O Problema triplo (Parte 1): Os Clones

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Se eu fosse definir os acontecimentos desse capítulo
em uma palavra, eu diria que eles foram... confusos. Bem
confusos. Confusos de um jeito que nem eu estou acostumada,
entende? Então, se você sentir dificuldade em entender isso aqui,
a culpa não é minha. Eu bem que avisei que o negócio ia ser
esquisito. Muito bem... aviso dado. Então suponho que posso
começar.
Muito embora eu não seja boa em guardar datas, eu me lembro
ser dia 20 de novembro de 2017. Como sempre faço, acordei às
6h da manhã, tomei banho, comi algo e fui para a escola. Ali, as
coisas também seguiam como deviam ser: tranquilas. Sem nada
fora do comum. Aquele dia tinha mesmo tudo para ser calmo e
agradável. Só que o que eu não sabia... era que tudo aquilo não
passava da calmaria antes da tempestade.
O tempo passou e o último sinal tocou. 11:30h. Hora de ir para
casa. Voltando para meu lar, esperei minha mãe sair para o
trabalho e fui para a Terra da Imaginação. Para o Reino
Dourado. E foi aí... que toda aquela normalidade se dissipou por
completo.
Entrando no Palácio Dourado, fui ao Jardim Escondido. Mais
que qualquer lugar naquele reino, era dali que eu sentia mais
falta. Sentir o cheiro daquelas flores diversas, ver a beleza das
criaturas mágicas que lá habitavam e sentir a grama sob meus
pés descalços era tudo de bom. Mas, acima de tudo... eu sentia
falta dele. Sentia falta do Elfo de pedra que um dia eu despertara.
Acima de tudo, eu sentia falta do Gárgula.
Sem desviar o olhar de todas aquelas belas plantas, dirigi-me ao
canto mais remoto do lugar onde ele normalmente ficava:
guardando aquele jardim. Vendo tudo do pedestal que o erguia.
Ansiosa pelo reencontro, aproximei-me da pedra só para
descobrir que...
Estava vazio. Ele não estava lá. Sentindo o pânico crescer em
meu peito, esquadrinhei o local á sua procura. Quem o
despertara? Onde ele estaria agora? Por instinto, toquei a pedra e
fechei meus olhos. E a resposta... veio instantaneamente.
Vi-me no centro de um bosque. Ao meu redor, altos carvalhos erguiamse, bloqueando a luz solar. A sensação era sufocante. Como se aquelas
árvores se fechassem ao meu redor, tomando meu ar. E para piorar... eu
ouvi as vozes. Vozes que eu conhecia e temia. As mesmas vozes que
quase me enlouqueceram. As mesmas vozes... que me fizeram cair nas
garras do Hipnotizador.
"Venha até mim e te darei a resposta." Disseram todas as vozes em
uníssono.
"Onde ele está, Dodona?!" Indaguei mentalmente. A raiva me
preenchendo. Se aquele Oráculo estivesse por trás do desaparecimento
dele, eu não hesitaria em queimá-lo. "Responda!"
"Venha. Até. Mim. Enquanto não decidir fazer isso, não terá a
resposta."
"Muito bem." Decidi. "Eu vou. Mas se esse for mais um de seus jogos,
você me paga."
E a visão se dissipou quando abri os olhos novamente. Com as
mãos tremendo em um misto de raiva, ansiedade e medo, saí do
jardim e subi as escadas, entrando em disparada no quarto do
filho de Vigart.
- Ai, meu Deus! - ele largou suas partituras - Que susto,
Laíres! Um dia desses você ainda me faz ter um ataque cardíaco!
- então parou ao perceber que eu chorava - O que... O que
aconteceu?
- Eu não sei! - eu soluçava, aos prantos, quando me joguei em
sua cama e ele sentou-se ao meu lado. Uma de suas mãos
brincava com uma mecha do meu cabelo - Eu cheguei e... e fui
ao Jardim Escondido. Eu esperava encontrá-lo lá. Queria abraçá-
lo. Matar a saudade. Mas... a pedra estava vazia. Ele
desapareceu, Fernando! E eu sinto que está em perigo.
- Ah. Claro. - Disse em um suspiro.
- É só isso?! - dei um tapa em sua mão e sentei-me
abruptamente - Isso não importa para você?! O fato de alguém
importante para mim ter desaparecido não faz diferença para
você?!
- Laíres...
- Cala a boca! - o interrompi - Você já disse tudo que tinha a
dizer! Eu não quero ouvir mais nada! - Com passos largos e
olhos marejados, andei até a porta do quarto.
