.
– Acho que esta manhã também foi – ele disse, dando no carinha o que pareceu um beijaço.
Bem. Esta manhã, eles devem ter usado outro cômodo. Não ouvi nada. Me espremi ainda mais contra o olho mágico. Depravado.
– Também foi! Você me telefona? – perguntou ele, inclinando-se para outro beijo.
– Claro. Ligo quando voltar à cidade – ele prometeu, desferindo um tapinha no bumbum do homem enquanto  dava uma risadinha e se virava para ir embora.
Parecia que o garoto não estava com essa bola toda. Tchauzinho, Castigado! O ângulo não me permitia ver direito o tal Yibo, que entrou em seu apartamento antes que eu pudesse ter uma ideia precisa de sua aparência. Interessante. Então, esse jovem não mora com ele.
Não escutei nenhum “Eu te amo” quando ele foi embora, mas os dois pareciam muito à vontade. Masquei distraidamente a ponta da camisa. Eles tinham de estar à vontade, com todas aquelas bofetadas.
Varrendo da cabeça pensamentos de tapas e de Yibo, voltei à minha coleção de DVDs.
Yibo, o Carrasco. Avancei à letra H nos títulos dos filmes.
Uma hora mais tarde, eu posicionava Vestida para casar e A verdade nua e crua, quando ouvi uma batida. Alguma coisa estava sendo arrastada no corredor conforme eu me aproximava da porta; reprimi um sorriso.
– Cuidado com isso, sua idiota – uma voz xingou.
– Ah, cala essa boca. Para de ser mandona – uma segunda voz resmungou.
Revirando os olhos, abri a porta e me deparei com minhas duas melhores amigas, Sophia e Mimi, que seguravam uma grande caixa.
– Não briguem, senhoras. Vocês duas são lindas. – Dei uma risada e arqueei uma sobrancelha para elas.
– Há-há, muito engraçado – Mimi respondeu, cambaleando para dentro do apartamento.
– Que diabo é isso? Não acredito que vocês carregaram esse troço por quatro lances de escada! – Minhas amigas não faziam nenhum tipo de trabalho manual se podiam arrumar alguém para fazê-lo por elas.
– Acredite, nós ficamos esperando que alguém desse uma mãozinha, mas não tivemos sorte. Então, o jeito foi carregarmos nós mesmas. Feliz casa nova! – disse Sophia. Elas pousaram a caixa, e Sophia se jogou na poltrona, perto da lareira.
– É, mas vê se para de ficar mudando de casa. A gente já está cansada de comprar presentes pra você! – Mimi riu, estendendo-se no sofá e cobrindo dramaticamente o rosto com as mãos.
Cutuquei a caixa com a ponta do pé e perguntei:
– Afinal, o que tem aqui? E eu nunca falei que vocês precisavam comprar nada. O liquidificador do ano passado, por exemplo, totalmente desnecessário.
– Não seja ingrato. Abre – Sophia ordenou.
Suspirei e sentei no chão, em frente ao presente. Soube que era da Williams – Sonoma por causa da fita com o logotipo e do pequeno abacaxi amarrado a ela. O que quer que a caixa contivesse, era algo pesado.
– Ah, não. O que as duas aprontaram? – perguntei, reparando numa piscada de olho de Mimi para Sophia. Ao desatar a fita e abrir o pacote, fiquei radiante com o que encontrei.
– Meninas, isso é demais!
– A gente sabe a saudade que você tem da antiga – gracejou Mimi, sorrindo para mim.
Anos atrás, eu havia herdado uma velha batedeira Kitchen Aid de uma falecida tia-avó. A máquina tinha mais de quarenta anos, mas funcionava muitíssimo bem. Aqueles aparelhos eram fabricados para durar, e o meu resistira até poucos meses atrás, quando finalmente se aniquilou com um estardalhaço. Uma tarde, enquanto eu batia uma fornada de pão, ela tremeu e desatou a fumegar e, por mais que tenha odiado fazer isso, joguei -a fora.
Agora, enquanto fitava a caixa aberta e a batedeira de aço inoxidável novinha, cintilante, que me devolvia o olhar, visões de biscoitos e tortas começaram a dançar em minha cabeça.
– Meninas, é linda – arfei, admirando meu novo bebê. Ergui-a em reverência. Afagando-a com as mãos, deslizando os dedos para sentir suas linhas suaves, me deliciei com o contato do metal frio contra minha pele. Suspirei levemente e até a abracei.
– Vocês querem ficar sozinhos? – perguntou Sophia.
– Não, tudo bem. Prefiro que vocês fiquem para testemunhar nosso amor. Afinal, este é, provavelmente, o único instrumento mecânico que me dará prazer no futuro próximo. Obrigado, meninas. É muito caro, mas realmente amei.
Clive se aproximou, cheirou a batedeira e imediatamente saltou para dentro da caixa vazia.
– Prometa que vai fazer coisas gostosas para nós, e tudo terá valido a pena, querido.
– Mimi então se levantou e olhou para mim com olhos ávidos.
