Louvenia:
Quando escuto o barulho de vidro quebrando, salto na cama, por um segundo desorientada. Acendo a luz do cubículo, que sega meus olhos.
Sento-me na cama, esfregando a minha nuca, respirando fundo até meu coração voltar ao ritmo normal. O alarme de um carro dispara no final da rua, ecoando pelo bairro barulhento. Mesmo do quarto andar do prédio velho caindo aos pedaços, ainda consigo ouvir os gritos das pessoas na rua. O tilintar das garrafas de vidro caindo no chão ou atingindo as vidraças das lojas, o estouro dos tacos de beisebol contra o capo dos carros estacionados, um pandemônio.
Olho para o pequeno despertador na beira de meu colchão, situado no canto da cozinha do novo apartamento. São duas e cinco da manhã. Mais uma noite perdida. Não tenho nem ao menos uma cama, apenas um colchão jogado em um apartamento com uma mesa minúscula e alguns utensílios de cozinha como moveis. Minhas roupas ficam dentro de uma caixa de madeira, para não estragarem com a umidade que passa pelas paredes e pelo teto do quarto.
Quando me obrigo a ficar de pé, e preparar um chá para mim, a claridade de mais uma explosão de um carro lá fora me tira o ar, mais uma vez. Será uma longa noite.
Deslizo meus pés pelo piso gasto, sentindo a friagem passar pela borracha mais gasta ainda de minha pantufa. Acendo o bico do fogão, fazendo o fogo iluminar meu rosto por um segundo. Aperto o roupão em volta de minha cintura larga, pegando a xícara solitária de cima da mesa e colocando o saquinho de chá na mesma. Perco-me em meus pensamentos até ouvir o apito da chaleira, anunciando que a água está fervida.
O chá sempre foi minha bebida preferida. Quente, calmante e doce. Nada melhor do que tomar uma xícara de chá no final de um dia pesado de faxina. Sinto o liquido esquentar meu corpo gradualmente, de dentro para fora, e sorrio com isso.
Não sei até que hora fico com meus olhos perdidos pela escuridão da cozinha, agarrada a minha xícara já fazia á um tempo, mas quando ergo o olhar para o furo na janela de madeira á minha esquerda, uma luz fraca invade o ambiente, clareando as manchas de mofo da parede. Suspiro, levando a louça até a pia. Lavo rapidamente o rosto e troco de roupa, colocando o uniforme roxo escuro da lanchonete. Como alguns biscoitos de aveia que comprei semana passada e tomo um caneco de café bem quente para ter energia para o dia que terei que enfrentar.
A parada fica na esquina de minha rua, e o caminho até ela é mais complicado que o normal. Tenho que desviar dos carros tombados, ainda em chamas, no meio dela, cuidar para não pisar nos milhões de cacos espalhados por todos os lados. Alguns dos visinhos varrem pacientemente as calçadas, cabeças baixas, nenhuma palavra a dizer. O ponto de ônibus estava lotado. Empregadas domésticas, babás e operários, todos esperamos. Esperamos por dias melhores. Esperamos por dias em que esfregar a privada de uma lanchonete lotada de brancos arrogantes não seja sua única esperança de ganhar um misero salário para se sustentar.
Quando enfim o ônibus chega, suspiro ao pagar a passagem, que aumentou novamente, e olho para meus pés inchados, me perguntando se eles agüentarão uma viagem de duas horas, em pé, até a cidade.
Lize costumava ficar encantada quando eu dizia como era andar de ônibus, ria de como ela pulava e dizia que um dia ela seria motorista de ônibus e que levaria as pessoas pelo mundo todo. Aquela menina sempre teve tudo para ser alguém rude e sem coração. As coisas que ela passou nas mãos de seu pai, tudo o que a vida lhe deu, apenas sofrimento e dor... Mas ela via o bem nas pessoas. Via a magia que a vida tem quando se olha para ela com outros olhos. Elizabeth não é perfeita. E eu nem me atreveria a querer que fosse. Sua infância sem amor nem carinho e sua adolescência confusa a tornaram alguém um pouco perturbada. Tinha medo de que ela fosse se tornar má. Mas tudo o que faziam á ela, todo o mal que seu pai fazia com ela e as pessoas com quem se importava, ela virava para si. Toda raiva, ela depositava em si mesma. No final, ela acabou acreditando que tudo era sua culpa. A morte de sua mãe. O que aconteceu com Sasha, comigo. Deus sabe como anda seu coração agora, sem que eu esteja lá para acalmar o turbilhão de sentimentos que transbordam aquela alma inquieta.
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Alma Negra
RomanceOutono de 1962, os Estados Unidos da América está em guerra. Negros e brancos erguem seus punhos e voz contra uma sociedade racista, conservadora e capitalista. Todos os dias ouvimos pelo rádio que mais e mais pessoas se juntam as causas e partidos...