Provas (Parte 1): Você é leal?

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ão gosto de ter que realizar provas. Não gosto de ter que provar aos outros que sou capaz de algo quando eles já sabem que sou capaz. Quando me tornei a Flautista Mágica, eu jurei um compromisso com aquele povo. Jurei protegê-los. E eu faço tudo para cumprir essa promessa. Mas isso é completamente diferente de sair numa jornada arriscada, realizando provas mortais e arriscando não só a minha vida, como a do Fernando também... só porque os deuses querem!
Naquela noite, minha mãe, minha avó e eu havíamos sido convidadas para uma festa na casa de uma amiga nossa (Meire). Os pais dela, que há muito eu considerava como avós, faziam aniversário no mesmo dia e estávamos ali para comemorar.
— Já provaram os doces? — Sorrindo, peguei um brigadeiro em cima da mesa e enfiei na boca — Isso aqui tá uma delícia!
— Eu que fiz! — Gritou Rosileide, acenando freneticamente. Aquilo fez todo mundo rir. Todos nós sabíamos que ela nunca soubera nada de confeitaria.
— Acredito. — Falei, rindo. Era até estranho isso. Estar... em paz, sabem? Digo, eu sou tão acostumada a estar sempre enfrentando empecilhos. Estou tão acostumada a sempre ter que lidar com problemas! E estar ali, agindo como alguém normal... sendo alguém normal (e não a famosa Flautista Mágica. Não o Oráculo de Egyptum. Apenas eu)... aquilo era maravilhoso!
— E aí? — Júlia (uma das netas dos aniversariantes) passou o braço por meus ombros — Tem alguma música pra nós?
Sorri de soslaio. É claro que tenho. Sempre gostei de cantar. Não é só o Fernando que manda bem nisso, tá?
— Eu tenho sim. — Confirmei, indo para o centro da sala — Essa aqui, é dedicada especialmente aos nossos queridos aniversariantes! — Eu me preparei para cantar. Já tinha a música perfeita para aquele momento gravada em minha mente. Mas aí... aquilo me fez parar.
Eu conhecia cada um dos que estavam naquela festa e sabia que ele não era um dos convidados. Claro que não. Ainda assim, ele estava ali, parado próximo à porta de um dos quartos, com os braços cruzados e em uma pose elegante. Estava bem vestido: terno risca de giz, calças compridas escuras, gravata vermelha... Onde ele conseguira aquelas roupas?
— Me... Me desculpem, pessoal. — pedi ao recuar — Podem deixar isso para outra hora?
— Algum problema? — Indagou minha mãe, franzindo o cenho.
— Hã... Eu... Não. Eu só... — Oráculos não mentem. Eu tinha que dizer a verdade, mas não por completo. Droga de vida dupla! — Preciso fazer uma coisa. Podem prosseguir com a festa! — E fui em direção ao corredor. Em direção ao quarto. Em direção a ele.
— Olá, Flautista! — Saudou, me puxando pela mão para dentro do quarto e fechando a porta. Sua voz duplicada me fez sentir um calafrio.
— Jano? — encarei suas duas faces. Uma, (a direita) tinha um olhar jovial. O brilho de diversão em seus olhos de âmbar parecia envolver todo o seu rosto pálido. Já a esquerda, tinha olhos de um cinza tempestuoso. A seriedade que emanava dele era assustadora e reconfortante ao mesmo tempo — Mas o que raios você tá fazendo aqui?
— Que recepção... — A face direita choramingou.
— Tá. Desculpa. — Revirei os olhos. Entendam uma coisa: eu gosto do Jano. Da face direita, principalmente. Não tem como você não rir só de olhar para aqueles olhos travessos. Mas, às vezes, o Jano pode ser assustador. Esse seu poder de adentrar qualquer lugar... de abrir qualquer porta... faz você sentir que ele sempre vai estar te observando. E... eu não gosto nada disso — Mas é sério: O que aconteceu? Você não viria até aqui se não fosse algo sério. Viria?
— Não. — a face esquerda resmungou — A verdade é que eu nem queria vir.
— Então... — Sentei-me na cama e fiz um gesto, pedindo que se sentasse — O que quer?
— Os deuses querem... — ele sentou-se. Olhá-lo fixamente nos olhos me deixou levemente enjoada. Era quase como olhar para um caleidoscópio: os olhos dele te confundem. Te enganam. Te prendem. Você é incapaz de saber o que ele pensa — te testar. — Explicou a face esquerda.
— Me testar? — repeti, fazendo uma careta — Ah, pronto! Me testar pra quê?
— Eu sei lá! — a face direita sorriu — Pelo que ouvi... querem ver o quanto você é leal.
— É o quê?! — Me levantei num salto. Seus olhos me acompanharam — Eu lutei ao seu lado! Isso não basta?! Os sirvo desde que coloquei os pés no Reino Dourado, e eles querem saber se sou leal?! Mas que bobagem é essa?!
— Você sabe que está falando com “um deles”, não sabe? — a face esquerda me fuzilou com um olhar.
— Você não! — Suspirei — Isso é diferente. — e me sentei ao seu lado de novo — Olha, Jano: Eu não tenho o que provar. Você sabe que sou leal. Eu sou monoteísta, mas nem por isso desrespeito vocês.
— Sabemos. — Ambos disseram — Mas alguns deuses ainda duvidam disso.
— Quem?
— Nã-nã! — a face direita ergueu uma das mãos — Não vou dizer.
— Realize as provas. — pediu a outra. Os olhos tempestuosos fixos em mim — Ao menos assim ele te deixa em paz e me deixa em paz. Não gosto nada daquele velho.
— Tudo bem. — me rendi — Passarei pelas provas. Mostrarei minha lealdade se assim querem. Mas eu vou avisando, Jano — fiz uma bola de fogo surgir uma das minhas mãos — Se isso começar a envolver aqueles que amo...
— E vai. Acha que vou deixar o músico de fora?
— Jano. — Pela primeira vez, senti vontade de estapeá-lo.
— Caretas não me assustam. — a face esquerda me encarou, sério. Seus olhos cinzentos pareciam girar infinitamente. Contive a vontade de vomitar — E ameaças também não. Tanto o músico quanto você estarão no jogo. Sua provação começa... — uma de suas mãos geladas pousou em meu rosto e senti como se entrasse em transe — Agora. — Em minha mente, uma porta abriu-se. Uma porta que me arrastou para um caminho sem volta. Uma porta que parecia me obrigar a aceitar esse caminho. Parecia me forçar a cumprir as provas. E, contra minha vontade, eu passei por ela.