– O quê? – perguntei, cauteloso.
– Zhan, já posso começar com suas gavetas, por favor? – ela perguntou, avançando rumo ao interior do apartamento com passos hesitantes.
– Pode começar o que com minhas gavetas? – falei, apertando um pouco mais o cordão da minha calça.
– Sua cozinha! Estou morrendo de vontade de arrumar tudo! – Mimi exclamou, sapateando no lugar.
– Ah, tudo bem, que se dane. Divirta-se! Feliz Natal, sua doida – declarei, e Mimi saiu correndo triunfalmente.
Mimi era organizadora profissional. Quando nós três estávamos em Berkeley, ela deixava Sophia e a mim malucos com seus surtos de TOC e sua atenção maníaca para o detalhe. Um dia, Sophia sugeriu que Mimi fizesse daquilo uma profissão, e foi exatamente o que ela fez após se formar. Agora, atuava em toda San Francisco, ajudando famílias a organizar suas tranqueiras. A empresa de design para a qual eu trabalhava de vez em quando se consultava com Mimi, que chegou até a aparecer na TV. Aquela carreira lhe caiu como uma luva.
Assim, deixei Mimi fazer o que ela sabia, consciente de que minhas coisas ficariam perfeitamente arrumadas e eu, devidamente abismado. Sophia e eu permanecemos na sala, ela espiando os DVDs e dando risada dos filmes a que eu tinha assistido nos últimos anos.
Mais tarde, naquela mesma noite, depois que minhas amigas se foram, me afundei no sofá da sala, ao lado de Clive, para assistir a reprises de Barefoot Contessa, no Food Network. Enquanto sonhava com os quitutes que faria com a minha nova batedeira – e lembrava que, um dia, desejei uma cozinha como a de Ina Garten –, ouvi passos no corredor e duas vozes. Estreitei os olhos na direção de Clive. As palmadas estavam de volta.
Pulando do sofá, perscrutei de novo pelo olho mágico para tentar ver meu vizinho. E de novo o perdi; só avistei suas costas quando ele entrou em seu apartamento atrás de uma mulher bastante alta e de cabelo castanho.
Interessante. Duas pessoas diferentes em dois dias. Galinha.
Vi a porta fechar e senti Clive se enroscar em minhas pernas, ronronando.
– Não, você não pode sair, tolinho – disse, me abaixando para pegá-lo. Esfreguei seu pelo sedoso em minha bochecha e sorri quando Clive se recostou em meus braços. Ele era o galinha por aqui; deitaria com qualquer uma que coçasse sua barriga.
Regressando ao sofá, assisti à BarefootCondessa ensinar a recepcionar uma dinner party nos Hamptons com uma elegância simples – e uma conta bancária do tamanho dos Hamptons.
Poucas horas depois, com a marca da almofada do sofá impressa profundamente em meu rosto, tomei o rumo do quarto para dormir. Mimi tinha organizado meu closet com tanta eficiência, que tudo o que me restou fazer foi pendurar umas fotografias e arrumar uma miscelânea ou outra. Bastante deliberadamente, retirei da prateleira que ficava sobre a cama o restante dos retratos. Não pretendia correr riscos esta noite. Parei no meio do quarto e tentei ouvir algum ruído vindo do vizinho. Tudo calmo nessa trincheira. Até agora, tudo certo. Talvez a noite anterior não tivesse passado de um caso isolado.
Enquanto me arrumava para dormir, olhei as fotos da minha família e dos meus amigos. Meus pais e eu esquiando no lago Tahoe. Minhas amigas e eu na Coit Tower. Sophia adorava tirar fotografias perto de qualquer coisa fálica. Ela era violoncelista na Orquestra Sinfônica de San Francisco e, embora tivesse estado próxima de instrumentos musicais durante toda a vida, jamais conseguia evitar uma piada quando via uma flauta. Era perturbada.
No momento, nós três estávamos solteiros, algo raro. Geralmente, pelo menos um de nós namorava, mas, desde que Sophia terminara um relacionamento, alguns meses antes, amargávamos um jejum. Para sorte das minhas amigas, porém, sua privação não era tão severa quanto a minha. Até onde eu sabia, elas ainda reconheciam seus respectivos Os.
Com um calafrio, lembrei a noite em que O e eu nos separamos. Eu havia tido uma série de primeiros encontros lastimáveis e me encontrava tão frustrado sexualmente, que me permiti ir ao apartamento de um cara que eu não tinha a menor intenção de ver novamente. Não que fosse contra ficar por uma noite. Já tinha feito a caminhada da vergonha em muitas manhãs. Mas aquele cara? Deveria ter pensado melhor. He Peng, blá-blá-blá. A família dele tinha uma rede de pizzarias em toda a Costa Oeste. Parece legal, certo? Só parece. Peng era simpático, mas chato. Eu não ficava com um homem havia algum tempo, então, depois de vários martínis e de uma conversa animada no carro, cedi e resolvi dar uma chance a ele.