- Laíres, espere! - ele correu até mim e virou-me
delicadamente para que eu o olhasse nos olhos - Espere. - e
encostou a sua testa na minha - Me perdoe. Por favor... me
perdoe. Eu sei sim o quanto o Gárgula importa para você. É só
que... o que aconteceu entre nós ainda me fere. Eu ainda o vejo...
como um monstro. Mas se ele é importante para você... - então
beijou meus lábios com ternura - Eu a ajudarei a salvá-lo.
- Ah, Fernando... - abracei-o apertado - Obrigada!
Ele respondeu com um sorriso encantador.
- Então... para onde vamos? - Quis saber.
- Floresta Espelhada. - senti a mão do medo apertar meu
coração - Ele me quer outra vez, Fernando. Disse... Disse que
me diria onde o Gárgula está... se eu fosse até ele.
Seu sorriso se desmanchou na mesma hora.
- Não. - disse, recuando. Sua voz tremeu - Não de novo.
Não podemos voltar lá! Você sabe o que passamos lá, Laíres!
Você sabe!
- Eu sei! Mas ele disse...
- Ele disse?! Como te disse?!
- Eu tive... outra visão.
- Ah, pelo meu alaúde da sorte... - ele estremeceu - Anda.
Vamos logo com isso antes que eu perca o fio de coragem que
ainda tenho.
- Meu herói!
- Para!
E eu ri baixinho antes de segui-lo para fora do quarto, pelos
corredores, pela sala do trono e para além dos portões do
palácio.
● ● ●
Eu me lembrava bem de como chegar á Floresta Espelhada. Sabia
o caminho de cor mesmo estando ali apenas duas vezes. Era
quase como se meus pés se movessem por conta própria. E ao
que parecia, o mesmo ocorria com Fernando. Embora houvesse
temor em seus olhos verdes, seus passos eram determinados.
- Cá estamos. - parei. Embora minha voz transbordasse com
coragem, meu coração estava acelerado - Prepare-se. - ordenei
ao meu acompanhante - Ele vai tentar dilacerar sua mente. Mas
você tem que aguentar.
- Dilacerar...? - Sua voz falhou
- Você vai ver. Ou melhor... vai ouvir. - sem esperar mais, eu
gritei - EU ESTOU AQUI! O que está esperando?! Você chamou
e eu vim! Fala logo de uma vez o que quer! FALA!
E, atendendo ao meu chamado... as vozes dispararam. Seu
falatório absurdamente alto e incompreensível perfurando
nossas mentes como se fosse uma faca afiada.
- Ah, meu Deus! - o filho de Vigart levou as mãos aos ouvidos e caiu de joelhos. Eu sabia bem o que ele estava sentindo. Dor. Uma dor sufocante causada pelo fio de loucura que forçava
entrada em sua mente - Ah, meu Deus! - ele chorava de dor. Senti meu coração se apertar - Faz isso parar! Laíres...
- Aguente. - lhe lancei um olhar firme - Aguente. Onde ele está?! - voltando minha atenção para o bosque, falei mais alto que as vozes trovejantes - RESPONDA! E deixa o Fernando em paz antes que eu decida te queimar inteiro!
Então... a gritaria cessou. As muitas vozes se calaram.
- Obrigado... - O menestrel balbuciou antes de vomitar.
Desviei o olhar com um suspiro.
- Eu vou perguntar de novo. Onde...
"Vocês terão de voltar á fonte dos seus maiores medos". Disse a voz do bosque. Agora, uma única voz poderosa e clara. "Só assim vão achar o que buscam".
- Fonte dos nossos... - Franzi o cenho.
- Caverna Espelhada. - Fernando deduziu, pondo-se de pé e limpando a boca com a manga do moletom. Estremeci ao ver aquilo - Mas nós não podemos...
- Nós vamos. - o interrompi. Então, falei para o bosque
novamente - Não espere um agradecimento. Eu ainda devia
queimá-lo pelo que você fez.
"Não espero. Eu sei o que fiz. Mas entenda... que Molguart me forçou".
- Podia ter resistido. - Devolvi.
"Do mesmo jeito que você resistiu? Não quero o seu mal, Flautista. Quero prepará-la. Prepará-la para o que virá."
- E o que virá? - Questionei.
"Só posso dizer..." Enquanto ele falava, folhas de carvalho giraram ao redor do músico... até que uma flecha surgiu em suas mãos "Que não será aqui que encontrarão a loucura certa."
- Não...? - Zaphenath fechou a mão em volta da haste da
flecha.
"Não. E quanto a você, meu rapaz... garanto que o medo que sente agora só vai aumentar".
E, calando-se, ele deixou-nos ir.