                                             ● ● ●
Acordei na fronteira do Reino Dourado. A imagem daqueles olhos caleidoscópicos ainda piscava em minha mente, me deixando tonta. Levantando-me um tanto cambaleante, fui até o castelo. Eles querem me testar. E vão envolver o Fernando nisso. E eu sentia... que não seria só ele.
Enquanto passava pelo vilarejo, observei o céu já iluminado pelo sol. Por quanto tempo dormi? Quando eu encontrasse Jano, certamente o ensinaria a não deixar as pessoas inconscientes sem o consentimento delas. Que falta de educação!
Entrando no castelo, subi as escadas e fui direto ao quarto do músico. Eu não queria envolvê-lo naquilo. Queria proporcionar-lhe ao menos um instante de paz. Mas... nunca é como queremos. Nunca.
Abri a porta devagar. As cortinas grossas na janela deixavam o lugar mergulhado numa escuridão confortável. Uma escuridão que somada ao calor das cobertas macias certamente era uma boa
justificativa para ele detestar sair da cama tão cedo.
— Bom dia. — Sussurrei ao me aproximar e acariciar seus cabelos.
— Bom... — ele abriu os olhos com certa relutância — ... dia. — e me examinou por um instante antes de bocejar e se espreguiçar — A quanto tempo chegou?
— Não muito. — indo até a janela, abri as cortinas. O sol batendo em meu rosto e me lembrando o motivo pelo qual eu estava ali. Isso me fez suspirar.
— Laíres? — o filho de Vigart levantou-se e foi até mim — Você tá bem?
— Você acha que sou leal a este povo, Fernando?
— Hã?
— Acha que sou leal aos Imaginary e aos deuses deste Universo?
— Claro que é! — seus braços envolveram minha cintura — Sem dúvida alguma!
— Os deuses duvidam.
— O que quer dizer?
— O Jano me procurou ontem. Disse... que alguns deuses não estão convencidos da minha lealdade. Querem me testar. Testar nós dois.
Ele recuou. A expressão de dúvida em seu rosto refletia bem o que eu estava sentindo naquela hora.
— Certo. Querem nos testar. Mas... como? O que querem da gente? Digo... nós lutamos ao lado deles, não lutamos?
— Lutamos. Mas acho que isso não foi o suficiente.
— Isso não é justo! — Cruzou os braços sobre o peito.
— Ninguém disse que seria justo. — Viramo-nos na direção da nova voz. Mas, dessa vez, não era Jano quem nos observava à porta do quarto. Era...
— Trofônio? — Estremeci. O simples fato de vê-lo ali fazia meu coração acelerar (E não. Não era de medo. Estava BEM longe disso).
— Olá, Searcher. — e para o filho de Vigart — Olá, Zaphenath. — Fernando estremeceu ao ouvir o próprio nome sendo pronunciado pelo Vidente das Trevas. E eu não o culpava. Naquele momento, Trofônio o olhava como se quisesse arrancar-lhe o diamante. Como se quisesse fazer o rapaz em pedaços.
— O que está fazendo aqui? — Questionei, contendo a vontade de me lançar em seus braços e beijá-lo.
— Vim anunciar sua primeira prova. Mas, antes de tudo... — tirando um medalhão negro do bolso da sua túnica, ele o jogou para o filho de Vigart — Use isso.
— Por... Por... Por quê?
— Sem perguntas. Use-o se não quiser que eu te mate agora mesmo.
Com as mãos tremendo, ele obedeceu. O medalhão escuro cobria a joia cravada em sua pele, ocultando-a por inteiro.
— Qual é a prova? — Perguntei sem olhar para o filho de Apolo. Meus olhos estavam fixos em Fernando. No medalhão sombrio. Por que Trofônio o fizera usar aquilo?
— Vocês têm um monstro para matar. Um ser horrendo que está matando e devorando espíritos da natureza. Matem-no... e a primeira prova estará cumprida.
— Monstro? — Fernando empalideceu.
— Um Uthog. — Explicou — Você já ouviu sobre essas coisas, Fernando. Sabe do que são capazes.
— Matar um monstro. — dei de ombros — Sem problemas. Já fiz isso muitas vezes.
— Eu sei, Searcher.
— Para de me chamar assim.
— Mas talvez o lugar faça vocês dois hesitarem.
— Onde está essa aberração? — O músico tremia. Parecia querer chorar. Uthog. Eu nunca ouvira falar dessas coisas. Quão apavorante elas realmente eram?
— No... — Trofônio fez uma pausa dramática — Ele está no Beco das Ciladas.
Senti meu sangue gelar. Beco das Ciladas. Na mesma hora, consegui ouvir o grito ensurdecedor delas: das plantas que quase mataram o Fernando certa vez. Mandrágoras.
— Não. — lancei a Trofônio um olhar afiado — Definitivamente não. E eu não dou a mínima a esse tal de Uthog. São aquelas malditas plantas. Não. Se os deuses quiserem, eles que realizem essa droga de prova!
— E mais uma vez... — ele aproximou-se de Fernando e sacou uma adaga, mirando-a em sua direção — Ele te faz hesitar.
— Se afasta de mim... — a voz do Menestrel Douradiano não passava de um sussurro amedrontado.
— Você é a corrente que a prende, Fernando. É por sua causa, por causa do seu medo, que ela hesita em fazer qualquer coisa.
— Fica longe dele. — Instintivamente, envolvi o amedrontado Zaphenath em um abraço. O rapaz parecia querer esconder-se em meus braços — Se isso significar arriscar a vida dele, Trofônio, pode esquecer. Que os deuses fiquem com suas dúvidas bobas!
