Eugênio vai cair nas minhas mãos

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O tapete no quarto de Eugênio estava polvilhado com o talco que ele usava após o
banho. O garoto tinha acabado de tomar uma ducha e se preparava para dormir.

Eugênio tentou dizer “boa noite”: abriu a boca
E o que se ouviu foi uma espécie de rugido selvagem

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Eugênio tentou dizer “boa noite”: abriu a boca
E o que se ouviu foi uma espécie de rugido selvagem...
— Vai dormir com este pijama? — perguntou a mãe.
Era um pijama estampado com minúsculos elefantes. Já estava ficando curto para
Eugênio.
— A senhora quer que eu troque?
Dona Clara amparou a cabeça do filho entre as mãos e o beijou na testa. Foi cuidar do
terno azul-marinho jogado sobre a cama. Ainda estava arrumada para a festa: vestido longo,
jóias. Mas a festa tinha acabado.
Apenas os passos do doutor Ignacio no corredor quebravam o silêncio da casa. Parou na
entrada do quarto do filho e chamou:
— Clara. Por favor.
Dona Clara saiu para o corredor. Os dois ficaram conversando em voz baixa.
As sombras dos aviõezinhos pendurados no teto se projetavam pelo quarto. A mais
assustadora era a do Fokker Dr1, pilotado pelo implacável Barão von Richthofen.
O garoto sentou-se à escrivaninha. Examinou o aeromodelo inacabado sobre a mesa: um
Nieuport 17C-1. Faltava pintar a camuflagem contra os balões observadores. — Seu pai quer ter uma conversa com você, Eugênio — disse dona Clara, voltando ao
quarto junto com o marido.
Não disse mais nada. Começou a preparar a cama para o filho dormir. Estendeu o
cobertor sobre o colchão, afofou o travesseiro, dobrou a borda da colcha.
— Falei com Edmundo — começou o pai.
— Ele não teve culpa.
— Eu sei.
— Vou dar uma pastinha nova para ele.
— Pode ser uma boa idéia.
Doutor Ignacio procurava falar da maneira mais calma possível. A pedido de dona Clara.
Tinha perdido um grande negócio. Sua cabeça fervilhava.
— Você tem consciência do que fez esta noite?
Eugênio estava com um frasco de cola para aeromodelo na mão. Verificava se tinha
acabado.
— Largue isso e preste atenção! — o pai levantou a voz. — Você precisa assumir suas
responsabilidades. Já não é mais uma criança!
— Por favor, Ignacio — intercedeu dona Clara, acenando para que o marido baixasse o
tom de voz.
— Mas esse menino precisa entender!
— Ele vai entender...
— Vai — disse o pai, tentando se controlar. — Claro que vai. Doutor Ignacio encarou o
filho. Respirava fundo, sem ritmo.
— Vou transferir sua matrícula para o curso noturno — retomou o pai.
— Por quê?! — assustou-se Eugênio.
— Segunda-feira você começa a trabalhar na firma. Vai ajudar o Edmundo. A firma está
precisando de mais um boy.
O pai deixou o quarto, batendo a porta. Nem olhou para trás. Eugênio ficou um tempo em
silêncio. Perguntou para a mãe:
— A senhora não vai desembaraçar meu cabelo, hoje? Sem dizer nada, a mãe começou
a escovar com cuidado o cabelo do menino. Ele ficou olhando o colar no pescoço de dona
Clara. As pedras cintilavam.
— Mãe.
— O quê?
— A senhora vai me levar para o trabalho?
Dona Clara parou de escovar. Olhou para o aniversariante c disse:
— Não, meu filho. Você vai ter de ir sozinho. Voltou a escovar. Pensando no futuro do
filho.
Bem longe dali, em uma grande avenida da cidade, outra pessoa também pensava em
Eugênio. Era Plínio. Mas de modo diferente.
Depois de deixar Maria Isabel e Maria Paula em casa, foi se encontrar com os amigos:
Odacir, Tilão, Nilo e Fraguinha. Gostava de passear até altas horas com o carro da firma do
tio. Seguiam para um lugar que permanecia aberto a noite toda. Vendia de tudo: batatas fritas,
refrigerantes em lata, revistas.
Entraram e cumprimentaram o caixa, que chamavam de Bolinha. Fosse gordo ou fosse
magro, para eles era sempre o mesmo. Fraguinha já foi pegando um pacote de batatas e
abrindo. Era o mais velho da turma: 27 anos. Tossia muito, tinha os olhos inchados e o cabelo
oleoso. Nunca trabalhara na vida. Tilão e Nilo adoravam remexer as revistas. Os dois eram tipos comuns. Muito parecidos.
Mas Tilão preferia as revistas de lutas marciais e Nilo se dedicava a adivinhar mulheres nuas
sob as tarjas negras nas capas.
Plínio se sentia bem no lugar: ar condicionado, luz fluorescente, barras de chocolate
importado. Lembrava a Califórnia, dizia o tempo todo. Era sempre ele quem pagava as contas.
Sem reclamar.
Naquela noite ele estava mais alegre que o normal. Todos repararam. Ria à toa. Odacir
se aproximou. Era um rapaz alto, forte, apático, de olhar distante. Tinha uma mancha no
branco do olho esquerdo. Só tomava café. Sempre. Perguntou:
— Por que a alegria?
— Hoje é sexta.
— Três e meia da manhã. Já estamos no sábado.
— Melhor! Melhor...
— O que tem de mais este sábado?
— Depois de amanhã é segunda.
— E daí?
— Segunda meu primo vai cair nas minhas mãos — anunciou Plínio.
Abriu uma lata de refrigerante e gargalhou quando o líquido espirrou sobre o rapaz da
caixa registradora.
— Tchau, Bolinha! — disse, saindo com seus amigos.

Office-boy em apuros - Bosco Brasil Onde histórias criam vida. Descubra agora