Tem dias que acordo confusa. Levo um tempo pra me situar no espaço. Vinte cinco anos se passaram desde que meu irmão Bruno morreu, mas pra mim, é como se nunca tivéssemos saído daquele verão esquisito, muito esquisito.
Acordo em sobressaltos, o coração acelerado, as vezes com imagens tão frescas grudadas nas pálpebras que é como se eu estivesse lá, na beira daquele precipício onde decretei, ainda muito jovem, o início do fim da minha vida.
Isso, na verdade, é algo que estou tentando mudar. Mas, e quanto as coisas imutáveis? As coisas que simplesmente não podemos contornar? E quando a morte do meu irmão? Sei que estou sempre batendo na mesma tecla, mas é como eu disse, vinte cinco anos depois e todo dia eu acordo naquele janeiro de mil novecentos e noventa e nove.
Já tinha algum tempo que Natália lutava contra suas lembranças. Todos diziam que ela precisava seguir em frente e por mais que concordasse com isso, muitas vezes se sentia completamente impossibilitada de esquecer.
Esquecer talvez não seja a palavra, superar também não. De toda forma, a perda de Bruno, sem sombra de dúvidas, tinha colocado aquela jovem de outrora, em uma montanha russa tão violenta, que agora, já perto dos quarenta anos, ela ainda se via obrigada a exorcizar fantasmas.
Naquela noite, na casa da serra, quando acordou deitada no mato seco e esticou os olhos até o precipício, Natália ficou petrificada com a imagem de Bruno estirado no chão, uma mancha escura gigantesca envolvendo sua cabeça. Só despertou do seu estado de choque quando Pedro chegou, num primeiros momento cheio de preocupação com ela e, logo em seguida, deitando cair sobre seus traços jovens linhas de expressão tensas que jamais saíram de seu rosto.
Depois disso, ela não se lembrava de muita coisa, só de Pedro muito enérgico, falando sem parar, depois os dois caminhando pela trilha de volta a casa e os rostos das amigas que, assim como o do irmão mais velho, foram do alívio de tê-la encontrado para o pânico paralisante desencadeado pelas palavras "o Bruno está morto".
Foi assim que, como Natália mesmo gostava de dizer, os fios da sua cabeça foram desconectados, deixando ela standby por longos meses. Não falava, quase não saia do quarto e não esperava visitas. Mas Bruno sempre vinha, dia sim dia não, e invadia seus sonhos e devaneios como uma assombração. Fora ele, as únicas pessoas que mantinham visitas quase regulares eram Adriana e Carol, que raramente conseguiam arrancar da amiga um risada curta.
Quase cinco meses depois, as pessoas começavam a perceber que talvez Bruno não era o único que tinha falecido naquela noite.
Em meado de junho, Pedro entrou no meu quarto com a mesma cara de carrancuda de sempre, agora severamente afetada pelo luto. Sentou-se na beira da cara, me encarou fundo nos olhos e sem suspiros ou meios termos comunicou que o melhor que podia fazer era me levar pra um "espaço confortável" no qual eu pudesse relaxar e me recuperar dos traumas que vinha enfrentando.
Assim fui internada pela primeira vez. Não lutei contra, no fundo acho que eu também queria aquele espaço, não conseguia lidar com o entra e sai de policiais em casa, o tempo todo trazendo informações que pareciam nos afastar cada vez mais de uma resposta.
Eu, aparentemente, era a única testemunha do acidente, mas mesmo se quisesse não conseguiria lembrar de nada. Uma pressão horrível ia se criando ao meu redor, o que me mantinha cada vez mais retraída e amarrada ao espelho que refletia sempre a mesma imagem. Arrumei uma mala na mesma hora e, no dia seguinte, dei entrada numa clínica particular, onde eu passaria o resto do ano completamente alienada do mundo ao meu redor. Ou quase isso, já que eventualmente, recebia visitas de rostos que estavam lá naquela noite. Pedro e Carol eram os mais frequentes.
Mesmo com isso, fui aos poucos enterrando o corpo do meu irmão nos meus pensamentos e, perto da virada do ano, já quase não me lembrava do que tinha acontecido. Passava mais tempo preocupada com o bug do milênio do que com qualquer outra coisa. As investigações tinham sido encerradas por faltas de provas que apontassem algum culpado, a hipótese mais provável era a de que ele tinha escorregado. Uma morte medíocre para um cara medíocre e nisso até eu preciso concordar.
Bruno era medíocre, um sem noção egocêntrico, muitas vezes maldoso, mas era meu irmão e uma das poucas, talvez a única pessoa que realmente gostava de mim apesar das minhas excentricidades. Mas vida que segue né...? Como dizem por aí, vida que segue.
E seguiu mesmo, por longos vinte e cinco anos, até o dia que a polícia voltou a bater na porta de casa com uma descoberta arquivada numa pasta. Investigações paralelas acabaram apontando um suspeito para o assassinato do meu irmão, o Doutor Sérgio Aranha, pai da Helena e dono da casa onde tínhamos no reunido naquela ocasião. Ouvir aquela notícia me transportou automático para a cena do penhasco e poucas horas depois eu já tinha decidido que voltaria a me isolar em uma clínica até que a lona daquele circo baixasse.
Que eu era maluca, não era nenhuma novidade, mas não estava disposta a deixar que minha vida voltasse a ser um infindável ciclo de remoer e rememorar os mortos. Já bastava a minha própria ausência de vida.
Dessa forma, por livre e espontânea vontade, voltei a me internar com a expectativa de que aquele pesadelo terminasse. Mas, às véspera de tomar alta, eu sentia que continuava na fila de espera de alguma coisa grande, que não sabia dizer ao certo o que era.
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Os outros são os outros
FanfictionDepois de vinte e cinco anos da morte de seu irmão, Natália ainda se sente presa à fatídica noite que encontrou o corpo de Bruno sem vida. Após ficar internada pela segunda vez, uma reunião de boas vindas organizada pelo grupo de amigas da adolescên...