Bati à porta de Tanner, quase esperando que ele não abrisse. A noite tinha sido cansativa, e eu
queria me esconder debaixo das cobertas.
Mas, claro, seu mordomo abriu a porta e a escancarou de tal maneira que Tanner me viu antes mesmo de eu ser anunciada.
Ele parecia mesmo tão mal quanto falaram. Um dos olhos estava inchado e envolto em diversos tons de roxo. O outro lado da cabeça estava enfaixado, bem como os nós de sua mão direita.
— Camila! — ele exclamou, saltando da cama. E logo depois levou a mão às costelas. —
Perdão. Quis dizer “Alteza”.
— Pode ir — disse de passagem ao mordomo enquanto caminhava a passos rápidos na direção de Tanner.
— Sente-se — ordenei. — Você não deveria estar na ala hospitalar?
Ele negou com a cabeça e voltou a deitar.
— Já fui medicado, e me disseram que era melhor descansar no quarto.
— Como se sente? — perguntei, embora soubesse que estava dolorido.
— Fora os machucados? — perguntou. — Humilhado.
— Posso sentar? — perguntei, apontando para um lugar ao lado dele na beira da cama.
— Claro.
Não sabia por onde começar. Não queria mandá-lo embora naquele momento, em parte por caridade. Dei uma olhada nos formulários de Nicholas e Tanner antes de conversar com meu pai. De fato, Tanner deixara na ficha várias indicações de como era sua vida. No geral, eu procurava interesses comuns ou assuntos sobre os quais falar, e assim perdi detalhes importantes a respeito dele.
Ele morava em Clermont e era salva-vidas na praia, o que explicava a pele dourada. Dava a impressão de que o salário não era suficiente para sustentar o resto da família, embora a situação não ficasse muita clara no papel. A mãe não morava em casa, mas eu não sabia se isso significava ou não que ela tinha morrido. O pai dele estava no estágio terminal de uma doença e imaginei que não devia contribuir com as finanças.
Além disso, se eu tivesse prestado um pouco de atenção, teria notado como as bochechas de
Tanner estavam mais cheias no palácio, onde ele se alimentava direito, do que em sua foto do
formulário.
Eu queria que ele ficasse. Que não perdesse a ajuda de custo. Queria que ele roubasse algumas coisas do seu quarto e vendesse ao voltar para casa.
Mas pedir a ele para ficar significava lhe dar esperança.
— Ouça — ele começou. — Vou entender se a senhorita tiver que me mandar embora.
Sério. Não quero partir, mas conheço as regras. É só que… Não quero sair deixando a mesma
impressão que Nicholas ou Charlie. Tente não pensar mal de mim quando eu for, certo?
— Não pensarei e nem penso agora.
Tanner fixou os olhos em mim e abriu um sorriso triste.
— Nunca tive oportunidade de lhe dizer tantas coisas… Por exemplo: queria ser capaz de
controlar um ambiente como a senhorita. É tão impressionante. E seus olhos brilham quando a
senhorita faz uma piada. É muito lindo.
— Verdade? Espere: eu faço piada?
Ele riu.
— Sim. Bom, elas são bem sutis, mas seus olhos revelam. E dá para reparar como você gosta de nos provocar, como no jogo do outro dia.
Abri um sorriso.
— Foi divertido. Esta noite também, com exceção do final.
— Jamais esquecerei sua expressão ao morder aquele aspargo.
Apertei os lábios, convencida de que a minha expressão e a dele tinham sido similares. O que melhorou as coisas foi saber o quanto ele tinha se esforçado e que não tinha ficado tão chateado com o resultado. A única coisa que o magoava no momento era a preocupação de que eu não o considerasse um cavalheiro.
— Tanner, vou lhe fazer algumas perguntas e preciso que você seja totalmente sincero comigo.
Se suspeitar que está mentindo, já era e você vai embora o quanto antes.
Ele engoliu em seco, e a expressão mais tranquila dos últimos minutos desapareceu de seu rosto.
— Dou a minha palavra — ele garantiu.
Acreditei nele.
— Muito bem. Pode me falar sobre seu pai?
Ele deu um suspiro. Claramente não esperava que a conversa tomasse esse rumo.
— Humm, ele está doente, acho que a senhorita sabe. Ele tem câncer. Ainda consegue se virar bem. Até trabalha, mas agora só meio período. Precisa dormir bastante. Quando ficou doente, minha mãe foi embora… e não quero mesmo falar dela, se a senhorita não se importar.
— Não me importo.