— ESSA DROGA DE MEDALHÃO O PROTEGERÁ! — Exaltou-se — Pare de tratá-lo como se ele fosse o centro de tudo! — Então, tentou acalmar-se — Esse medalhão impedirá que as mandrágoras o afetem. Os dois estarão protegidos. Enquanto você usar esse
medalhão, Fernando, — puxando-o com força, ele forçou-o a se desvencilhar do meu abraço. A olhar diretamente em seus olhos negros. Era quase como se Fernando (em seu pijama branco de algodão) fosse um pequeno e trêmulo ponto de luz, enquanto Trofônio era a escuridão crescente, pronto para devorar essa luz oscilante — estará totalmente imune às mandrágoras. Nem mesmo o grito delas te afetará. Então — agarrou-o pelo colarinho. As mãos pálidas há poucos centímetros de tocar o diamante — Fique com os ouvidos bem alerta. Você sabe o quanto os Uthog são sorrateiros. Já você, Searcher, — casualmente, ele jogou uma adaga para mim e largou o músico, empurrando-o — Olhos bem alerta. Faça o sangue daquela coisa jorrar. — um sorriso dançou em seus lábios — Orgulhe-me.
Aí... ele desapareceu. Desapareceu, e deixou a mim e ao Fernando sozinhos, com o peso daquela primeira prova em nossas mãos.
                                    ● ● ●
Não preciso nem dizer o quanto eu estava apreensiva. Enquanto Fernando e eu saíamos do castelo e o contornávamos até finalmente chegar no tal lugar, as lembranças da primeira vez em que eu estivera ali giravam em meu cérebro, piorando ainda mais aquela experiência.
— Estou com medo. — Sussurrou o músico, segurando com mais força a minha mão quando paramos diante do beco.
— Não sinta medo. — pedi, pondo uma mecha de seu cabelo para trás de sua orelha. Os longos cabelos da cor da noite sequer haviam sido penteados. O rapaz sequer tivera tempo de tirar o pijama. Pobre Fernando. Quão grande é o problema para o qual te arrastei? — Vamos conseguir fazer isso, tá bom?
— Você... Você promete?
— Não, Fernando. — desviei o olhar — Dessa vez... eu não te prometo nada.
E, sem dizer mais nada, nós dois seguimos. Adentramos ainda mais o lugar que qualquer um tentaria evitar.
Apesar de ser um lugar que guardava um mal maior, o Beco das Ciladas sempre fora um lugar magnifico. As paredes naturais que o formavam eram compostas pelas mais belas rosas, o chão era coberto por um tapete macio da grama mais verde, e as cores vibrantes que lhe saltavam aos olhos eram o melhor disfarce para o terror que nos esperava lá dentro. Mas, nesse dia, toda aquela beleza pareceu ter sido sugada.
Não havia mais cores vivas ali. Para ser mais precisa, não havia mais nada vivo ali. A grama outrora tão verde quanto uma esmeralda estava amarronzada e morta, as rosas, antes das mais belas cores, estavam negras e murchas. No ar, o cheiro de morte
pairava, fazendo-nos sentir náusea. E, por onde passávamos, víamos dríades estripadas, fadas decapitadas, karpoi desmembrados. Fosse o que fosse, aquele tal monstro arrancara toda a vida ali existente. E o único resquício de vida que ainda restara... havia sido as mandrágoras. Seu grito doentio, pela primeira vez, não parecia soar como uma sentença de morte e loucura. Parecia soar como um choro. Um choro desesperado e suplicante. Um choro que dizia com todas as letras “Seremos as próximas”.
— Meu Deus... — Fernando levou uma das mãos á boca. Provavelmente, ou aquilo era um gesto de surpresa, ou ele estava contendo a vontade de vomitar (acho que era um pouco dos dois) — Meu Deus...
— Todas essas... — ajoelhando-me, toquei o rosto de uma dríade. Estava gelada. Morta. As vísceras saindo por sua barriga dilacerada. O sangue (Seiva? Sim. Era seiva. Uma seiva de um estranho tom avermelhado) formando uma poça ao seu redor — Foi o Uthog quem matou?
— Acho que sim... — lágrimas de pavor escorreram por seu rosto. Sem conseguir conter o enjoo, ele virou-se e vomitou, sujando o pijama. Ah, que cena AGRADÁVEL! Tem como isso ficar pior?!
Tem sim, leitores. Acreditem: SEMPRE tem como piorar.
— Isso já está começando a me tirar do sério... — Resmunguei, mas o filho de Vigart me calou com um gesto. De repente, seu medo pareceu triplicar. Olhando em volta, ele segurou minha mão com mais força (ao ponto de chegar a doer) e fez menção de me puxar para fora dali — O que foi? — Questionei, soltando sua mão.
— Ele está aqui... — disse, em meio a soluços — Está... Está farejando a gente.
— Como você sabe? — Saquei a adaga.
Ele não precisou responder. De repente, aquela coisa pareceu surgir do nada. Do nada mesmo. Brotou da terra. Da grama morta. E ergueu-se, enquanto as mandrágoras gritavam. Enquanto eu recuava, segurando a adaga que Trofônio me dera com tanta força que os nós dos meus dedos ficaram ainda mais brancos do que já eram. Enquanto Fernando olhava com terror para aquela coisa, sem coragem sequer para se mover. Agora, diante de nós, havia um dos seres mais horripilantes que eu já vira naquela Terra: uma criatura híbrida, com cabeça de lobo, corpo de sapo, patas de aranha e uma grande cauda de escorpião. Sem exagero algum, o Uthog era ainda mais medonho do que eu imaginara.
Aquilo avançou. As presas afiadas de lobo estavam sujas de sangue e tinham alguns pedaços de carne ainda presos nelas; os olhos amarelados brilhavam como se ele pensasse: “Maravilha!
Mais dois aperitivos saborosos".
— Nossa... — apontei a adaga em sua direção — Quando você disse que era uma aberração, eu não esperava por isso.
— Mata logo essa coisa... — Ele tremia. Eu via seu esforço para parar de chorar, mas era como se o medo espremesse as lágrimas para fora do seu corpo. Ah, Fernando! Simplesmente não sei porque ainda te peço para me ajudar em minhas missões — Mata logo essa... — girando para o lado, ele esquivou-se do ferrão da criatura e me puxou bem na hora que aquilo quase me atingiu.
— Relaxa. — falei, ofegante — Eu tenho um plano.
— Que...
— CUIDADO! — o empurrei e lancei uma bola de fogo na fera bem no instante em que ela avançou em sua direção. Embora o fogo não o tenha matado, eu consegui feri-lo. Ganindo, o Uthog recuou. Os pelos da cara de lobo e boa parte do corpo de anfíbio haviam sofrido graves queimaduras. O cheiro ali era insuportável (De verdade: nunca queira saber qual é o cheiro de Uthog queimado. Não é nada agradável e não lembra em nada o churrasco feito nos fins de semana)
— ... Plano? — Completou o músico, tossindo logo em seguida.
