capítulo 1 - sobre as ausências

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Três meses. Foi o tempo que levou a investigação da morte do Bruno depois que o caso foi desarquivado. Tudo começou por conta de uma outra história, na qual Sérgio Aranha era o personagem principal, e suspeito. Durante as investigações, a polícia encontrou provas de que ele esteve sim na casa da serra no dia em que Bruno morreu, diferentemente do que ele havia contado para a polícia quando foi interrogado pela primeira vez.

A suspeita foi imediata e a polícia abriu outra frente investigativa, trazendo de volta toda aquela história assombrosa que Natália tinha levado muito tempo pra processar. Noventa dias depois, não havia mais dúvidas de que Sérgio havia empurrado Bruno. Ainda assim, Natália preferiu ficar mais algum tempo longe de tudo e de todos. Diferentemente de Pedro e das outras pessoas com quem costumava conviver, aquele assunto ainda levantava os pelos de seu braço de maneira assustadora.

Eu quero paz! Já falei pro Bruno que quero paz, quero viver. Ainda que eu não tenha muitos planos e expectativas do que fazer com a minha vida, quero vive-lá. É triste, claro, é absurdamente triste que ele tenha morrido tão jovem, sem conseguir realizar ou mesmo fazer muitos planos, hoje eu sou capaz de entender isso. Mas as vezes parece que quem tá aqui não é a Natalia de hoje, é a Natália daquela noite. Na verdade eu nem sei direito quando é uma e quando é outra. Tem dias que eu acordo completamente consciente das coisas, mas tem dias que eu acordo nervosa e só consigo ver meu irmão caído na minha frente. Às vezes eu acho que quebrei, Lígia... Quebrei, quebrei... Não tem mais conserto.

A psicóloga encarava Natália com tranquilidade. Definitivamente ela não estava quebrada. Estava apenas lidando com um trauma, um trauma que não tinha sido verdadeiramente cuidado logo que surgiu. Uma ferida muito, muito mal cicatrizada. Mas só o fato de ter escolhido se recolher diante do retorno daquela situação, já era, na visão da profissional, um ponto em tanto na conta da paciente. Disse isso à ela, acrescentando que agora, com as coisas voltando a se estabilizarem minimamente, achava que Natália deveria se agarrar aos impulsos de vida que vinha tendo nos últimos dias e viver. Tentar voltar a viver e gozar os prazeres da vida. Elas continuaram se vendo, tendo consultas, mas estava na hora de voltar para casa.

Natália concordou um pouco a contra gosto. Sabia que não tinha como argumentar ou negociar qualquer coisa. E queria sua paz acima de qualquer coisa então, se era hora de ter paz em casa, que fosse. Contou a Pedro a novidade e não pode deixar de reparar o que julgou ser uma linha de felicidade na face endurecida do irmão, tinha envelhecido bastante, assim como ela julgava que também tinha envelhecido. Apesar de muitas vezes se sentir presa na casa dos vinte e pouco, já era uma adulta perto dos quarenta anos, e esse vácuo temporal ocupado pela ausência de Bruno pesava vinte e cinco toneladas na sua bagagem de mão.

Pedro ficou feliz com a notícia, saiu animado pensando que na próxima vez que voltasse seria para me buscar e me levar de volta. Eu não estava feliz. Mas também não me sentia triste. Sentia apenas um desejo latente, pulsante de paz!

........

- Quem era? - perguntou Ester quando a filha desligou o telefone.

- A Lara... - responde Carol com a voz vagamente distante - nem lembro qual foi a última vez que nos falamos...

-Aconteceu alguma coisa? - Ester estava sentada na mesa terminando o café, um tom de preocupação dominando suas sobrancelhas.

- Sim, tá tudo bem sim, é só que... Bom, parece que terminaram as investigações sobre a morte do Bruno e o Sérgio foi acusado mesmo. A Lara tava advogando em favor do Pedro. Ai parece que a Natália tomou alta e ele acabou comentando qualquer coisa, agora ela quer fazer uma reunião de reencontro, pra Natália se sentir bem vinda.

- Ahm, legal filha - disse a mãe com a boca cheia, limpando os lábios e pegando impulso para se levantar - quando vai ser?

- Amanhã de noite... Nossa mãe eu to pensando, acho que não vejo as meninas desde que a Natália saiu da clínica quando foi internada pela primeira vez, isso tem o quê? Vinte anos? Mais? É doido pensar isso, a gente era tão unida.

- Você e a Natália?

- É, a gente no geral eu acho.

- Entendo. Então que bom que a Lara teve essa ideia de reunião né, meu amor? Bom pra vocês se encontrarem... Olha, eu preciso dar uma chegada na rua, mas não vou demorar. Você quer alguma coisa?

- Não mãe, obrigada.

