Esse negócio arde mesmo!

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Edmundo ficou tão feliz depois de receber a boa notícia de Eugênio que nem sentiu as
horas passarem. Terminou rapidamente seu serviço e foi correndo avisar Cosme.
— Pode confiar em mim, filho — disse o vigia. — Dessa vez eu não decepciono.
E parecia sincero. Almoçaram juntos para comemorar. Na hora de Edmundo voltar para a
firma, Cosme se virou e disse:
— Nunca mais quero ver Glória na vida.
Essa frase ficou voltando na cabeça do boy o resto do dia. Quanto tempo tinha esperado
ouvir isso do pai? Por que então aquela decisão o incomodava tanto?
Mas o dia continuou. Como sempre o trabalho era muito e urgente.
Doutor Ignacio pediu para ele levar uma encomenda até o consultório de dona Clara.
Teve de pegar condução. Trânsito congestionado, tarde abafada: Edmundo acabou
cochilando. Quando acordou, já estava quase perdendo o ponto. Levantou-se e deu o sinal.
Enquanto esperava para descer do ônibus, foi tomado de novo por aquela estranha
sensação de estar sendo vigiado. Mais do que sensação. Tinha certeza: só podia ser Glória.
Mas não se voltou. Esperou o momento certo. Queria surpreendê-la.
Na hora de descer, bateu o olho no espelho retrovisor. Teve a impressão de ver o rosto
de sua mãe, de relance. Quase tremia com a expectativa. Virou o rosto bruscamente para
trás. Tratava-se, na verdade, de uma mulher que nunca tinha visto na vida. E nem muito
parecida com Glória. Por conta disso distraiu-se e escorregou, arranhando a mão no asfalto.
O ônibus seguiu em frente.
Já no consultório, a mão de Edmundo ainda sangrava. Quando dona Clara viu o
machucado, insistiu em fazer um curativo.
— Não foi nada — disse o boy.
— Mas não custa tratar. Edmundo ficou olhando para a parede enquanto dona Clara limpava o ferimento. Seu
consultório estava cheio de fotos de crianças.
— Quem são esses bebês? — perguntou Edmundo.
— Meus pacientes. Fiz o parto de todos eles.
Dona Clara pegava delicadamente a mão de Edmundo.
— Não são bonitinhos? — perguntou a doutora, gracejando.
— Parecem assustados.
— É. Um pouco.
Edmundo também tinha a mesma expressão, nessa idade. Lembrou-se de uma foto com
ele, sua mãe e seu pai. Na frente de um gigantesco tanque de petróleo. Cosme achou que era
um lugar bonito. Glória piscou na hora de bater a chapa; saiu de olhos fechados.
— Agora, vai arder um pouquinho — avisou dona Clara, encostando um algodãozinho
iodado.
— Uuuuii!
Dona Clara soprou o machucado.
— Parou de arder?
Continuou a fazer o curativo. Eugênio não conseguia parar de olhar as caras dos bebês.
Pareciam mesmo assustados, pensou. Com o quê?
— Pronto — disse dona Clara. — Mas é bom trocar o curativo amanhã. Pede pra sua
mãe assoprar.
— Eu não tenho mãe.
— Não?!
— Quer dizer, tenho! Todo mundo tem mãe.
Edmundo conteve um soluço. Ficou um tempo em silêncio, depois disse:
— Glória não quer voltar pra casa. Conteve outro soluço. E completou:
— Também não quero que ela volte.
— Vou trazer um copo d'água...
— Não precisa. Obrigado pelo curativo. Puxa! Esse negócio arde mesmo — disse o boy
para disfarçar, enquanto apanhava apressado sua pastinha. Foi saindo com os olhos cheios de
lágrimas.
Edmundo não pegou o ônibus para voltar à firma. Foi a pé. Passos duros, nervosos. Sua
cabeça fervilhava. Lembrou-se de que já era sexta-feira novamente. E se sentia só.
Logo que chegou ao escritório, dirigiu-se à copa para apanhar sua marmita. Encontrou
Eugênio como no dia anterior. E, como no dia anterior, também não queria conversar com ele.
— Tudo bem? — perguntou Eugênio, notando os olhos vermelhos de Edmundo.
— Pra que quer saber?
— Só queria conversar.
— Sem chance.
— A gente bem que precisava.
— Esse lance do meu pai... — disse Edmundo, coçando por baixo da onda em seu
cabelo. — Acho que tenho de dizer obrigado.
— Nada disso.
— Então não tem mais nada.
— Tem. Maria Isabel.
— O que tem? Cobrando?
— Larga a mão! Só quero acertar as coisas.
— A menina tinha marcado encontro comigo. Você é que atravessou. — Sem essa. A história toda começou na festa da sexta passada. Devia ter falado de
mim; e nada!
— Acha que é assim? Acha que a Maria Isabel é um daqueles hambúrgueres que você
me pedia pra levar em casa? A menina gostou foi de mim.
— E por que ela topou me encontrar na outra noite?
— Porque você é o "patrãozinho"! Ficaram em silêncio um longo tempo.
— Eu não acredito nisso — murmurou Eugênio. Edmundo quase sentiu remorsos pelo
que disse. Eugênio tinha-se mostrado um bom companheiro nos últimos dias. O garoto estava
mesmo trabalhando duro como ele. Além disso, estava sinceramente agradecido pela sua
ajuda no caso do emprego para Cosme.
— O negócio é acabar logo com esse embaço — disse Edmundo, depois de um certo
tempo. — Liga pra Maria Isabel.
Vamos agitar um encontro. Os três. Ela decide: eu, você ou nenhum dos dois...
Quando o telefone soou na Doceria Rebolo, Maria Paula é quem estava por perto.
— Doceria Rebolo, boa tarde — declamou Maria Paula, atendendo.
— A Maria Isabel? — perguntou Eugênio do outro lado da linha, pensando ter
reconhecido a voz da garota.
Maria Paula ia chamar a irmã. Mas interrompeu o gesto. Não resistiu e respondeu:
— Pode falar.
— Aqui é o Eugênio.
— Eugênio? Aquele do Edmundo?! -É...
— Como é que ele está? — perguntou, ansiosa.
— Você vai saber. Será que a gente podia se encontrar? Eu, você e o Edmundo.
— Grande! Onde?
— Conhece uma passagem subterrânea na avenida Central?
— Conheço. É lá?
— Tudo bem?
— Só tem uma coisa. Eu queria que você passasse aqui pra me pegar. Quero que
conheça minha irmã.
Marcaram horário e desligaram.
Eugênio contou então a Edmundo o que tinham combinado. Inclusive que ia passar para
pegá-la.
O boy pensou um instante. Lembrou-se de que aquela era apenas mais uma ilusão que
perdia e murmurou:
— Deixa quieto o encontro. Ela gosta é de você.

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