Capítulo 03 | Olhos de amêndoa.

235 19 52
                                    

— Fala sério, não seja tão voraz. — Clara, com uma ruga preocupada marcando sua testa, repreendeu-me, estendendo a mão para diminuir a velocidade com que eu levava o garfo à boca.

— Eu não estou sendo voraz, eu só... — Uma risada escapou dos meus lábios, interrompendo minha defesa. Eu estava visivelmente atrasada, com os cabelos ainda úmidos do banho apressado e a blusa meio abotoada. A noite anterior havia sido consumida por pensamentos inquietos sobre alguém que não saía da minha mente.

— Sim, mas coma devagar, vai acabar se engasgando. — Ela insistiu, seus olhos azuis refletindo uma mistura de irritação e cuidado. — Aliás, por que eu não consegui falar com você ontem à noite? Soube que aconteceu um incidente terrível no prédio onde você trabalha.

— Incidente? — Minha testa se enrugou em confusão enquanto eu revirava as memórias recentes, até que a lembrança surgiu, clara e alarmante. Não compreendia a preocupação geral; afinal, incidentes como aquele já deveriam ser esperados.

— Sim, saiu no jornal. — Clara deslizou o jornal amassado e manchado de café em minha direção. Peguei-o com dedos trêmulos, meus olhos percorrendo rapidamente o texto.

"Anomalia se revela de forma grotesca em prédio comercial, espalhando pânico. Equipes de emergência descrevem o homem como 'completamente descontrolado', tornando sua contenção quase impossível. Por um triz, não houve feridos."

As letras garrafais capturaram minha atenção, e uma sensação de inquietação se instalou em meu peito. A notícia estava se propagando como fogo em palha seca, e isso era péssimo. A última coisa que eu queria era um enxame de repórteres na portaria, todos ávidos por entrevistar a única testemunha de um ato de violência quase consumado.

— Acho que deveriam parar de espalhar esse tipo de notícia. — Comentei, empurrando o jornal para o lado oposto da mesa com um gesto brusco, antes de pegar um pão ainda quente e espalhar uma camada generosa de geleia.

Clara me lançou um olhar perplexo. — E por quê? Quanto mais divulgarem, mais perto estaremos de descobrir a origem desses clones e suas intenções.

— Eles nunca vão descobrir nada, porque estão focando suas atenções no lugar errado. — Minha voz baixou, carregada de convicção. — Eu estava lá, Clara. Eu olhei nos olhos daquele homem, antes mesmo de ele ser flagrado. Eu vi a inteligência neles, a capacidade de dialogar como se fosse um de nós.

Enquanto falava, as lembranças daquele homem conversando com Margaret, uma colega de trabalho, inundaram minha mente. Era assustadoramente real, como se ele tivesse estudado cada gesto e expressão do verdadeiro morador do prédio.

— Como assim? Você o ouviu falar? — Clara se inclinou para frente, o queixo apoiado nas mãos entrelaçadas, os olhos arregalados pela curiosidade e um leve tremor de excitação.

Eu sorri, acenando afirmativamente com a cabeça. — A mulher com ele reclamava sobre ele não dar prioridade a ela, sobre ele negligenciar a data do aniversário de casamento deles. E isso me faz pensar... até onde essas cópias podem ir? Eles parecem ser inteligentes demais para serem meras anomalias.

— Nossa, isso é bizarro... — Clara murmurou, franzindo a testa em uma expressão que misturava medo e fascínio, como se a realidade tivesse se transformado em um filme de terror.

— Sim, realmente. — concordei, sentindo o pão macio ceder entre meus dentes, seguido pelo café que desceu como um rio de calor pela minha garganta, um alívio bem-vindo contra o frio cortante do dia lá fora.

Scarlate | Milkman x Leitora ✓Onde histórias criam vida. Descubra agora