Ele baixou os olhos antes de continuar:
— Tenho um irmão e uma irmã; eles não param de dizer que ela vai voltar, mas sei que não vai acontecer. Se acontecer, eu vou embora.
— Não precisamos mesmo falar dela, Tanner.
— Perdão. Sabe, pensei que a pior parte de vir para cá seria a distância, mas o que me deixa pior, o que mais dói é ver sua família.
Ele fez uma pausa e usou a mão boa para coçar a cabeça.
— Seus pais ainda se amam, e seus irmãos olham para a senhorita como se fosse o céu na
terra. Não tenho nada nem perto disso.
Pus a mão em suas costas e disse:
— Não somos perfeitos. Juro. E parece que você e seu pai têm uma relação especial.
— Temos — ele confirmou, olhando para mim. — Desculpe, não queria ficar desse jeito.
Não falo muito sobre a minha família.
— Tudo bem. Tenho outras perguntas.
Ele sentou na cama; dava para ver que o movimento tinha doído. Retirei a mão das costas dele e olhei para o lado.
— Na verdade, talvez esta seja difícil também — avisei.
— Vá em frente — ele disse com um sorriso.
— Tudo bem… Você veio aqui por minha causa ou para escapar deles?
Tanner fez uma pausa e cravou os olhos nos meus.
— As duas coisas. Eu amo meu pai. Não consigo nem expressar o quanto ele é importante para mim, e não me importo de cuidar dele, de verdade. Mas também é um pouco cansativo.
Para mim, o palácio é como um período de férias na maior parte do tempo. Também acho que meu irmão e minha irmã começaram a valorizar mais meu esforço, o que é um incentivo em certo sentido.
Ele balançou a cabeça antes de continuar:
— E então vem a senhorita. Veja, a senhorita sabe que vivo à espera do dia do pagamento.
E que venho de uma família falida. Tenho consciência de que não sou especial — ele levou a mão ao peito e, de repente, ficou tímido. — Mas, sabe, tenho assistido à senhorita a minha
vida inteira, e sempre te achei tão esperta e linda. Não sei se tenho a menor chance de ser
escolhido… mas pelo menos tinha que me inscrever. Não sei. Só pensei que, se chegasse até aqui, daria um jeito de mostrar que valeria a pena me dar uma chance.
Nesse momento, Tanner fez uma pausa e deu de ombros.
— E então eu me envolvi numa briga. Acho que acaba por aqui.
Eu odiava a frustração em sua voz. Não queria me importar. Sabia que deixá-lo se aproximar acabaria mal. Não sabia explicar o motivo, mas tinha certeza de que se permitisse a qualquer um desses garotos cruzar um certo limite de intimidade, os resultados seriam desastrosos. Então por que — por quê — eu não os impedia de chegar perto?
— Tenho outra pergunta.
— Claro — ele replicou, derrotado.
— Como é trabalhar o dia todo na praia?
Ele nem tentou conter o sorriso.
— Maravilhoso. O oceano é fascinante. É quase como se tivesse humores diferentes em dias diferentes. Por exemplo, há dias em que o mar fica parado, e há outros em que fica muito
agitado. Estou tão feliz por Angeles ser quente o tempo todo. Do contrário, acho que não conseguiria aguentar.
— Eu também adoro o clima daqui, mas não vou à praia com frequência. Meus pais não gostam, e as pessoas acabam se amontoando em torno de Dylan e de mim quando vamos sozinhos. É um pouco chato.
Ele me cutucou de leve.
— Se um dia vierem a Clermont, procurem por mim. Podem alugar uma praia particular e nadar e relaxar até dizer chega.
Suspirei, sonhando com aquilo.
— Seria perfeito.
— É sério. É o mínimo que posso fazer.
Olhei para as minhas mãos e depois para o rosto esperançoso de Tanner.
— Que tal o seguinte: se você ficar entre os, digamos, três finalistas, poderíamos ir até lá
juntos e alugar uma praia e talvez eu pudesse conhecer seu pai.
O rosto dele congelou com o impacto da notícia.
— Eu não vou embora?
— Não foi culpa sua o que aconteceu esta noite. E admiro sua sinceridade. Então que tal ficar um pouco mais? Veremos como as coisas avançam.
— Eu adoraria.
— Muito bem, então.
Me levantei, sentindo muitas coisas. Antes daquela noite, Tanner estava longe de ser uma
opção para mim. Depois daquilo, eu não via a hora de encontrá-lo de novo.
— Desculpe a pressa, mas tenho muitas coisas para preparar para amanhã — me despedi.
