As três semanas seguintes foram de extrema agonia. Fiquei de cama por dois dias, com um resfriado que me tirou as forças. A solidão e aquela antiga falta de ar que me batia á noite quando eu era mais nova, voltou com todas as suas forças, sugando completamente meu animo. Toda aquela alegria que eu estava sentindo, desde que conheci Jeremy, havia ido embora. Ou quase... Meu pai não veio uma vez sequer em meu quarto enquanto eu me recusava a colocar o nariz para fora da porta... Eu não esperava que ele viesse, de verdade. Sua indiferença por mim já havia quebrado todas as expectativas e esperanças que eu tinha de algum dia receber qualquer ato que demonstrasse carinho, ou ao menos sentimentos bons, dele para comigo.
Mas na terceira semana, eu já não aguentava mais. Ainda sentia aquele peso que me puxava para baixo e me gritava para continuar na cama, mas algo que eu ainda não tinha decifrado o que era, me chamava, me conduzia á enfrentar aquele dia. Não que eu fosse verdadeiramente fazê-lo, mas não aguentava mais a voz na minha mente dizendo para mim ao menos tentar.
Essa voz, antigamente, costumava ser a voz calma de Mama.
O corredor está vazio e silencioso, fazendo meus passos ecoarem no ambiente.
— Olha só quem decidiu sair da cama! – escuto Luna vindo atrás de mim. – Já era hora mesmo...
Ignoro suas palavras de zombação, como sempre. Sigo meu caminho até o lado de fora, onde sou recebida por uma brisa gelada. O inverno me dando as boas vindas.
Embora não seja mais tempo de lavoura, á muito trabalho na fazenda para se fazer. Homens e mulheres andam de baixo para cima, carregando galões de água, feno para os cavalos de meu pai e ferramentas. Essa atmosfera cheia de vida e movimento me faz sentir cansada. Não tenho mais animo de andar pelos campos como fazia no inverno no passado, sentindo a cada passo a fina camada de gelo se quebrar com seus estalidos mórbidos. Como eu gostava disso. Fecho os olhos, tentando absorver o máximo de oxigênio em meus pulmões, pois sinto que a qualquer momento perderei o chão mais uma vez.
Quando eu era mais nova, á não muito tempo, eu sentia vontade de lutar contra a escuridão que ameaçava se apossar de mim. Eu costumava passar horas rolando na cama, me perguntando por quê. Por que e por que. Não que eu tivesse essa resposta. Depois de um tempo eu simplesmente cansei de esperar. Já era mais forte que eu. Eu não tinha mais forças para segurar. Aquilo fazia parte de mim, simples assim. Ponto final. Mas nem mesmo a aceitação do meu verdadeiro eu me ajudou a superá-lo. Talvez não fosse possível. Ou eu não era forte e capaz.
Algumas crianças passam correndo por mim, suas risadas ficam ecoando em minha mente. Vasculho minha mente tentando lembrar qual foi a ultima vez em que um sorriso infantil e puro como aquele que eu ouvi agora saíram de minha boca. Talvez foi na ultima fez em que vi Sasha... não consigo me lembrar. Balanço a cabeça tentando afastar de minha mente seu rosto, sua voz suplicante. Respiro fundo. Á coisas guardadas em minha alma, coisas que eu nunca revelaria a ninguém. As pessoas não podem saber, não devem saber o monstro que eu sou. O que eu já fiz.
***
9 anos antes:
Seu riso feliz me faz sorrir. Sasha era uma menina de riso fácil. E eu adorava ouvi-la rir. Era o som mais doce e incrível que eu já tinha ouvido. Ela era minha melhor amiga do mundo inteiro. E para provar isso a ela, dei minha boneca de pano que mamãe me deu quando eu nasci. Eu gostava dela, mas gostava mais ainda de Sasha. Ela riu ao ver o que eu segurava nas mãos, e riu mais ainda quando eu disse que era para ela. Seus olhinhos brilhavam e eu fiquei com vontade de chorar e rir com ela. Apertei meus braços em volta de seu pescoço moreno, assim como o resto de seu corpo, e disse que ela era minha melhor amiga.
— Vamos ser melhores amigas para sempre! – ela me disse séria, e eu acreditei.
Segurei seu dedo mindinho, que ela me estendeu, selando essa promessa. Então ela saiu correndo, eu atrás dela, brincando de pega, sua brincadeira favorita. As folhas do campo voavam ao nosso redor com o vento, enquanto eu me lembrava de mamãe correndo de mim, aqui mesmo. Seu sorriso enorme brilhando em seu rosto de princesa. Mamãe era linda. A mulher mais bonita e legal do mundo. Mas desde que minha irmãzinha nasceu, ela não voltou mais para casa. Papai grita comigo, diz que eu fui uma menina má, e que ela não vai voltar por minha causa. Eu não entendo... Mamãe foi embora, foi o que eu ouvi Mama dizer, mas os adultos falam de um jeito tão confuso.
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Alma Negra
RomanceOutono de 1962, os Estados Unidos da América está em guerra. Negros e brancos erguem seus punhos e voz contra uma sociedade racista, conservadora e capitalista. Todos os dias ouvimos pelo rádio que mais e mais pessoas se juntam as causas e partidos...