Não respondi. Em vez disso, lhe entreguei a adaga e estalei os dedos. Minha flauta surgiu em minhas mãos na mesma hora.
— Você verá.
— Ai, Deus! O que você vai...
Então... comecei a tocar e a mágica aconteceu.
Mesmo que muito tempo já tenha se passado, ainda não me acostumei com o poder da minha flauta e acho que nunca vou me acostumar. A ideia de, de repente, poder controlar qualquer ser vivo com uma simples melodia chegava a ser um tanto assustadora. E, mesmo que eu detestasse pensar nisso, era impossível não me comparar com o Molguart. E se um dia esse meu poder me subisse a cabeça e me fizesse ser tão ruim quanto ele? E se... Não. Pare de pensar nisso. Isso jamais vai acontecer.
Enquanto eu tocava, vi o Uthog paralisar. Os olhos fixos em mim. A bocarra continuava aberta, mas ele não me atacou. Não. Ele apenas me olhou com reverência. Com devoção.
— Uau... — parei de tocar e meus olhos foram do monstro para o músico. Ele também tinha o mesmo olhar vidrado. Os olhos verdes sequer piscavam.
A adaga em suas mãos era segurada com força — Ainda não consigo acreditar nisso. — Concentre-se, Laíres!, pensei, Você tem o controle sobre dois corpos agora. E um deles é seu melhor amigo. Concentre-se. — Certo. Você, — apontei para o Uthog — Não se mova. Permaneça onde está. — a coisa obedeceu. Estava tão imóvel quanto uma gárgula — E você... — segurei Fernando pelos ombros — Sabe o ponto fraco dele? Do Uthog?
— Sim, senhora. — Concordou lentamente. Senhora. Droga! Por que isso fez meu sangue gelar? Por que eu não parava de me comparar ao Molguart? Por que...
Porque o Molguart também hipnotizara o Fernando.
Porque também ordenou que ele fizesse algo que ele jamais faria se tivesse o controle da própria mente.
Porque embora eu tenha abominado o Hipnotizador por ter dominado a mente dele... eu estava fazendo a mesma coisa naquele instante.
Mordi o lábio.
— Então faça. — sussurrei, me afastando dele. Saindo do seu caminho — Fernando, mate-o.
E ele fez. Avançando com uma bravura que ele jamais tivera, ele fez daquela adaga a arma mais mortal de todas. Primeiro, cortou fora o ferrão do monstro indefeso e depois... perfurou sua garganta. Engasgando com o próprio sangue, o monstro ganiu uma última vez... e explodiu. O que vi em seguida foi uma chuva de vísceras, fezes (com pedaços dos corpos das dríades e dos Karpoi e... tá. Esqueçam. Apaguem essa imagem da sua mente) pele e sangue. Mas embora aquilo fosse terrivelmente nojento, era o melhor dos anúncios: a fera estava morta. A primeira prova fora cumprida.
Tendo finalizado seu trabalho, o rapaz virou-se para mim. O pijama antes branco e limpo agora estava simplesmente imundo: o sangue o tingira de vermelho, as fezes do monstro haviam sujado o tecido e deixado aquilo com um cheiro terrível. Somando tudo isso com o cheiro enjoativo do vômito... Posso garantir que nada do que vocês imaginarem chegará perto do quão insuportável aquilo estava. Os cabelos negros do filho de Vigart estavam pingando sangue e com alguns pedaços de carne grudados e até em seu rosto havia sangue seco.
— Ai. — Fiz uma careta — O Mestre Vigart vai me matar se te vir assim. Me devolve a adaga. Vamos. Devolva. — Assentindo, ele me entregou. Depois de guardá-la, estalei os dedos e o controle que eu tinha sobre ele se quebrou.
— Que nojo! — exclamou ao olhar para si mesmo — É sério isso, Laíres? Meu pai vai...
— Relaxa. Eu sei o que fazer.
— Relaxar?! Eu não vou relaxar! Tem fezes de Uthog na minha roupa! Tem... Tem carne no meu cabelo! Eu não vou relaxar!
— Relaxe. — o tomei pela mão — Vamos. Vamos para casa.
— Para... Para casa? Ai, droga...
— Eu vou resolver isso.
— Se a verdadeira prova era me deixar constrangido... você a cumpriu com sucesso.
— Ora, vamos! Vai dar certo! Quer ver? Tire o pijama.
— É o quê?! — enrubesceu — De jeito nenhum!
— Ah, Fernando... — revirei os olhos — Anda!
Fazendo uma careta, ele tirou as roupas ensanguentadas e me entregou. Ver seu corpo nu me fez lembrar dos nove meses. Droga de lembranças!
— Isso tem como... — estremeceu quando uma brisa fria tocou seu corpo despido — ... piorar?
— Tem. — com um meio sorriso, joguei o pijama para o alto e o incinerei.
— Meu pijama preferido! — ele fez biquinho. Francamente: às vezes o Fernando parece mesmo uma criança birrenta. Mas... vou fazer o quê?
— Já era. — lhe lançando um sorriso torto, envolvi sua cintura com meus braços (isso seria até agradável se ele não estivesse fedendo. Ah, que cena romântica!) e nos tele transportei diretamente para seu quarto no andar de cima do imponente palácio — Pronto! Ninguém nos viu.
— Que consolo. — reclamou, olhando-se no espelho.
— Para de reclamar. Agora... — peguei uma toalha limpa no guarda-roupa — Banho. Vai.
— Sério: quantos anos você acha que eu tenho?
— Cinco. — caí na gargalhada ao lhe entregar a toalha — Agora vai. B-A-N-H-O.
— Para, Laíres! — Choramingou, entrando no banheiro.
Quando ele fechou a porta, gritei:
— E lave os cabelos, ouviu?!
— Eu sei! — respondeu lá de dentro, me fazendo rir de novo.
— Essa amizade de vocês me dá nojo. — Virei-me depressa. Trofônio olhava para mim com seus olhos negros reluzindo. Reluzindo como se fossem duas estrelas mortais.
— O que você quer? — O fuzilei com um olhar, ao passo que meu coração o desejava. Ansiava por ele. Ao passo que, por dentro, eu desejava me lançar em seus braços. Beijá-lo. Dizer "Eu sou sua!" Me entregar por inteiro á escuridão.
