Amor Sombrio

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Escolhas. Parece que esta é a palavra que rege a minha vida. Quer dizer... eu fiz uma escolha quando entrei na Terra da Imaginação pela primeira vez. Fiz uma escolha quando decidi voltar, mesmo depois de tudo. Fiz uma escolha quando sacrifiquei a Mandrágora para salvar os outros... e também tem a maior escolha que até então me foi imposta: Fernando ou Trofônio? Qual deles seria protagonista no palco do meu coração? Qual deles eu deixaria cair no abismo do esquecimento? Eu queria evitar que chegasse o dia dessa escolha tão difícil, mas... ele chegou. E eu precisei escolher.
Embora já tenha estado em Egyptum outras vezes, era a primeira vez que o Fernando estava ali a passeio, e tivera de fato a oportunidade de conhecer o local. Era engraçado vê-lo girar no lugar enquanto andávamos, observando cada detalhe do templo. Às vezes, ele tinha que apertar o passo para conseguir acompanhar o filho de Hórus, que saltitava à nossa frente, nos guiando. Dava para ver a paixão dele por arquitetura na maneira em que ele enfatizava os detalhes do templo.
- E ali tem a Sala Secreta. Até onde eu sei, o poder do Espírito Oracular é mais forte lá.
- Você nem imagina quanto. - Concordei. Aí, me dirigi ao Fernando - E então?
- Esse lugar é incrível! - sorriu - E é calmo! Eu adorei! Certeza que é impossível alguém se estressar aqui.
- Pfff. - Melkor caiu na gargalhada - Impossível? Cê devia ver quando ela tá atendendo os requerentes! Tem cada Egyptiliano insuportável! - e sussurrou - Uma vez uma moça veio reclamar com ela porque o marido deitou com outra, cê acredita?
- Ô, Melkor! - Senti minhas bochechas corarem - Mas é verdade. Nem sempre é tão calmo aqui.
- E hoje só tá calmo porque eu expulsei todo mundo.
Foi minha vez de gargalhar
- Você fez o quê?! Como?
- Eu causei um furacão na sala de espera. Mas, váh! Vocês não queriam um dia tranquilo? Dei-lhes um dia tranquilo.
- Não importa como fizeram este lugar estar calmo. - Fernando inspirou. Prendeu a respiração. Expirou. A tranquilidade dele me atingindo em ondas - Eu amei. Poderia ficar aqui para sempre!
- Para sempre eu não sei. - disse eu - Mas até a tardinha podemos ficar. Eu tô pensando em passarmos a tarde jogando Senet. Eu, vocês, e as sacerdotisas.
- Isso! - O filho de Vigart e o ruivo concordaram.
- Beleza. Vou só pegar o tabuleiro na minha bolsa, e uns biscoitos que eu trouxe. - Aí eu fui até minha bolsa e a abri. Eu tô acostumada a ver minha aljava pendurada na bolsa, e já identificar as penas esverdeadas do Shakespeare, mas...
Gelei. Ele não tava lá. Não tava na aljava. E não era como se eu o tivesse esquecido no Reino Dourado, porque eu NUNCA o esqueço. Nunca.
Foi nessa hora que as palavras dele voltaram a minha mente acompanhadas de uma forte vertigem. Não hei de deixar-te nunca mais. Não enquanto minha mente me pertencer.
Enquanto minha mente me pertencer. Alguém tirara o Eplégmeno de mim, e ele sabia que esse dia ia chegar. E o pior: alguém dominara a mente dele também.
- Não. - Sussurrei - Que droga! Não! Não! NÃO!
Comecei a chorar. Eu jurei-lhe que não deixaria ninguém tirá-lo de mim. E eu falhara em cumprir esse juramento. Eu falhara.
Eu falhara.
Eu falhara!
EU FALHARA!
- Deuses, que foi?!
- Você tá bem?!
Fernando e Melkor vieram tão rápido que eu podia jurar que tinham se teleportado.
- Shakespeare. - Eu estava a ponto de gritar - Levaram o Shakespeare.
- A flecha? - o filho de Hórus fez uma careta - Pra quê?
- Quem levou? - Fernando completou.
- Eu não sei, droga! - passo as mãos pelos cabelos - Eu não sei!