Bem, até aquele ponto, eu compartilhava a velha teoria de que sexo é como pizza: mesmo quando é ruim, é bom. Passei a odiar pizza. Por várias razões.
Foi a pior espécie de sexo. Do tipo metralhadora: rápido, rápido, rápido. Trinta segundos nos mamilos, sessenta segundos em um ponto localizado a alguns centímetros do lugar certo, e lá dentro. E fora. E dentro. E fora. E dentro. E fora.
Pelo menos, acabou depressa, certo? Errado. O horror continuou por meses a fio. Bem, não exatamente. Mas foram quase trinta minutos. De dentro. E fora. E dentro. E fora. Minha bunda parecia ter sido fustigada por um jato de areia.
Quando ele finalmente acabou – e gritou “Bom demais!”, antes de desmaiar em cima de mim –, eu já tinha reorganizado mentalmente todos meus temperos e catalogava os produtos de limpeza que ficavam debaixo da pia da cozinha. Me enfiei na roupa, o que não demorou muito, já que ainda estava quase todo vestido, e me mandei.
Na noite seguinte, depois de deixar minha poupança se recobrar, decidi regar o Xiaozinho com uma longa sessão de autoamor, protagonizada por seu amante imaginário favorito, George Clooney, no papel do dr. Ross. No entanto, para minha grande consternação, O havia abandonado o recinto. Encolhi os ombros, conjecturando que talvez ele apenas precisasse de uma pausa, ainda traumatizado pela experiência do pizzaiolo Peng.
Mas na noite seguinte? Nada de O. Nem sinal dele naquela semana, ou na próxima. Quando as semanas viraram um mês, e os meses se esticaram e esticaram, eu desenvolvi um profundo e vulcânico ódio por He Peng e sua foda metralhadora…
Sacudi a cabeça, eliminando os pensamentos sobre O, e rastejei até a cama. Clive esperou que eu me acomodasse antes de se aninhar atrás de meus joelhos. Ainda deixou escapar um último ronrom quando apaguei a luz.
– Boa noite, senhor Clive – murmurei e caí no sono.

Tum.
– Oh, meu Deus!
Tum, tum.
– Oh, oh!
Incrível.
Despertei mais rapidamente desta vez, pois sabia o que estava ouvindo. Sentei na cama e olhei ferozmente para trás. Ela ainda se encontrava a uma distância segura da parede, por isso não senti nenhum movimento, mas era óbvio que algo se mexia no vizinho.
E, então, eu ouvi… um assobio?
Pousei o olhar em Clive, cujo rabo formava um verdadeiro pompom. Ele arqueou o dorso e vagueou para frente e para trás no pé da cama.
– Ei, carinha. Está tudo bem. Só temos um vizinho barulhento – apaziguei, estendendo a mão. Foi então que ouvi:
– Miau.
Estiquei o pescoço para escutar melhor. Examinei Clive, que olhou para trás como se dissesse: “Não fui eu”.
– Miau! Oh, meu Deus. Miau…
A garota no apartamento ao lado estava miando. O que diabo meu vizinho estava aprontando para conseguir isso?
A essa altura do campeonato, Clive surtou completamente e se lançou na direção da parede. Literalmente, a escalou para tentar alcançar a fonte do ruído, acrescentando seus próprios miados ao coro.
– Oh, sim, assim mesmo, Yibo! Ai… Miau! Miau, miau, miau!
Virgem Santíssima, uma gata no cio de um lado da parede, um gato descontrolado do outro. A moça tinha sotaque, mas eu não consegui decifrá-lo. Europa oriental, com toda a certeza. Checa? Polonesa?
Era isso mesmo? Eu me encontrava plenamente desperto à uma e dezesseis da madrugada, tentando descobrir a nacionalidade da mulher que estava sendo comida no apartamento ao lado?
Tentei tranquilizar Clive, porém não funcionou. Ele era castrado, mas ainda um garoto – e queria aquilo que havia do outro lado da parede. Continuou miando, seus miados se misturando com os da mulher, até que, para não chorar, comecei a rir da comicidade da situação. Minha vida havia se tornado um espetáculo do absurdo, e com um coro felino.
Ouvi Yibo arquejar e tentei me recompor. Sua voz era baixa e rouca, e, embora Clive e a mulher continuassem clamando um pelo outro, escutei apenas Yibo. Ele gemeu, e as pancadas na parede começaram. Lá vinha Yibo.
A mulher miava cada vez mais alto conforme indubitavelmente marchava rumo ao seu clímax. Seus miados se tornaram gritos indecifráveis, e ela finalmente berrou:
– Da! Da! Da!
Ah. Era russa. Pelo amor de São Petersburgo!
Uma pancada derradeira, um gemido derradeiro – e um miado derradeiro. Depois, um abençoado e completo silêncio. Exceto por Clive, que continuou sofrendo por seu amor perdido até as quatro da manhã.
A guerra fria estava de volta.

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Amor entre as paredes ( pt UmOnde histórias criam vida. Descubra agora