— Nossa, Searcher. — se aproximando de mim, ele me enlaçou em seus braços. Quase que involuntariamente, me aproximei mais dele, me deixei embalar por seu abraço. O estranho e hipnótico cheiro de lavanda que ele exalava me deixando levemente entorpecida — Eu esperava uma recepção mais calorosa vinda de você. Estou ofendido.
— Se quiser eu posso te incinerar. Aí saberá o que é algo caloroso.
Isso o fez rir. Ah, Deus... A risada dele é simplesmente o som mais lindo e assustador que já ouvi.
— Você é adorável.
— O que você quer? — Perguntei de novo, me afastando.
— Vim anunciar sua segunda prova.
Senti uma fagulha de raiva surgir em meu coração.
— Provas. Os deuses e seus testes inúteis! — me exaltei — Então dê meia volta, Trofônio. Avise àqueles vermes divinos que eu não sou o brinquedo deles.
— Eu não perguntei se você é contra isso. Eu vim anunciar a prova, e você me ouvirá.
— Fale... e suma. — Suma, porque eu não aguento mais olhar em seus olhos negros e te desejar mais e mais a cada segundo que se passa.
— Você voltará ao Beco.
Minha raiva aumentou. Você voltará ao Beco. Qual o problema dos deuses, afinal?!
— Não. — devolvi — Não. Eu não vou voltar ali só porque você está ordenando. Não vou voltar ali só porque os deuses querem. Não vou arriscar a vida do Fernando outra vez...
— Ele não irá! — seus olhos faiscaram — Esse verme fraco que você tanto protege não irá!
— Chame-o de verme outra vez, e eu juro que...
— Vai fazer o quê, Searcher? — Seus dedos pálidos tocaram minha cicatriz, (aquela DROGA de cicatriz!) fazendo os pelos da minha nuca se eriçarem.
— Odeio você.
— Bom saber. Bem, como eu dizia, você voltará ao Beco, e atravessará a Porta Vermelha. Terá de pegar algo que está guardado naquela sala.
— É só isso? Querem que eu atravesse uma porta?
— Acredite, Laíres: O que está atrás daquela porta pode ser o seu maior pesadelo.
— E eu vou sozinha?
— Eu vou com você.
— Esse aí é meu maior pesadelo.
— Logo você descobrirá que eu não sou a única forma que o medo pode assumir. E as outras formas que existem... são capazes de sugar a sua sanidade num estalar de dedos.
— Você só não fez isso porque não quis.
— Até amanhã, Flautista. Sugiro que prepare seu psicológico para o que virá.
Me lançando um olhar sombrio, ele me beijou uma última vez e sumiu, deixando para trás apenas uma brisa fria e seu cheiro doce de lavanda.
Sugiro que prepare seu psicológico para o que virá.
Eu não sou a única forma que o medo pode assumir.
O que me esperava atrás dessa tal porta? O que eu teria de enfrentar dessa vez?
Quando ele deixou o quarto, coloquei a túnica escura (Sim. Escura. Por incrível que pareça, o guarda-roupas do Fernando não é composto só por roupas claras) em cima da cama e, usando meus poderes, esquentei o ferro de passar, usando-o logo em seguida. De onde eu estava, conseguia ouvir a cantoria do filho de Vigart lá no banheiro, mas nem mesmo sua bela voz e a música cativante que ele cantava conseguiram abafar a voz de Trofônio que ainda ecoava em minha mente.
Eu não sou a única forma que o medo pode assumir.
Pensar no que me aguardava atrás daquela tal porta fazia meu coração se encher de medo. E acontece que esse medo só ia aumentar.
— “Porque a luz que me ilumina nunca irá se apagar, e os problemas do mundo nunca vão me derrubar — saindo do banheiro, ele continuou a cantar — E quando o medo vier me sufocar, eu sei que ao meu lado você sempre... — seus olhos pousaram em mim e provavelmente ele notou meu semblante preocupado — ... estará”. Laíres? Tá tudo bem?
— Não. — admiti, entregando-lhe a túnica e me virando para que pudesse se vestir.
— O que aconteceu?
— Os deuses... — quando me virei novamente, peguei uma escova e me pus a pentear seus cabelos — insistem em continuar com seus testes ridículos. Recebi a segunda prova. E não se preocupe. Você não precisa vir comigo dessa vez.
— E... E qual é o teste dessa vez?
— Eles querem... — guardei a escova e o olhei de cima á baixo. A túnica negra lhe caia bem, o deixava com um ar sério e destemido — que eu volte ao Beco. Querem que eu atravesse uma
tal Porta Vermelha e...
— Não! — ele recuou. Seu rosto empalideceu de repente — Por favor... não!
— Fernando? — o segurei pelos ombros. Seu corpo tremia — Ei...
— Não pode fazer isso, Laíres. Não pode! Não pode! Não pode... — Era como se, de repente, o medo o estivesse sufocando. Me abraçando apertado, ele continuou a repetir que eu “Não podia atravessar". Mas o que está acontecendo aqui, afinal?
— Calma... — o afastei delicadamente — Acalme-se.
— Me promete que não vai fazer isso, Laíres. Me... Me promete.
— O que há atrás dessa tal porta, Fernando? O que você sabe?
— Eu não posso dizer. Não posso dizer, porque aí ele vai saber que você está indo até ele. Vai saber e... e vai... Eu não quero perder você, Laíres. Não quero que ele te mate!
— Ninguém vai me matar, está bem? Seja lá o que houver atrás daquela porta... — encostei minha testa na dele. Quis beijar seus lábios, mas algo me deteve. Como pode beijá-lo já tendo sido beijada por outro? Como pode amá-lo se outro também já reina em seu coração? DROGA DE INDECISÃO! — Não vai conseguir me tirar de você. Agora vamos. — o tomei pela mão — Está na hora do almoço e aposto que estamos atrasados.
Assim, nós dois saímos do quarto de mãos dadas.
                                                   ● ● ●
A noite chegou. E com ela... eu senti minha apreensão aumentar. Tudo o que acontecera naquela manhã ainda girava em um turbilhão na minha mente, as palavras de Trofônio ainda ecoavam em meus ouvidos, e eu ainda conseguia vislumbrar o pavor refletido nos olhos do Fernando quando ele me implorou... implorou que eu não realizasse essa segunda prova. A pesar de eu querer acabar logo com tudo isso, eu estava com medo. Estava apavorada. O que os deuses querem de mim, afinal? Quem era esse tal deus que duvidava da minha lealdade? Deitada na cama que para mim fora reservada no palácio, tentei afastar esses pensamentos conturbados. Tentei relaxar. Tentei dormir. Eu queria um instante de paz antes de enfrentar seja lá o que for. Queria parar de pensar na tal porta vermelha que me aguardava ameaçadora. Queria...