— Posso imaginar — ele disse, enquanto me acompanhava até a porta. — Obrigado, Alteza, por me dar uma chance.
— Era tudo o que você queria, certo? — perguntei, sorrindo. — E pode me chamar de
Camila mesmo.
Ele abriu um sorriso de orelha a orelha e usou a mão boa para pegar a minha. Então, deu o mais suave dos beijos entre os meus dedos.
— Boa noite, Camila. E mais uma vez obrigado.
Acenei brevemente com a cabeça antes de sair do quarto. Mais um assunto resolvido… Mas
a manhã seguinte traria outros mil.
A fotógrafa do encontro do dia anterior tinha sido tão discreta que nem percebi que ela ainda estava lá quando a briga começou. Tanner e Nicholas eram matéria de capa, e a manchete
contava que o primeiro tinha sido expulso e o segundo, poupado. Havia outras fotos também.
Eu, ao lado de Lawrence, triturando açafrão, e também ao lado de Alex, que traduzia algo para
Charles. Mas tudo isso era eclipsado pela fúria no rosto de Nicholas ao se lançar sobre Tanner.
Ignorei aquelas fotos e me concentrei nas menores, em que eu aparecia com os outros,
recortando-as do jornal para guardá-las, não sei bem por quê. Acabei por enfiá-las na gaveta
junto com a gravata horrorosa de Lawrence.
Fui tomar café sentindo o peso dos olhares de todos. Geralmente, isso não era um problema
para mim, mas como os garotos estavam supercuriosos com a briga, e meus pais,
superpreocupados, me senti soterrada pelas palavras não ditas.
Comecei a pensar se não teria exagerado na noite anterior, se pareci acusar meus pais de
alguma coisa. Minha intenção tinha sido explicar como a Seleção podia ser dolorosa e
exaustiva, não culpá-los por ela. Ainda assim, por menos que eu quisesse participar, sabia que cumpriria com o prometido. Os socos de Nicholas superaram qualquer outro problema no país, pelo menos por um dia.
— O que aconteceu? — Sofia sussurrou.
— Nada.
— Mentira. A mamãe e o papai estão esquisitos hoje.
Espiei os dois. Meu pai não parava de coçar a sobrancelha, e minha mãe brincava com a
comida no prato.
— Coisa de adulto. Você não entenderia — eu disse, suspirando.
Sofia fez uma cara de tédio.
— Não fale assim comigo, Camila. Tenho catorze anos, não quatro. Leio todos os jornais e presto atenção nas edições do Jornal Oficial. Falo mais línguas que você e aprendo tudo o que você precisa saber sem ser obrigado. Não aja como se fosse melhor que eu. Eu sou uma princesa.
Suspirei de novo.
— Sim, mas eu serei a rainha — corrigi enquanto dava um gole no café. Eu realmente não precisava daquilo tão cedo.
— E seu nome algum dia aparecerá em um livro de história. Um moleque de dez anos entediado vai decorá-lo para a prova e depois esquecer tudo a seu respeito. Você tem um emprego, como qualquer outra pessoa. Pare de agir como se ser rainha fizesse de você alguém melhor ou pior que os outros.
Fiquei sem palavras. Era isso que Sofia pensava mesmo de mim?
Era isso que todos pensavam de mim?
Minha intenção era ser forte naquele dia, mostrar aos meus pais que eu realmente cumpriria o combinado e provar aos garotos que situações como a briga da noite anterior não me abalavam. Mas as palavras de Sofia fizeram meus esforços parecerem inúteis. Assim como
eu mesma.
Levantei para sair, tentando lembrar o que tinha que pegar no escritório. Com certeza não
conseguiria trabalhar lá naquele dia.
— Ei, Camila, espere.
Era Lawrence, que corria para me alcançar. Eu nem tinha olhado para ele quando entrei na sala para o café. Seus lábios estavam um pouco inchados, mas de resto ele parecia bem.
— Está tudo certo? — ele perguntou.
Fiz que sim com a cabeça… Depois que não.
— Na verdade, não sei — respondi finalmente.
Ele pôs as mãos nos meus ombros e me consolou.
— Está tudo bem.
Eu estava tão perdida que dei um beijo nele. Sabia que isso faria tudo parar por um minuto.
— Ei! — ele exclamou, recuando.
— Desculpe! Eu só…
Ele me agarrou pelo pulso, me levou para a sala mais próxima, fechou a porta com força e me empurrou contra a parede. Me beijou com mais força do que eu tinha feito, aparentemente sem se incomodar com o lábio machucado.