Ester acenou com a cabeça. Já estava com a bolsa enganchada nos ombros e muito rapidamente esticou as mãos, pegou a chave, abriu a porta e saiu. Tinha vindo para o Brasil a trabalho e Carol concordou em recebê-la em casa pelo tempo que fosse preciso. Mas, agora que estava sozinha, conseguia ouvir ainda mais claramente as vozes em sua cabeça que falavam mil e uma coisas ao mesmo tempo. Não conseguia tirar o rosto de Natália da mente, aquele rosto jovem completamente paralisado pelo medo e pelo espanto. Era difícil admitir, mas Carol não conseguia pensar na amiga de outra forma. Se sentia mal porque sempre considerou Natália uma das mais engraçadas da turma, um sorriso lindo sempre no rosto. De repente, por uma fatalidade que, bom... Agora sabia, não era tão fatalidade assim, mas de repente, Natália perdeu o brilho, simplesmente apagou.

Naquela noite na casa da serra, quando viu Pedro entrar pela porta de vidro segurando a irmã pelo braço, Carol mal se atentou para a expressão de horror que ele trazia no rosto. Seu olhar e seu corpo foram imediatamente na direção de Natália, que estava sumida já tinham um bom par de tempo. Só quando falou com a amiga e viu que ela simplesmente só estava ali de corpo presente que ela levantou os olhos e flagrou Pedro a tempo de ler em seus lábios aquela frase que marcaria a noite e a vida de todos os presentes. Bruno morreu.

Helena, que todo mundo sabia que vivia enrolada com ele, começou a gritar desesperadamente. Alguém, não lembro quem agora, ligou pra polícia enquanto eu e a Dri pegamos a Natália pelo braço e levamos elas para um quarto longe da confusão. Tentamos de todas as formas arrancar qualquer palavra da boca dela mas ela simplesmente não respondia. Foram as horas mais assombrosas da minha vida. O Pedro teve que ir pra delegacia, queriam levar a Natália também, mas ela não tinha a menor condição de ir para nenhum lugar que não fosse a casa dela. Ou a casa de alguém. Na ocasião, foi a minha.

Ela não podia ficar sozinha. Também achamos que poderia ser ainda pior levar ela pra um lugar tão familiar e tão impregnado com a presença do Bruno. Dri veio embora comigo, pedi pra ela me fazer companhia, estava assustada também, não sabia o que esperar daquela situação. Nós duas passamos praticamente a noite inteira acordadas na sala, indo no quarto de cinco em cinco minutos pra ver se estava tudo bem. Natália dormia feito uma pedra na cama. A gente se perguntava o que ia acontecer dali em diante e não conseguimos chegar em nenhuma resposta. Foi assustador.

Eu ia toda semana na casa da Natália. Ficava com ela no quarto por horas, em completo silêncio na maioria das vezes. Até o dia que Pedro me chamou pra conversar e disse que ela tinha concordado em ir pra uma clínica. Senti uma mistura de alívio com medo porque, por um lado, sabia que lá ela poderia contar com a ajuda da qual precisava, mas por outro, sabia que agora nossos encontros seriam mais espaçados e eu não conseguia carregar o peso de me sentir impotênte. Hoje sei que fiz o que pude na época, não me perturbou tanto assim com isso. Mas depois que ela saiu, não sei... alguma coisa... alguma coisa aconteceu. Não entre nós duas, entre nós todas. Ninguém se via mais com a mesma frequência, cada uma num canto, vivendo sua vida.

Eu, por exemplo, fui pra faculdade e passei anos emendando uma coisa na outra até concluir o PhD. Gostava do meu trabalho e da sensação de utilidade que ele me dava. Sentia que, fazendo a diferença na vida dos outros, eu me ajudava a preencher certos vazios que eu não sabia exatamente porque estavam ali. Era uma vida monótona, mas eu estava completamente conformada e confortável com isso. Não gostava de correr riscos. Deixava isso pra minha mãe, que vivia cada hora em um país diferente, com um trabalho diferente e com história diferentes. Ela preenchia esse vazio em mim toda vez que vinha me visitar. Ficava horas me contando as novidades do trabalho, da culinária e da sua vida amorosa. De minha ela já quase não perguntava, tinha decorado a resposta. Um caso aqui, um ali, mas nunca nada sério. Pelo menos não pra mim.

Carol não tinha tempo para se relacionar. Acordava cedo, ia para a universidade dar aulas até o horário do almoço. Depois, ia para o laboratório, onde atendia os voluntários do seu projeto até a parte da noite. Chegava em casa destruída, cansada, mas sempre muito satisfeita com o trabalho. Sua vida estava ótima, não tinha do que reclamar. Mas sem sombra de dúvida, aquela ligação, seguida de um convite para reencontrar as amigas, tinha feito com que Carol sentisse dentro do peito certa animação e expectativa que ela não sentia a muito tempo. Ela só não sabia ainda, se isso era bom ou ruim.

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