Maria Paula colocou um ponto final. Era o fim das Memórias idênticas. Fez alguns
exercícios com os dedos e com o pulso: escrevia desde as duas da tarde em seu quarto.
Tinha tirado o domingo para isso.
A casa estava calma. Dona Lígia tinha saído. Maria Isabel estudava para as provas de
Português e História.
A memorialista resolveu pegar a última página e começar a fazer a revisão. Leu:
"Espero que o caro leitor não tenha encontrado nesta leitura um pífio prazer. Como o
tema aqui é confissão, devo confessar (pela penúltima vez) que eu mesma não estou
convencida da qualidade do trabalho. Mas ainda tenho algumas notícias a dar, e peço sua
paciência por mais algumas linhas.
Quero anunciar que estou abandonando minha carreira de modelo definitivamente.
Decisão minha, favorecida, digamos, pelo meu novo corte de cabelo. Segundo palavras da
minha várias vezes citada irmã, Maria Isabel, o penteado lembra um galo caolho, manchado
de magenta. Evidente exagero, quiçá despeito disfarçado.
Aqui devo desculpas ao ansioso leitor. Depois de várias tentativas, compreendi ser
incapaz tecnicamente de descrever a reação da minha mãe quando me viu assim. Darei
apenas pinceladas: uma palidez cadavérica tomou conta do seu rosto, enquanto buscava
qualquer coisa para dizer — o que não conseguiu. Subiu para o quarto e se trancou por horas.
Depois de um certo tempo, minha irmã e eu ficamos tão preocupadas que resolvemos
olhar pelo buraco da fechadura para confirmar se nossa mãe ainda vivia. Espero que o leitor
mais rígido nos perdoe essa malcriação, mas foi absolutamente necessária.
Se ela ainda vivia? Sim. Estava sentada, folheando um velho álbum de fotografia das
gêmeas mingau. Do tempo em que eram idênticas.
O vivido leitor bem sabe que a solução dos nossos problemas chega de mula manca,
mas chega. Não é que uma produtora de comerciais ligou? Não, não se preocupe o leitor. Nada de mal adveio. Tinha apenas se lembrado de mamãe — que tantas vezes vira chegando
com as fotos das filhas sob o braço — para estrelar um comercial ambientado nos anos
sessenta. Vão lançar um novo lustra-móveis.
O memorioso leitor ainda se recorda de Plínio, o raramente citado ex-namorado de Maria
Isabel? Recebeu uma carta do pai — o tal que mora na Califórnia. Pois bem, o referido pai
perdeu o emprego e está voltando para o Brasil. Já avisou que nos primeiros meses vai
precisar de uma ajuda de doutor Ignacio.
E falando no pai, lembrei-me do filho, Eugênio. Eu sei que a curiosidade é muita, mas a
paciência é um grande exercício para uma alma saudável. Devo anunciar que ele pediu
finalmente Maria Isabel em namoro. Ela ainda não se convenceu a aceitar. Trata-se de um
rapaz confiante demais, diz.
Em tempo: descobri que Eugênio vai estudar no mesmo colégio que Maria Isabel, no
curso noturno. Foi o único lugar que aceitou a matrícula do rapaz a esta altura do ano letivo. É
sabido que bom entendimento intelectual vale por dois. Ou três.
Colocando de lado a imparcialidade literária, deixei a minha situação por último, porque é
fácil de ser descrita. Vamos a ela, então: estou apaixonada. Meu namoro com Edmundo vai de
vento em popa. Sinto-me mais feliz e mais bonita; e eu diria ainda, sob a pena de dar a mão à
palmatória, que, num certo sentido, também estou amadurecendo — como tanto insistia minha
pela última vez citada irmã Maria Isabel. Mas à minha moda.
Finalmente, devo confessar (pela última vez) que estou um pouco decepcionada com a
extensão das minhas memórias. Apenas doze páginas. Certamente não encontrarei editora
que se interesse. Mas minha professora de português já me pediu para fazer uma leitura dos
originais. Assim se começa.
E assim, termino".Fim
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Office-boy em apuros - Bosco Brasil
Teen FictionO cotidiano cheio de encrencas de um office-boy que tem de aguentar a perseguição do chefe e descobrir qual das garotas gêmeas é sua verdadeira paixão. Com suplemento de atividades.