A simples ideia de entrar naquela caverna de novo fazia meu estômago embrulhar. Tudo o que passei ali... tudo o que
passamos ali... essas coisas não são fáceis de esquecer. Enquanto seguíamos caminho em um silêncio perturbador, Fernando e eu compartilhávamos dos mesmos receios. Dos mesmos temores. Das mesmas... lembranças. Aquele labirinto de espelhos que nos refletia de maneira traiçoeira fez com que quiséssemos parar. Recuar. Desistir. Mas... nós continuamos.
- Sinto dizer-lhes isso, mas... vai ficar pior. - disse uma nova
voz. Surpresos, nós giramos rápido nos calcanhares, buscando pela fonte do som - Oh, mil perdões! Eu vos assustei?
Com espanto, percebemos que aquela voz estava perto. Mais que isso: percebemos que ela vinha da...
Da flecha.
Com um arquejo, o menestrel soltou o projétil. Rapidamente,
aquilo pairou no ar antes de atingir o chão.
- Wow! - exclamou a arma falante - Eu entendo que estais com medo, Fernando. Mas não precisa ser tão grosseiro.
- Você... Você sabe meu nome?! Como sabe meu nome? - Ele
empalideceu.
- Você fala. - acrescentei - Como uma flecha pode... falar?
- Eu sou filho do bosque, Flautista. Por isso falo. Muito bem... Meu dever é ajudar-te... ajudá-los a encontrar o elfo. Estamos perto disso.
- Espero que sim, Shakespeare. - O nome surgiu de repente na minha mente.
- Que disse? Shakespeare? Não me chames assim. Isso é...
demasiado estranho. Meu nome é Eplégmeno.
- Eplég... O quê?
- Significa "Escolhido". - Fernando traduziu - Gostei.
- Prefiro Shakespeare mesmo. - dei de ombros. Então, falei
mais seriamente - E agora?
- Chame-o. Ele virá até você.
Meu coração deu um salto. Ele virá. Determinada, chamei:
- Gárgula! - minha voz estava carregada. Carregada de
saudade. Carregada de ansiedade. Carregada de medo - Volte para mim!
E, de fato, ele voltou. Ou melhor dizendo... eles voltaram.
O primeiro veio correndo e praticamente se jogou em meus braços. Estava trêmulo, como se algo de muito ruim tivesse
acontecido com ele. E eu podia jurar que aquele era mesmo o
Gárgula. Tinha a mesma pele macia e levemente azulada, as
mesmas feições delicadas de elfo, os mesmos olhos belos e
ingênuos... tinha que ser ele.
- Ah, Gárgula... - abracei-o - Tive tanto medo de que algo
tivesse te acontecido...
- É verdade. - Fernando concordou. Estava de braços
cruzados. Contendo o medo e a raiva - Ela estava bem
preocupada mesmo.
- Eu quero ir pra casa... - ele enterrou o rosto em meu vestido
- Quero ir pra casa...
- Claro que sim. - falei suavemente - Claro que vamos...
- Não acredite nele! - disse uma segunda voz. Fernando e eu arquejamos quando vimos surgir das sombras um... outro
Gárgula - Por favor... - ele ajoelhou-se diante de mim. O rosto banhado em lágrimas - Não acredite nele! É... É um impostor!
- Ah, não... - Fernando recuou - Dois Gárgulas?! Isso só
pode ser um pesadelo! Bem que o bosque disse que meu medo só ia piorar.
Eu concordava com Zaphenath. Estava apavorada também.
Queria me esconder. Dois? Qual deles era o verdadeiro? Qual
deles era o elfo nascido da rocha? Qual deles era o meu Gárgula?
- Vai piorar ainda mais. - Disse a flecha. Engoli em seco. É o quê?!
Aí... veio o terceiro. E aquele último me causou arrepios.
Ele não era como os outros. Não correu até mim assustado.
Aquele, hesitou um pouco nas sombras antes de se revelar. E... ele não tinha nada do Gárgula. Não podia ser ele. Se parecia
fisicamente, mas o seu comportamento... ele parecia... parecia louco.
- Saiam. - grunhiu. A cabeça estava baixa e os punhos estavam cerrados - SAIAM!
- Venha até mim. - Ordenei. A voz firme ocultando o medo.
Por um instante, ele pareceu ceder. Dando um passo adiante, ele começou a aproximar-se de modo cauteloso. Mas aí ele ergueu os olhos e...
- Você. - seus olhos azuis pousaram em Fernando. A raiva e a loucura dançaram de forma macabra em seu rosto antes... dele avançar.
Num movimento rápido, ele saltou sobre o músico; as mãos
pousadas em seu peito. Fernando ofegou. Garras de pedra.
- Solte-o! - Gritei. As mãos trêmulas pegando meu arco e
preparando uma flecha.