— Não consigo dormir. — Levantei da cama com um salto. Parado na entrada do quarto, o filho de Vigart me fitava com vários sentimentos brilhando em seus olhos de esmeralda. Nervosismo. Ansiedade. Medo.
— Ei... — fui até ele — Está tudo bem?
Ele negou com a cabeça.
— Estou com medo. Não quero que o sol nasça. Não quero que embarque nessa prova assim que o amanhã chegar.
— Ah, Zaphenath... — o conduzi até minha cama e pedi que se sentasse — Olha pra mim — acariciei seu rosto — Alguma vez você já me viu falhar em alguma missão?
— Não. — Sussurrou.
— Eu não falharei agora, Fernando. Sei que não vou falhar. Ouça...
— Você não sabe o que tem lá! Não sabe...
— Shhh... — pousei os dedos sobre seus lábios — Não importa o que tem lá. Não importa quão grande seja essa ameaça que me aguarda. Ela não vai me tirar de você. Não vai, tá bom? — com minha destra, toquei o medalhão negro que lhe cobria o diamante. Eu me perguntava o porquê dele ainda não ter tirado a estranha joia que Trofônio lhe obrigara a usar — Seja corajoso, meu guerreiro.
— Não consigo.
— Consegue sim. Eu sei que consegue. Vem cá — deitei na cama espaçosa, e fiz sinal para que deitasse ao meu lado. Deitando-se, ele repousou a cabeça em meu peito — Acha que consegue dormir agora?
— Acho que sim. — Respondeu baixinho.
— Ótimo. — Sorri.
— Eu te amo. Sabe disso, não sabe?
— Eu sei, Fernando. Eu também... — parei por um instante ao sentir sua respiração ficar mais tranquila. Mais regular. Ao observar seu belo rosto, agora pacífico. Ao ver finalmente o manto do sono envolvê-lo, afastando todos os medos e receios, e puxando-o para a escuridão confortável da inconsciência — ... amo você.
A noite seguiu tranquila, com seu silêncio agradável que só foi quebrado na madrugada, quando o galo, arauto de todas as manhãs, cantou, anunciando que minha prova estava prestes a ter início.
— Devo conter a minha vontade de esfaqueá-lo... ou posso fazer isso enquanto ele dorme? — Fui acordada pela voz sussurrante de Trofônio. Abrindo os olhos, fitei-o seriamente, enquanto abraçava o filho do feiticeiro, que ainda dormia.
— Tente fazer qualquer coisa, e veremos se realmente é incapaz de sentir medo.
Ele sorriu. Seu sorriso malicioso e encantador fazendo um arrepio percorrer meu corpo.
— Ser torturado por você seria um privilégio. — seus olhos brilharam de modo assustador — Está pronta?
Olhei dele para Fernando e depois para ele novamente.
— Eu por acaso pareço estar pronta?
— Cinco minutos. — disse, pegando sua ampulheta e virando-a. O sangue em seu interior começou a escorrer lentamente — Você tem cinco minutos para se arrumar e... e se afastar desse... — ele fez um gesto de desprezo para Fernando — Enfim, se apresse. Eu a estarei esperando na entrada do Beco.
                                                   ● ● ●
O Beco das Ciladas parecia ter renascido das cinzas. Assim que Trofônio e eu chegamos na entrada daquele magnífico e perigoso recinto, as cores vibrantes de antes saltaram bem diante dos nossos olhos, os espíritos da natureza que antes estavam mortos haviam revivido, e embora eu estivesse usando tampões de ouvido, embora Trofônio não parecesse ser afetado pelo grito delas, eu sabia que as mandrágoras gritavam fervorosamente outra vez, prontas para destroçar a mente e arrancar a vida de qualquer mortal que as ouvisse. Aquele lugar voltara a ser como era. O Uthog fora morto, afinal. Mas... isso não me aliviava nem um pouco. À medida que Trofônio e eu avançávamos, á medida que a tal porta da cor de sangue ia se aproximando mais e mais, o furacão de lembranças ruins e medos girava cada vez mais rápido na minha mente, me deixando nauseada.
— Detesto este lugar. — Murmurei.
— Eu sei. — devolveu o Vidente das Trevas — Posso detectar seu medo. Conheço as lembranças que carrega.
— E estar acompanhada da escuridão é a pior parte. — Estremeci.
— Duvido muito que ache isso. — Seus olhos negros reluziram quando ele olhou para mim e me tomou pela mão — Duvido que pense que sou a pior parte disso tudo.
— Pois não duvide. Esta porta não é meu maior medo, Trofônio. Você é. Mas o problema... é que a minha mente insiste em se lançar nos braços deste medo. Insiste em se lançar nos seus braços. — Evitei seu olhar.
— Sua concepção de "medo" mudará em instantes, Flautista. Isso eu lhe garanto.
E o pior de tudo... É que ele estava certo. Quando entrei naquela sala, senti como se todo o medo que o Fernando sentira no dia anterior tivesse me dominado. De repente, a promessa que fiz a ele de que eu não iria falhar pareceu se dissipar na escuridão daquele cômodo.
Querem saber, leitores? Se eu já tinha pavor do Beco das Ciladas, esse pavor triplicou quando passamos pela tal porta. Enquanto ela se abria sem emitir o menor ruído, (ou, ao menos... eu acho que não emitiu. É difícil saber quando se está usando tampões de ouvido) eu sentia meu coração acelerar. Em minha mente, as palavras de Fernando ecoavam repetidas vezes. O medo em sua voz me inundando. Me sufocando. Não pode fazer isso, Laíres. Não pode! Não pode! Não...
Mas eu fiz. Acompanhada do Vidente das Trevas, eu passei pela Porta Vermelha e... me arrependi amargamente disso.
