Part. 2

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Jogo mais um saco dentro do caminhão já quase cheio. Limpo a testa com a manga da camisa, onde escorre suor. Olho para o sol e franzo as sobrancelhas, quando será que teremos uma trégua? Nos últimos dias o sol tem sido nosso inimigo, queimando as nossas costas e braços. Jogo um saco sobre os ombros mais uma vez e volto ao caminhão, o velho Dinks me sorri e acena com a cabeça, oferecendo um copo d'água.

- Deus é nosso amigo! - exclama ao terminar de beber, um fio de água escorre por seu rosto barbudo. - Ele nos dá água meu filho!

- Não sei se acredito em Deus... Ou Deus tem algo contra mim! - forço uma risada, mas ele me olha com pena.

- Nós é que não somos amigos Dele, Jeremy... Nós temos algo contra Deus, e não Ele.

Pousando o caneco sobre um maço de grama seca, ele aperta meu ombro, sorrindo, põe seu chapéu de palha já bastante gasto e volta ao trabalho. Bebo o resto da água de meu caneco e quando estou voltando o patrão me chama.

- Leva essas ferramenta pro celeiro, não quero que nenhum desses negros me roubem mais isso... - ele bufa a fumaça do palheiro em meu rosto e sorri com desprezo. - É melhor que isso esteja lá amanhã, ouviu seu negro desgraçado?

Serro os punhos, respirando pesado, sentindo a raiva crescer dentro de mim.

- Sim, patrão. - respondo, dando-lhe as costas.

Junto as ferramentas do chão e caminho apreçado até o celeiro. Meu pai levou dois tiros no peito por ter desrespeitado seu patrão, não quero acabar como ele, então faço o máximo de esforço possível pra não acabar como ele, largado morto em uma vala qualquer. Assim que coloco as malditas ferramentas no lugar, avisto com o canto dos olhos um vestido laranja claro tremular por detrás de um fecho de palha. Assustado, viro-me e me deparo com um corpo esguio adornado por um vestido simples cheio de flores bordadas, sentado atrás de um fecho de palha já bem seca. Os cabelos louros e ondulados estão caídos sobre as paginas de um livro grosso e já gasto. Sua boca está torcida em um sorriso contido e bastante divertido. Fico completamente parado, prendendo a respiração, temendo que ela se assuste e que seu sorriso desapareça de seu rosto ao me ver. Esse sorriso...

lentamente, ela ergue a cabeça. Quando me vê, seus olhos se arregalam e seu sorriso se torna ainda maior.

- E-eu... Desculpe, eu... - gaguejo

- Tudo bem. - sua voz sai baixa e pausada, como se ela temesse me assustar. - Você gosta de ler? — pergunta ela, do nada.

Sua pergunta me pega de surpresa. é uma conversa tão formal, normal e íntima, que me assusta. é como se ela já me conhecesse e fosse normal perguntar coisas desse tipo. Balanço a cabeça confirmando, quase que imperceptivelmente.

- Gosto desse livro - ela ergue a capa, para eu poder ler. '' A Cidade das Flores, Augusto Abelaira''. - Já o li várias vezes. Se quiser, empresto pra você.

Minha expressão de espanto a faz rir. Mas logo ela franze as sobrancelhas, como se ela se toca-se de alguma coisa só agora. Que bem poderia ser: ''Meu Deus, ele é negro!''.

- Desculpe, acho que não me apresentei. - se colocando de pé, ela sacode o vestido e estende a mão. - Sou Lize.

Olho para sua mão e dou um paço para trás. - Desculpe, mas eu... não tenho permissão para tocar na Senhorita. - faço um gesto indicando sua mão.

Sua expressão muda rapidamente, e seus olhos ficam de um azul incrivelmente profundo. Ela põe a mão na cintura e bufa. - Não gosto que fale assim!

Parabéns Jeremy, você acaba de perder seu emprego e merece uma surra do pai dela! - Desculpe...

- Eu só queria te cumprimentar, e não me importo se você é negro, branco ou azul. - ela revira os olhos, chateada. - Não sou racista e não gosto que pensem que sou. - ela sai pisando duro, me deixando para trás.

Minha boca provavelmente estava bem aberta, porque nunca na minha vida ouvi alguém dizer coisas assim. Ainda mais de um branco. Foi como se ela estivesse me xingando por eu saber que os brancos não gostam de mim por minha cor. O que não faz, com toda certeza, nenhum sentido.

Saio do celeiro depressa, esperando que  ninguém tenha percebido minha ausência. Tento livrar de minha cabeça as imagens daquela garota estranha e incrivelmente... adorável, de minha mente. Mas a todo instante, o azul profundo de seus olhos invadia meus pensamentos, causando uma mistura de raiva e confusão em meu peito.

Alma NegraOnde histórias criam vida. Descubra agora