- Você... Morre... Hoje! - Gritou o Gárgula enlouquecido, em
seu próprio idioma. Naquele dialeto bizarro que só eu (sei lá
porquê) conseguia entender. Para o Fernando, aquela frase havia certamente soado como "Vyans... Merrun... Higuin!"
- Eu n... não sei o que... significa "Vyans Merrun Higuin", mas a
resposta é "Não". - mesmo sem fôlego, Zaphenath reagiu. E
reagiu de uma maneira que ninguém reagiria numa hora dessas. Ele... cantou. Cantou de um modo tão suave que mal se dava para perceber seu medo. Cantou de modo tão hipnótico que senti meu corpo pesar. Em instantes, ele havia se posto de pé. E em seus braços, inconsciente, estava aquele que outrora tentara matá-lo. Olhando para os outros dois que estavam um passo
atrás de mim, ele provocou - Vão querer se meter comigo
também? - os dois balançaram a cabeça em negação - Que
bom.
E sem dizer mais uma palavra sequer, ele saiu da caverna,
carregando o terceiro clone e sendo seguido por mim e pelos
outros dois.
                  ● ● ●
- Como fez aquilo? - perguntei a ele quando chegamos no
Palácio Dourado. Para evitar mais confusões, os Três Gárgulas foram presos nas masmorras e lá ficariam até que decidíssemos o que fazer.
- Desde os meus nove anos... - ele sentou-se em sua cama
quando entramos em seus aposentos - eu sou chamado
Domador de Melodias. A música... me obedece, sabe? Eu canto... toco... e ela faz o que quero. Foi assim que deixei ele
desacordado.
- Isso é... incrível!
- É cansativo. - corrigiu - E aquilo foi assustador. Ele poderia ter me... - De repente ele arquejou. Ficou imóvel. Os olhos focavam o nada. Era parecido com o que ocorrera nas vezes em que tive uma visão, mas... foi bem mais assustador. Seus olhos estavam completamente escuros e sua pele estava muito quente. O diamante se sobreaquecera.
- Fernando! - Meu coração disparou.
Ele estava ofegante. Como se de repente o ar lhe faltasse.
- Não é ele. - disse a flecha - Ou ao menos... não agora. Está
sendo usado por...
- Eu sei como resolver. - disse Zaphenath. Não. Não era ele.
Seus lábios se moviam, mas aquela não era sua voz. Era mais perversa. Mais sombria. E mortalmente calma - Traga os três até minha caverna quando der meia-noite. Eu resolverei isso... ou matarei todos.
- Quem é você?! - Eu não sabia como reagir. Não sabia o que sentir.
- Venha. E não os deixe beber da água. Nem eles, nem o
músico. Se eu souber que me desobedeceu... você morrerá com eles.
Como que tendo dito tudo o que devia, aquela coisa pareceu
deixar seu corpo. Seus olhos voltaram á cor normal e ele caiu na cama macia.
- Ai, meu Deus! - Levei as mãos á boca.
- Eu... estou bem. - Garantiu ele. Parecia exausto. Sua voz era quase inaudível e um suor frio banhava seu corpo.
- Não tá não! - me pus de pé - O que foi isso?! O que
aconteceu?!
- Eu não... Eu não sei. Eu...
- Trofônio. - Disse a flecha.
- Quê?! - Cruzei os braços.
- O Oráculo das Sombras. Ele aconteceu. Usou o músico para
mandar uma mensagem.
- Mensagem...? - O filho de Vigart olhou-me com centenas de perguntas brilhando em seus olhos.
- Jura que não se lembra do que disse? - Indo até o banheiro que havia em seu quarto, peguei um pano molhado e voltei com
passos apressados.
- Não.
- Foi apavorante. - Pousei o pano sobre o diamante.
- Isso é... - ele suspirou - refrescante.
- Parecia não ser você. - comecei a andar de um lado para o outro - Não era você. Era como se esse tal... Oráculo das Sombras tivesse te... possuído! E ele disse que queria que fôssemos lá. Na caverna. Nós dois... e os clones. Quando o relógio bater meia-noite.
- Nós... Mas... ele vai nos matar! Não conhece a história? Ele
enlouquece e mata todos que o buscam. Laíres...
- Nós iremos. - falei, sem esperar que ele dissesse mais nada - Agora... - olhei pela janela do quarto. O sol já se pusera, as estrelas e a lua prateada banhavam aquela Terra com sua luz - descanse. Teremos de estar preparados para o que virá.
- Eu não sei se estou preparado para mergulhar no mar de
loucura e medo que é aquela caverna.
- Vai ter que estar. - E deixei o local, fechando a porta devagar.

As Aventuras de Laíres e Fernando na Terra da Imaginação: Do Fim ao Recomeço Onde histórias criam vida. Descubra agora