IV. A cup of coffee?

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Ah, o inferno. 

Sem dúvidas, se existisse uma lista dos dez lugares mais idealizados pelos humanos no geral, ele estaria primeiro. A humanidade era tão obcecada pela ideia do inferno que em alguns minutos de pesquisa na internet era possível encontrar dezenas de produções que retratavam como o inferno parecia, infelizmente a que mais era levada como "real" era a retratada pelos pregadores predominantes da religião católica e protestante, onde o inferno era chamas, dor e agonia, e para não desvalorizar tudo o que eles ditavam, o inferno conseguia sim parecer intimidador, mas só quando o breu da noite sem estrelas tomava os becos escuros e o silêncio das ruas desertas durava por horas.

Quando o dia amanhecia, o inferno era como qualquer cidade terrestre pacata, as pessoas abriam suas portas, cumprimentavam seus vizinhos e andavam pela rua em direção aos seus trabalhos ou algum outro compromisso. Chegava a ser monótono, mas uma manhã em específico decidiu ser diferente. 

O ar pareceu ficar diferente quando uma certa casa de arquitetura do século IX foi trancada do lado de fora e seu proprietário começou a caminhar em direção a rua recebendo uma chuva de olhares chocados, mas devolvendo a estranheza com um sorriso simpático.

Àquela altura todo o inferno conhecia o Demônio do acordo, como não conhecer a figura que simplesmente se manifestou como um pecador qualquer e em pouco tempo tinha a influência de um demônio, e atualmente carregava o título de ser o único a enfrentar o diabo e sair ileso. 

Não era a primeira vez que Harry acordava e decidia dar um passeio pela cidade, mas também não era comum encontrá-lo por aí pelas ruas, desprezava aglomerações como desprezava muitas das tecnologias adotadas no último século, mas que mal fazia uma caminhada matinal?

Chegando ao centro comercial do inferno, o demônio se divertiu com os olhares espantados em sua direção, como era de se esperar a rua estava cheia, e caminhou tranquilamente pela calçada oposta a da praça que o rei do inferno havia discursado dias atrás. 

Manteve seu sorriso no rosto quando algumas pessoas mudaram de calçada para não terem que passar ao seu lado, a maioria se tratava de pecadores que haviam feito um acordo com ele, era engraçado a forma como o evitavam, como se um dia não tivessem batido em sua porta e molhado a ponta de seus sapatos com lágrimas ao chorarem aos seus pés implorando ajuda, ainda bem que Harry nunca teve qualquer apreço pela humanidade. 

O Demônio do acordo continuou a caminhar calmamente por longos minutos, atravessou uma ou duas ruas, chegando em uma rua deserta conhecida por ultimamente ser o lugar escolhido pelos serafins para jogarem os pecadores recém chegados, a luz que iluminava o centro do inferno chegava em menos quantidade naquele ponto específico entre o centro e o norte, choramingos e lamentações eram escutados vindo de todas as direções de pecadores largados pelo chão, mas um em específico acabou se destacando para Harry. 

Foi ao passar em frente a um beco estreito e escuro em que não relutou em parar de seguir em frente para escutar novamente os choramingos contidos, porém altos o suficiente para sua audição apurada. 

Era como se o demônio conseguisse sentir a presença de uma alma em agonia, naquele momento ela parecia imperceptível, mas decidiu acreditar em seus instintos e dar alguns passos para dentro da escuridão em busca do que procurava. 

Sentiu como se seu nome tivesse sido tirado em um sorteio quando seus olhos focaram em um corpo encolhido no canto do beco, atrás de algumas sacolas rasgadas de lixo.

Harry conseguia conhecer uma alma em miséria de longe, mas se seu dom não fosse o suficiente, não existia dúvida ao observar a vergonha estampada nos olhos profundos daquela pecadora com as poucas roupas que vestia manchadas, ela estava sentada sobre o chão sujo abraçando as próprias pernas desnudas igualmente sujas e preenchidas em alguns lugares por pontos de costura malfeitos, era como se sua pele tivesse sido retirada e costurada de volta de qualquer jeito, a pele nesses pontos não cicatrizados era inchada e em algumas cicatrizes chegava a escorrer sangue.  

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