Estávamos em uma sala agora. Numa sala ampla e escura, em que a pouca iluminação vinha da chama bruxuleante das velas em um candelabro. Mais adiante, bem no centro do sinistro cômodo, uma mesa fora posta: uma mesa de madeira escura, onde pratos de ouro e taças de cristal haviam sido postos. Mas o "cardápio" que estava sendo oferecido ali não era nem de longe o mais agradável: carne humana. Os pratos dourados e belíssimos estavam cheios de carne humana crua e fresca. O cheiro doce e enjoativo do sangue que escorria pelas bordas do prato quase me fez vomitar. E nas taças... sangue. As deslumbrantes taças de cristal estavam cheias do pigmento vermelho e de gosto metálico. Sem dúvida, aquela sala era a morada de um monstro.
— Isso vai ficar pior, Searcher. — Quando tirei os tampões, Trofônio apertou meu ombro e, com um gesto amplo, indicou o restante da sala — Muito pior.
Engolindo em seco e já desejando fugir dali, olhei o restante do aposento: mais além da mesa, um estrado levava a um trono negro, cravejado de rubis. Ao lado, algo grande fora coberto por um pano vermelho. E, aos pés do trono, guardando seja lá o que estivesse debaixo do tecido... estava a coisa.
Recuei aos tropeços e não contive um arquejo: sentada ao lado do trono, vestida em roupas escuras que eram frouxas em seu corpo esquelético, havia uma mulher. Digo... algo que já foi uma mulher: uma múmia, cujos cabelos escuros e emaranhados caiam aos tufos, e cujo rosto quase sem pele parecia sorrir de um jeito macabro. Suas órbitas oculares vazias me faziam sentir que ela me observava sem de fato olhar para mim. Mais que isso: ela observava a minha alma.
— Meu Deus... — Levei as mãos à boca — Quem é ela?
— Mãe dele. — Com uma de suas mãos pálidas, o filho de Apolo apontou para os quadros na parede... e então eu soube o que ele quis dizer quando afirmou que "O medo pode assumir qualquer forma": nas paredes pintadas de vermelho, quadros estavam expostos. Três quadros cujas pinturas neles continham uma riqueza de detalhes impressionante e assustadora. Em dois deles, (os que foram postos um á esquerda e outro á direita do quadro maior) eram retratadas mortes terríveis. Garotas sendo devoradas por um ser alto e emaciado, cuja boca pingava com o sangue das vítimas e cujos dedos finos e negros como carvão rasgavam as estranhas das garotas, jogando seus órgãos no fogo. Enquanto eu olhava, quase podia ouvi-las gritar ao terem seus corpos abertos ainda em vida. E para piorar tudo ainda mais... eu olhei para o quadro do meio. Nele, havia um jovem belíssimo, de pele branca e perfeita, de cabelos da cor de chocolate, e seus olhos... Aqueles olhos... Seus olhos eram da cor de duas safiras. Tão azuis, mas tão azuis, que pareciam ser artificiais. Só que, enquanto eu olhava, aquela beleza foi dando lugar ao horror. Lentamente, sua pele foi enegrecendo. Apodrecendo. Seu rosto antes cheio de vida ficou magro como a morte. Seus olhos azuis se tornaram em fogo. Aquele belo homem tornou-se... tornou-se o mais horrendo dos monstros — O Homo Canibalis.
— Droga... — estremeci — Só... Só vamos pegar logo o que temos que pegar e sair daqui, pelo amor de Deus...
— Ah, não. — De repente, a múmia levantou-se. Seu vestido preto arrastando no chão enquanto ela se aproximava lentamente de nós — Vocês não pegarão nada. E você não sairá daqui, Décima Quinta. Meu filho a quer, e ele vai tê-la.
Décima Quinta. Ela me chamou de Décima Quinta e haviam quatorze garotas sendo mortas nas pinturas, o que queria dizer que...
— Aí só porque seu filho me quer, — falei. O tom ousado na minha voz de repente escondendo meu medo — você acha que eu vou ficar? Sem essa! Pode ir arranjando outra, porque eu não vou virar comida de monstro não!
— Ora, sua garota insolente! — Ela avançou extraordinariamente rápido.
— Searcher! — Trofônio me empurrou para longe dela e se pôs entre nós duas. Uma de suas facas apontada em sua direção — Toque nela, e eu farei com que se arrependa de ter nascido.
A mulher riu.
— Você não pode vencer meu filho, Oráculo das Sombras. Não sabe do que ele é capaz.
— Na verdade... — num movimento de suas mãos, ele ergueu-a no ar. As sombras se enrolando no corpo da mulher que ofegava, sufocada — É você que não faz ideia do que eu sou capaz. — Então, numa das cenas mais apavorantes que já presenciei, ele fez cada osso da mulher se quebrar. Enquanto ela gritava de dor, os estalos altos dos ossos se partindo podiam ser ouvidos. E para finalizar aquele show de horrores, ele esmagou o crânio dela.
— Wow... — Olhei para ele com espanto — Isso foi...
— Não precisa agradecer. — Sorriu.
— Convencido. — Sorri de volta... então fiquei séria ao olhar para o tal tecido. Ao imaginar o que tinha embaixo dele — Você disse que minha prova era resgatar algo que está nessa sala. O que é?
— Retire o pano... e veja por si própria.
Com certa relutância, eu o obedeci. Retirei o pano.
Pra quê, leitores? Por que raios eu fui ter a brilhante ideia de retirar aquele pano?
Sob o pano, havia uma jaula. As grades de aço aparentavam ser indestrutíveis. E, dentro da jaula...
Recuei com um grito, ao passo que Trofônio olhava para aquilo com interesse.
Dentro da jaula, havia uma dríade. Ela estava caída de lado; consciente, mas, aparentemente, muito fraca. A pele de um verde-pálido estava coberta de arranhões por onde seiva vermelha igual sangue escorria; o vestido amarronzado estava rasgado, e os cabelos de um verde muito escuro estavam bagunçados. Mas entendam: em não me assustei por ela ser uma dríade. Já vi muitas por aí. O que me assustou foi a mordaça em sua boca. Foram as rosas brancas em formato de sino que adornavam sua cabeça. Foram as frutas amarelas que circundavam sua cintura como um cinto: "maçãs do diabo", frutas tão tóxicas que eram capazes de matar sufocado aquele que as ingerisse. Frutas essas, que só podiam ser encontradas em uma espécie de planta. Na planta que eu mais temia. Mais odiava. Sim. Aquela garota, aquela planta, aquela coisa não era uma dríade qualquer. Era... Era uma mandrágora.
