Meu nome é Lize, mais precisamente; Elizabeth Woods. Meu pai é fazendeiro, planta algodão, como praticamente todo mundo nessa cidade... Nasci em uma manha de outono. Quando o algodão está quase pronto para ser colhido. Mama costumava dizer que eu era como o outono. Um raio de luz dourado. Mas isso foi antes dela se for. Minha mãe morreu três anos depois do meu nascimento, no meio do inverno, sua estação favorita. Ela não suportou ao parto de minha irmã mais nova, Luna. Desde esse ocorrido, os dias tem sido sombrios na fazenda. Meu pai culpou mama, (todo mundo, para ser sincera) disse que ela não foi capaz de salvar a vida de minha mãe, então começou a tratá-la como um animal. Mesmo passando-se tantos anos, esse sentimento de perda é nítido em seu rosto. Mas com os anos, acredito que a culpa se transformou em raiva; em um sentimento sego e egoísta que destruiu o resto de vida que sobrou dentro de meu pai.
Já é começo de outono e tempo de colheita, assim, a fazenda se enche de trabalhadores, e a cada dia mais e mais negros desembarcam dos caminhões. Com suas mãos calejadas e rostos amargurados, vejo em cada um deles o peso de uma vida que ninguém neste mundo merece.
Tenho raiva de meu pai, sinto ódio quando o vejo bater em um deles, qualquer que for. Mama me ensinou que todos somos iguais, que a cor da pele não diz nada sobre nós. E que não devemos sentir desprezo pelo outro só porque é diferente. Mas não consigo segurar. Odeio meu pai pelo que ele fez, odeio cada tapa que ele desferiu contra o rosto de mama. Odeio cada vez que ele a obrigou a deixar suas mãos dentro de um balde de água fervente só por ter quebrado um prato ou copo de mamãe. Sinto repulsa de pensar que minha irmã esteja se tornando assim...
- O mundo nunca será perfeito, minha querida. - dizia mama com seu sorriso dócil - Homens sempre farão mal, mas você minha pequena, você é diferente, eu posso sentir isso. Aqui.
Ela colocava a mão em meu peito frágil de menina,e fechava os olhos, como se pudesse enxergar meu futuro, como se pudesse ver um segredo ali guardado. Nunca consegui ver o que ela dizia ver.
- Lize, venha cá. - a voz rouca de meu pai soa pelo corredor até a porta de meu quarto, despertando-me para a realidade.
Levantando a cabeça do parapeito da janela, fecho as cortinas amarelas e desso apresada as escadas.
Como sempre a essa hora, ele está na varanda, cachimbo entre os dedos e olhar perdido no horizonte.
- Sim, papai? - digo, mas ele não olha para mim.
Suspirando, ele se põe de pé e recoloca seu velho chapéu preto. - Amanha mais um caminhão desses negros vai chegar, e eu vô ta na cidade. - sua voz cospe desprezo ao se referir aos trabalhadores negros - Quero que fique de olho pra que esses desgraçados não façam besteira.
Meus olhos se enchem involuntariamente de lágrimas quando ele se vira e entra na casa, ainda sem olhar para mim.
Mama se foi a dois anos. Meu pai prometeu matá-la depois que minha irmã disse que ela a tinha batido no rosto. Ele ficou tão furioso, mais do que o normal... Mama veio ao meu quarto á noite para se despedir, disse que só não tinha partido antes por minha causa, mas que ela deveria ir... Ela sempre foi tão amável, o único lugar onde achei refúgio e carinho. Eu a amava, ainda amo.
- Olha só Lize! - Luna corre pela sala de estar, dando pulinhos de alegria. Tem em mãos uma de suas revistas de fofoca e a esfrega na minha cara, depois beija a capa e suspira. - Nunca me cansarei de olhar esse rostinho lindo...
Reviro os olhos e continuo a mexer o chá que preparei. O cheiro quente de menta se espalha pela casa até a varanda, onde meu pai conversa com o capataz. Os dois tem discutido bastante nesses últimos dias.
- O que aconteceu meu pai? -pergunto assim que ele entra novamente.
- Nada da sua conta. Só estávamos botando conversa fora, coisa de homem.
Olho de relance para a rua, tentando esconder a expressão de meu rosto. As fileiras muito bem alinhadas de algodão balançam com a brisa de fim de tarde, revelando os raios dourados do sol por detrás dos tufos branquinhos como neve. Negros suados e vestidos com seus trapos vem e vão por entre as trilhas, esgueiro os olhos por seus rostos, e quando encontro o que procuro, não posso evitar sorrir.
Continua#
Durante o dia o trabalho é duro, há pouca água e pouca comida. Durante a noite, um colchão velho e mau cheiroso num barraco qualquer. Ótimo emprego, penso pela milésima vez. Mas pra quem não tem dinheiro e, mais precisamente, é negro, não se pode esperar muito mais. Não posso reclamar, na verdade, sou forte o bastante pra aguentar alguns meses nesse trabalho, juntar dinheiro e ir embora de uma vez desse fim de mundo, mas vejo as pessoas com quem trabalho, e só ai entendo porque continuam aqui. Elas já não tem forças, talvez ainda sintam esperança, mas já não podem ou não conseguem mais lutar...
Por mais que eu goste de morar aqui, não existe uma alma vivente que se prese que realmente queira trabalhar para esses brancos ricos e canalhas. Por isso, o mais rápido possível, vou dar o fora daqui. O que espero não demorar muito...
- Jeremy, - a voz rouca de Dinks me tira dos meus devaneios - Atenção garoto. Com um maneio discreto com a cabeça, ele aponta para alguém a minha esquerda, dentro da grande casa branca.
E lá está ela. De novo. Observo seus olhos atentos e rápidos acompanharem os trabalhadores ao seu redor. Por um segundo, seus olhos azuis como o céu, me fitam, cautelosos. Seus lábios se curvam rapidamente em um sorriso, e então, ela não está mais lá.
Volto minha atenção aos pequenos tufos de algodão em minhas mãos. Branco. Como sua pele. Um arrepio sobe por minha espinha. Todos eles são iguais: ricos, cheios de si, mesquinhos e arrogantes. Ela é igual a eles. Repito isso em minha mente, como uma espécie de mantra. Quanto mais eu faço isso, mais me convenço que estou errado.
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Alma Negra
RomanceOutono de 1962, os Estados Unidos da América está em guerra. Negros e brancos erguem seus punhos e voz contra uma sociedade racista, conservadora e capitalista. Todos os dias ouvimos pelo rádio que mais e mais pessoas se juntam as causas e partidos...