— O que foi isso? — ele disse, ofegante.
— Não quero pensar. Só me beije.
Sem mais nenhuma palavra, Lawrence me puxou para junto dele e enfiou as mãos em meu cabelo.
Agarrei sua camisa e o segurei com força.
Deu certo. Enquanto estávamos ali agarrados, todas as minhas preocupações desapareceram. Seus lábios passaram da minha boca para o meu pescoço. Ele me beijava de um jeito novo. Mais agressivo, mais exigente, roubando toda a minha concentração. Sem nem pensar, puxei a camisa dele para cima.
Ele riu maliciosamente no meu ouvido.
— Bom, se vamos tirar a roupa, temos que ir para um quarto. E você deveria saber meu
segundo nome.
— É Marcus? Matthew? Acho que começa com A.
— Não passou nem perto.
Suspirei e o soltei.
— Que bom.
Ele recuou, ainda com os braços na minha cintura, e sorriu.
— Você está bem? Sei que a noite passada foi meio tensa.
— É que eu não esperava. Foram os aspargos… O moleque literalmente socou o outro por causa de um vegetal.
Lawrence riu.
— Viu? Por isso é melhor ficar com a manteiga.
— Você e sua manteiga idiota. — Balancei a cabeça e corri o dedo pelo peito dele. — Sinto muito pelo seu lábio. Algum outro lugar dói?
— Minha barriga. Ele me deu umas cotoveladas quando tentou escapar, mas fiquei até surpreso por não ter sido pior. O olho de Charles deve estar doendo bastante. Ainda bem que Nicholas não acertou um centímetro mais para baixo.
Fiz uma careta ao imaginar o quão ruim as coisas poderiam ter ficado.
— Lawrence, você teria enxotado os dois? Se estivesse no meu lugar, quer dizer.
— Acho que teria pensado na possibilidade de expulsar até Charles e eu mesmo, se fosse você — ele respondeu.
— Mas vocês tentaram acabar com a briga.
Ele ergueu o dedo para explicar:
— Verdade. Você sabe porque estava lá. Mas os outros viram os jornais, e as fotos dão a impressão de que os quatro estavam envolvidos.
— Então permitir que você, Tanner e Charles fiquem pode passar a ideia de que vocês saíram
impunes?
— E que outros também poderiam sair impunes no futuro.
— O dia só piora — suspirei, passando a mão no cabelo e me escorando na parede.
— Eu beijo tão mal assim?
Comecei a rir ao lembrar daquela noite no meu quarto. Fiquei tão desconfortável quando Lawrence quis conversar comigo, mas já não sabia ao certo por que tinha me sentido assim. Poderia ter contado com uma válvula de escape, com uma nova perspectiva sobre as coisas.
— Por que a gente nunca conversou antes? É tão fácil.
Ele deu de ombros.
— Você é quem manda aqui. O que acha?
Baixei a cabeça, envergonhada do que ia dizer.
— Acho que não gostava de você por causa de Taylor. A imitação constante dela me deixa
maluca.
— Eu acho que não gostava de você por causa do palácio. É culpa dos nossos pais, não sua.
Mas transferi para você, já que você será a rainha um dia.
— Entendo.
— E sei o que você quer dizer sobre Taylor, mas é difícil para ela crescer à sua sombra.
Não podia lidar com a entrada de Taylor na minha lista de coisas pelas quais me sentia
culpada. Ajeitei a roupa, sabendo que o trabalho me distrairia.
— Vamos fazer algo logo. Não um encontro, só passar um tempo juntos.
O sorriso torto apareceu no rosto dele.
— Eu adoraria.
Ele voltou a colocar a camisa para dentro da calça, e precisei me esforçar para não corar.
Como eu tinha perdido o controle daquele jeito?
— Ouça — ele disse. — Não desanime com essas coisas. Você é muito mais do que a Seleção.
— Obrigada, Law — agradeci e dei um beijo na bochecha dele antes de partir para o meu quarto.
Lembrei como tinha ficado brava quando vi seu nome sair no sorteio. Me senti enganada.
Mas, naquele momento, já não me preocupava em saber como a ficha de inscrição dele tinha
ido parar na pilha de cartas. Estava feliz por isso.
E tinha esperança de que ele sentisse o mesmo.
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A Herdeira
Short StoryQuando Alejandro Cabello e Sinuhe Estrabao tornaram-se rei e rainha de Illéa, a primeira medida que decretaram foi abolir as castas de maneira gradual,para que a sociedade pudesse se adaptar a uma nova configuração, agora muito mais justa, sem os ró...