Lize
Vejo seus olhos brilhando, e sei que valeu a pena ter dado a ele o velho livro de meu avô. Por mais fechado e durão que ele possa parecer, sei que não é bem assim que ele é. Por mais que eu queira que não seja verdade, eu sei que o deixo confuso. Até meio perdido. Meu jeito bipolar parece o irritar e encantar, ás vezes. Mas acho isso engraçado, deixa-o bem graça.
-- Vem cá. - digo, e Jeremy me olha esquisito. - Temos que começar logo nossa aula! - explico.
Olhando apenas por um segundo os cavalos na mangueira, ele vem até mim, sentando-se á minha frente, cruzando as pernas e me encarando.
-- Abra o livro na pagina 10...
Eu fiquei a manha inteira lendo, pesquisando e tentando aprender tudo que há nesse livro, apenas para ensiná-lo, pois sei que é importante para ele. As próximas horas, que parecem minutos, nós debatemos e defendemos a tese de nossos filósofos preferidos, estudamos matemática e um pouco de física. Mas minhas matérias preferidas eram a filosofia e a sociologia, e pelo jeito, ás dele também. Sempre gostei de pensar, não apenas pensar em qualquer coisa, mas me perguntar, me questionar sobre nossos costumes e filosofias de vida. Se, de alguma maneira, o certo e o errado, ao nosso ver, pudesse estar ''errado''. Se o que nós tachamos de preciso e desnecessário, na verdade estivesse trocado e invertido por uma sociedade primaria e cheia de medos e preconceitos.
Foi um dia bom e estável, se comparado a tempestade de emoções que me invadiam nessas semanas... Nem percebi o tempo passar. E quando me forcei a dar adeus a Jeremy e voltar para casa, o sol dava seu adeus, também, deixando raios cor de rosa e laranjas pelo céu já acinzentado.
Luna não estava em casa, tinha ido a cidade comprar produtos de beleza, segundo o bilhete deixado por ela sobre a mesa. Meu pai ainda estava pela fazenda, trabalhando. Junto com o bilhete de minha irmã estava a correspondência, que chegava uma vez por semana. A grande maioria era de alguns bancos, e uma era endereçada á mim.
Quando reconheci a letra cursiva e bem feita, corri escadas acima, coração na mão. Mama havia escrito uma carta, depois de meses! Eu já estava quase chorando, mesmo antes de abri-la. Rasguei o papel amarelado com cuidado, respirando fundo diversas vezes, tentando acalmar minha euforia. Mas não dava! Eu queria ler aquela carta, queria saber o que estava acontecendo na cidade, com Mama. Eu precisava saber!
Sorrio ao ler meu nome escrito ali, e não pude deixar de imaginar as mãos ásperas e gentis da mulher que me cuidou, que me amou, desenhando e escrevendo aquelas palavras para mim...
"Querida Lize,
Sei que já faz tempo dês de á última carta, e desculpe por isso, mas as coisas tem sido difíceis para mim aqui na cidade grande. Fui despedida do meu antigo emprego e demorei quase um mês para arrumar outro trabalho; mas consegui um em uma lanchonete, um tanto longe de casa, mas pelo menos agora tenho dinheiro para comprar o que comer.
Mas não quero aborrecê-la com minha história, pequena Lize! Como vai você? Ainda tocando piano? Sinto tanto a sua falta... Devo dizer que estou aflita por você estar ai, sozinha. Sei que seu pai e sua irmã não são como você, que não te apóiam, e temo que eles vão fazê-la perder-se novamente....
Estou cansada Lize, o peso da idade já me sobrecarrega demais. Oh querida menininha de cabelos dourados, não fique desanimada com os choramingos de uma velha rabugenta, conte como vão seus estudos (diga que não deixou de buscar as respostas que tanto te intrigam!) e o que acontece de interessante na fazenda!?
Sei que você quer saber como está aqui na cidade, o que acontece nos protestos e, bem, não está nada bem... Já não podíamos sair á noite antes, imagina agora! A cada dia as prisões estão se enchendo, Lize. Sei que é por uma causa boa, e, Deus me ouça, acabará logo, mas por enquanto, não entendo como eles resistem a tanto sofrimento e dor... Esperança, eu diria. Esperança de dias melhores!
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Alma Negra
RomanceOutono de 1962, os Estados Unidos da América está em guerra. Negros e brancos erguem seus punhos e voz contra uma sociedade racista, conservadora e capitalista. Todos os dias ouvimos pelo rádio que mais e mais pessoas se juntam as causas e partidos...