000. marina santos

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≾.      prólogo

"Meu pai foi embora quando eu tinha sete anos. Ainda me lembro do gosto da bala de eucalipto que ele me deu, antes de fechar o portão pesado atrás de mim e não voltar mais pra casa.
Era terça-feira e minha mãe fez uma 'comida de domingo': macarrão com salsicha. Estava tão sem sal quanto o brio dela naquela noite; foi a primeira vez que eu percebi que as pessoas podem sorrir enquanto se afogam em tristeza.

Nossa vida mudou muito: a mãe presente agora era a mãe que acordava às duas da manhã para vender café na porta de uma estação. Quando ela chegava em casa, mal podia nos dar atenção. Perdida entre formas de bolo, garrafas térmicas e listas de compras, o único tempo que tínhamos juntas era enquanto eu lavava as louças que ela havia sujado enquanto preparava tudo novamente, para o dia seguinte.

Foi pior para o Victor. Ele só tinha dois anos e precisava de algum adulto responsável para lhe ensinar as palavras, o barulho dos bichos, como não levar choque nas tomadas... tive que crescer antes do tempo e ser tudo isso para ele. Vez ou outra algum vizinho passava pela janela e 'batia os olhos' em nós dois pela manhã, só para garantir que estávamos bem até que a minha mãe chegasse.

O Victor foi o meu primeiro aluno. Quando ele foi para o primário, eu já estava crescida e queria que ele fosse o número um da classe, como eu. O ensinei a ler em um almanaque - rasgado - da Magali; inventávamos as palavras que não estavam mais nas folhas incompletas e isso só nos fez mais próximos.
Foi assim que eu entendi que levava jeito para ensinar e que eu sentia prazer nisto.

Os anos se passaram e o meu irmão já não era o número um da classe. Gostava de bagunça, futebol e mulher; eu ia à todas as suas reuniões mas já não podia me dedicar totalmente aos cuidados dele. De manhã, ajudava a minha mãe na estação e chegando em casa, estudava para o vestibular.
Letras na UFRJ. Quinto lugar. Foi o dia mais emocionante da minha vida; minha mãe não foi trabalhar e me acompanhou até o campus. Ficou comigo, procurando entre centenas de nomes, o meu. Foi ela quem encontrou e num grito, me abraçou. 'Valeu a pena' eu pensei enquanto um filme de cada renuncia insistia em passar na minha mente.
Ver uma mãe preta feliz é o trunfo de toda menina periférica.

Foi na faculdade que aprendi como não devo ser. Desenvolvi ali a minha capacidade de ser ainda mais dona do meu destino, obstinada e responsável; apesar de ter passado em dois concursos, nunca lecionei numa sala de aula como sonhava, no início de tudo. Minha mãe nunca aceitou.

Meu irmão engravidou uma namoradinha e eu precisava fazer algo para ajuda-los a tornar aquilo um pouco mais leve... foi quando tudo começou. Consegui primeiro algumas doações. Depois conheci outras meninas que também estavam na mesma situação de gravidez na adolescência; quando dei por mim, a sala da minha casa estava repleta de meninas, mães e pais, que se uniam à mim todas as quintas-feiras para reuniões sobre conscientização sexual, cadastramento para auxílios governamentais e mais do que tudo, acolhimento.

O espaço ficou pequeno demais para tantas pessoas, em pouco tempo. Meu pai me ajudou com um salão vazio que, vez ou outra alugava. Ali, finalmente eu tinha um espaço para implantar uma ONG.
Meu peito se encheu quando finalmente tive um lugar mais adequado para receber e acolher todas aquelas pessoas que acreditavam no meu trabalho. Reformei cada pedaço do salão, com muito suor.

Fazem quatro dias que uma operação do BOPE acabou com tudo isso; eu estava me preparando para baixar as portas e concluir mais um dia até que me vi na mira de um fuzil da polícia.
Eles me deitaram no chão, me perguntaram sobre coisas que não me lembro agora e reviraram tudo. O mais autoritário deles me levantou e pôs contra à parede, olhando bem no fundo dos olhos; disse que se encontrassem algo me levariam para a 'vala'. 'Eu sou professora.' foi a única frase que consegui dizer.
Claro que não encontraram nada e também, não me pediram desculpas pelo esculacho.

Não esqueci dos olhos daquele homem grosseiro, que me apertou contra a parede e gritou comigo. Eu queria ter o poder de acabar com aquele porco mas eu não tinha tempo ou forças pra isso; era hora de reconstruir o meu espaço e enfim, voltar à atender as minhas crianças em paz.
Até quando num dia, ouvi uma batida na chapa do portão.
"Estamos em reforma" - eu falei enquanto passava o rolo com tinta azul na parede esburacada. Só ouvi silêncio e então, novas batidas.
Meu corpo ainda estava tenso com o acontecido mas ainda assim, larguei tudo e desci as escadas que me levavam até o portão. Abri uma pequena fresta e lá estava o dono daquele par de olhos brutos novamente. Sem farda, sem fuzil e com um semblante falsamente relaxado.
Senti meu peito disparar. Parecia uma emboscada; minhas mãos suavam frias, minha boca tremia e eu senti o chão faltar. Tentei sussurrar algo mas ele bateu novamente na chapa de ferro soldada.
"Professora, eu vim em missão de paz." - paz. Esse sujeito sabe o que é isso?

Trémula, abri lentamente o portão e agora, conseguia finalmente ver a materialização do homem de meia-idade que impaciente, chamava por mim. Ele me deu um sorriso fraco e perguntou:
"Posso entrar?"'

•••

≾.      notes

Oi, lindezxs! Gostaram do prólogo?
Está bem curtinho mas não se preocupem: temos muuuuita história para contar por aqui.
Se vocês gostaram e querem que eu poste o primeiro capítulo, comentem e deem estrelas aqui.
Vou começar a lançar as metas de interação em breve.
Amor,
H.M.

maria  batalhão | CAPITÃO NASCIMENTOOnde histórias criam vida. Descubra agora