- Tá. Se acalma, ok? - Melkor ergueu as mãos - Nada vai se resolver se ficarmos agitados. Porque cê não usa a Sala Secreta? Certeza que o Espírito Oracular te revelaria...
BRUM! O templo inteiro estremeceu, como se um grande terremoto abalasse a terra; pedaços do templo começaram a desabar.
- O que tá acontecendo? - pelo tom da sua voz, eu tinha certeza que o Fernando estava a ponto de chorar de medo.
- Saiam do templo. - Melkor ordenou (e quando digo ordenou, quero dizer que ordenou MESMO. A firmeza na voz dele provavelmente sendo capaz de fazer uma nação inteirinha obedecê-lo) - E levem os sacerdotes com vocês. Eu vou tentar segurar! -
e eu vi quando dois furacões saíram de suas mãos, mantendo o teto no ar.
- Vai O QUÊ?! - Senti dificuldade para respirar - Melkor!
- SAIAM!
E nós fomos. No desespero, peguei o Fernando pela mão e nós saímos, os sacerdotes saíram. Aí o templo desabou.
O templo desabou. E ele tava lá dentro.
- Ele ainda tá lá! - Fernando deixou um grito de horror escapar.
- MELKOR! - Gritei, como se de repente ele pudesse me ouvir lá de dentro - Não, não, não! NÃO! - eu corri até o templo. Não tava nem aí se acabasse ficando presa nas ruínas - Melkor! - senti as lágrimas arderem em meus olhos. Eu não podia perder mais alguém. Já havia perdido o Oráculo, e o trouxera de volta. Eu não suportaria perder uma das únicas pessoas em Egyptum a quem eu seria capaz de confiar até a minha vida.
- Eu tô aqui, mulher. Relaxa! - senti uma corrente de ar me puxar para trás devagar. Para longe das ruínas - Cê ia entrar lá por mim? Jura?
- Um dia desses eu ainda te mato, seu... Urgh! - o apertei num abraço quase que involuntariamente - Eu pensei que você tinha...
- Gente - Fernando interrompeu, nos incentivando a olhar adiante. Para as ruínas. Para as ruínas do meu templo.
- Não sobrou nada. - Minha voz tremeu.
- Eu consegui tirar poucas coisas de lá. - O Filho de Hórus ergueu o Livro do Destino e o Cálice Profético. Ele evitava olhar para eles, e meio que eu entendia o motivo. Eles puxam sua mente para a profecia pura se você os encarar por muito tempo. Quer você seja Oráculo, quer não - Sinto muito.
- Mas quem faria isso? - Fernando indagou - Set?
- Não. - o ruivo balançou a cabeça - Não foi ele. Eu conheço o poder do meu tio, além de quê se fosse ele, eu não teria saído vivo lá de dentro. - fez uma pausa - Foi algo menos poderoso. Menos poderoso, só que... com uma determinação muito maior.
Na minha mente, uma luz acendeu-se. Era isso. Fora ele. Trofônio. Estava fazendo isso porque eu ainda não escolhera.
- Tem razão. - falei, estremecendo - Não foi Set. Fui... Fui eu.
- Não. Péra. Quê?!
- Como foi você? - Fernando me olhou por um longo tempo.
- Eu devia ter feito uma escolha quando a oportunidade me foi dada. - quase sussurro - E agora ele quer me forçar a escolher.
- Trofônio? - Senti o medo e a raiva irradiarem dele quando ele pronunciou aquele nome.
- Eu tenho que escolher. - decidi - Não posso me esconder mais. - E comecei a caminhar de volta às ruínas do templo.
- Não! - Fernando tentou me deter.
- Olha... - segurei suas mãos - Eu não posso mais fazer isso com você. Você não é o único em meu coração, Fernando. E eu não posso amar duas pessoas ao mesmo tempo. Eu tenho que escolher. Você... ou o Trofônio. E vou fazer essa escolha diante dele.
- Não...
Mas eu não disse mais nada. Eu só fui. Fui até os destroços do que antes fora uma imponente construção, e aí vi a nuvem se erguer. Uma nuvem de escuridão que brotou do chão e me envolveu até eu não conseguir ver mais nada. Até eu ser teletransportada para sabe-se lá aonde.

As Aventuras de Laíres e Fernando na Terra da Imaginação: Do Fim ao Recomeço Onde histórias criam vida. Descubra agora