Jeremy
Quando jogo o saco de esterco para dentro do caminhão, sinto um alivio em meus ombros. Caminhar com um saco de uns dez quilos nas costas por quase um quilometro não era fácil, mesmo que eu já estivesse acostumado. Mesmo estando frio, sinto o suor escorrer por minha testa, fazendo meus olhos arderem, o gosto amargo chegando a minha boca seca.
O trabalho ficou mais pesado depois que a safra de algodão foi perdida na tempestade. O ciclone havia destruído uma parte da colheita de todas as fazendas na redondeza. Os cafetões e senhores do algodão estavam putos da vida, e descontavam em seus empregados, mesmo que nós não tivéssemos nada a ver com isso.
Dei graças a Deus quando o novo capataz, Jackie, nos liberou para o almoço. Peguei o livro que Lize me emprestou de debaixo de minha cama e fui para a fila da comida. Descobrindo que seria feijoada com pão seco, de novo. Não que eu estivesse reclamando, porque eu estava mesmo, mas era a quarta semana que serviam feijão seco com batata, que eles chamavam de feijoada, e eu já estava enjoado. Lavei minhas mãos e peguei meu prato, seguindo para a parte mais afastada do galpão onde fazíamos as refeições. Me ajeitei, sentando no chão, e abri o livro, ao mesmo tempo que dava uma colherada na comida fumegante em meu colo.
''Lembro-me do jeito que o príncipe me observava no baile. Seus olhos passeando por meu corpo, cheios de desejo. '' Suspirei, tentando me focar na leitura, embora ela não fosse muito do tipo que eu apreciava. Era melosa e dramática. Não havia guerra, nem nada parecido, apenas uma camponesa e um príncipe, que a salvava de uma madrasta mal. Eu já tinha lido uma vez o livro, e estava lendo á segunda porque não tinha mais nada para ler, e Lize havia dito que eu só entraria para uma boa faculdade se eu lesse muito. Mas pessoalmente acho que eu deveria estar lendo coisas com menos beijos apaixonantes e corações partidos e mais algo sobre matemática, política ou filosofia. Mas como eu não tinha acesso a nada disso, tinha que me virar com o que tinha. Continuei a leitura, parando uma vez ou outra para anotar uma palavra que eu não conhecia o significado ou para reler uma parte confusa. Eu realmente me enrolava com o pensamento de Cinderela, não entendia como ela podia pensar que o príncipe não a amava se ele percorria o reino atrás dela?!
Segui lendo, lembrando que eu não tinha muito tempo, talvez mais alguns minutos, só o tempo de acabar esse capítulo.
Jackie começa a gritar que nosso tempo acabou, e que devemos voltar ao trabalho, exatamente quando eu fecho o livro de capa dura, terminando o penúltimo capítulo.
Lavei correndo meu prato e fui até meu quarto para guardar o livro, apressado. Pelo resto da tarde eu deveria levar os cavalos para a mangueira, que ficava no campo; o que não era a pior coisa do mundo. Eu gostava, de verdade. O patrão era exigente com seus cavalos, e gostava deles em forma. Por isso eu trabalhava com eles duas vezes por semana.
Por mais que eu tentasse afastar os pensamentos sobre Lize, eles insistiam em invadir minha mente, tomando conta de mim. Eu não sabia o que pensar a seu respeito. Ela era doce, divertida e verdadeiramente não se importava com minha cor de pele, o que era raro em uma garota branca e rica. Mas ela era diferente. Claro que ela era!, pensei, e muito. Mas por mais calmo que seus movimentos parecessem ser, havia uma melancolia por trás de seu olhar. A dor que emanava deles era quase plausível. Seu sorriso era verdadeiramente sincero, mas eu via que ela não conseguia esconder por trás dele seu medo. Eu via uma mistura de sentimentos nela. Até em seu sorriso, seu jeito de andar: como se não quisesse ser notada de jeito nenhum, quase que flutuando, para não fazer nenhum barulho. Tudo nela emanava algo mais. E isso me assustava. Ás vezes ela se fazia de indiferente, mas sem ser esnobe. Só que eu sabia que ela fazia isso para esconder quem realmente ela era. Por muito tempo eu fui assim também...

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Alma Negra
RomanceOutono de 1962, os Estados Unidos da América está em guerra. Negros e brancos erguem seus punhos e voz contra uma sociedade racista, conservadora e capitalista. Todos os dias ouvimos pelo rádio que mais e mais pessoas se juntam as causas e partidos...