— Não. — comecei a andar de um lado para o outro — Não, não, não, não. Eu não posso fazer isso. O que os deuses querem?! Que eu mate o Fernando com essa coisa?!
Trofônio revirou os olhos. Parecia que a simples menção do nome do músico lhe causava nojo.
— E lá vamos nós de novo. Mesmo estando no castelo, AQUELE VERME NUNCA DEIXA SUA MENTE!
— E daí?! — disparei — Eu quero protegê-lo, droga! Não tô nem aí se você o odeia!
— Aquele imbecil fragilizado não tirou o medalhão! Não vai ser afetado! Pare de tratá-lo como se ele fosse o centro de tudo!
— Então é bom você parar de agir como se fosse o centro de tudo também! — Respirando fundo, voltei minha atenção para a garota. Ela choramingava de dor — Que droga. Eu poderia te incinerar se eu quisesse. Você tem ideia do quanto você é perigosa? Tem ideia? Ou vocês não sabem do que são capazes? — me aproximei da cela. A menina começou a tremer quando cheguei perto, como se a palavra "incinerar" a tivesse inundado de medo — Ok. Ok. Calma. — ergui uma das mãos — Eu não vou te machucar, tá? Não vou te machucar. Eu só... — tirando da bainha em meu cinto a adaga que Trofônio me dera, fiz as grades em pedaços. Um simples toque daquela lâmina reduziu o aço a pó — ... tenho medo de você. — e entrei na cela. Me aproximei dela. Me aproximei de uma das plantas que quase mataram meu melhor amigo. Um pouco afastado, Trofônio observava tudo — Tudo bem. — devagar, a desamarrei e, com certa relutância, levei as mãos à mordaça — Promete que não vai gritar se eu tirar isso? Promete? — ela assentiu devagar. Os olhos negros brilhavam com dor, medo e uma fagulha de gratidão. Quando tirei a mordaça, ela me lançou um sorriso trêmulo.
— Temos que ir. — Lembrou-me o Oráculo — Consegue andar, garota? — lançando-lhe um olhar apavorado, ela tentou se pôr de pé, mas a dor desse ato foi tão intensa que ela foi ao chão de novo, chorando, e se contendo para não gritar.
— Não. — respondi no lugar dela — Ela não consegue.
— Certo. — Foi tudo que ele disse, antes de tomar a menina nos braços. Ela não protestou. Não gritou. Apenas se deixou ser carregada. Acho que até estar nos braços do medo era melhor que permanecer naquele lugar horrível — Vamos embora. E ponha os tampões de ouvido, Flautista. Esta daqui não gritou, — seus olhos negros focaram na menina. Na mandrágora. Ela agora estava de olhos fechados, como se dormisse. Parecia exausta. Esgotada. E eu sabia que sua dor não era apenas física. Eu me perguntava o que esse tal "Homo Canibalis" fizera com ela. Eu sei que as mandrágoras são uma espécie de amuleto de proteção. Na antiguidade, as pessoas as usavam para afastar todo o mal. Mas... por que um monstro canibal iria querer proteção? — ... mas as outras não irão economizar seus gritos enlouquecedores.
Ele seguiu na frente, e saiu da sala, carregando a mandrágora. Ela pendia como uma boneca de pano nos braços do Sombrio (Será que estava só dormindo mesmo? Ou talvez... não. Eu detesto mandrágoras, mas ia detestar mais ainda se ela estivesse morta. Eu me sentiria culpada por desejar isso). E eu ia segui-lo. Ia segui-lo. Me lembro de ter acabado de colocar os tampões de ouvido, mas aí...
"Admiro sua ousadia, sabe?"  Girei nos calcanhares ao ouvir aquela voz. Queria saber a origem do som, mas nada achei. Era como se soasse dentro da minha cabeça. "Mas você acha mesmo que vai sair da minha sala, levando o que me pertence, e vai se livrar de mim?"
— Quem é você?! — falei em voz alta. Certamente eu estava gritando. Um medo irracional tomava conta de mim — O que é você?!
"Você sabe o que eu sou, Décima Quinta. Sabe quem sou. E sabe o que farei com você, não sabe?"
— SE AFASTA DE MIM! — Recuei depressa e caí sentada no chão. Olhei para porta, esperando que Trofônio viesse me ajudar, mas eu estava sozinha. Estava sozinha com aquela coisa. Estava sozinha com ele.
"Ah, não." A voz do Homo Canibalis era calma e fria. Fria de um modo apavorante. Enquanto ele falava, senti dedos frios de garras afiadas viajarem por minha coluna. Aquilo me fez chorar de medo. E eu não sou dessas que chora de medo. Não sou igual o Fernando. Mas, naquela hora... eu não pude evitar "Não vai se livrar de mim assim tão fácil. Eu a quis. E você veio até mim. Agora..." E aí eu me senti sufocar, como se um garrote estivesse em volta do meu pescoço. O material da arma era gelado. Metálico. Ouro. "Agora, eu te prenderei em meu labirinto de loucura e medo. E eu nunca mais..."
— NÃO! — Eu gritava, como se gritar fosse fazê-lo deixar minha mente.
"... Nunca mais..."
— SAIA DA MINHA MENTE! — Me levantando, comecei a correr até a porta.
" ... te deixarei sair."
E aí... ele calou-se. Seu silêncio sendo mais assustador que suas palavras. Quando irrompi pela porta aberta e voltei para o sol, meu rosto e minhas roupas já estavam encharcados de lágrimas. Lágrimas de pavor.
Quando me aproximei do filho de Apolo, ele me lançou um olhar penetrante. A garota em seus braços continuava imóvel. Em um silêncio que parecia dizer tudo, nós seguimos até a saída do Beco das Ciladas e, quando nos distanciamos o suficiente para que eu pudesse tirar os tampões, o Sombrio me perguntou:
— Ele penetrou na sua mente, não foi?
— Eu realmente não quero falar sobre isso. — Estremeci. A voz do Homo Canibalis ainda ecoando dentro de mim.
— Não deixe ele te prender. Você não é a Décima Quinta, entendeu? — fiquei em silêncio, olhando para ele — ENTENDEU?! — Gritou, o que fez a dríade gemer baixinho e estremecer.
— Entendi. — E eu entrei no castelo, acompanhada por ele.

As Aventuras de Laíres e Fernando na Terra da Imaginação: Do Fim ao Recomeço Onde histórias criam vida. Descubra agora