Meia-noite. Levantei-me da minha cama num salto assim que as doze badaladas soaram. Chegara a hora de ir.
Chegara a hora de mergulhar no escuro mar de loucura... e medo. Mas eu não me importava. Se fosse para trazer o Gárgula
de volta (o verdadeiro) eu faria de tudo para conseguir.
Após vestir-me, fui com passos cautelosos até os aposentos do
filho de Vigart. As chaves das três celas balançando nas minhas mãos. Muito embora não parecesse, o meu coração estava aflito. E não só com a ideia de falhar em descobrir qual dos três era o verdadeiro. Eu estava aflita... por não saber o que aconteceria ao Fernando. Estava aflita por não saber o que o Vidente das Trevas queria dele. Estava aflita ao pensar que eu corria o risco não só de falhar com o Gárgula... mas de perder meu melhor amigo para a escuridão.
— Fernando? — Caminhando até sua cama, acariciei seu rosto
pacífico. Na minha mente, a visão do que ocorrera há poucas horas permanecia. Trofônio o usara. O usara para me chamar. Por que é sempre assim? Por que ele sempre tem que ser a ponte entre mim... e os seres daquela Terra? — Ei... Vamos. Acorde. —uma das minhas mãos brincou com uma mecha do seu cabelo escuro e macio.
— Hum...? — ele esfregou os olhos. Odeio acordar cedo, dizia aquele gesto. Se fosse em outra ocasião, eu teria rido daquilo.
— Está na hora. — indo até seu guarda-roupa, peguei uma
túnica curta de um azul-claro e uma calça comprida de cor
escura — Vista-se. O estarei esperando nos portões. Eu... — com um suspiro, balancei as chaves — ... E os outros três.
— Precisamos mesmo fazer isso?
— Precisamos. — Sem dizer mais nada, eu deixei o quarto e desci as escadas. Logo, Nós cinco estávamos no lado externo do
palácio Dourado. Fernando, eu e os três. Prontos para mergulhar numa aventura perigosa em busca... da solução.
● ● ●
Aquela caminhada pareceu durar uma eternidade. Conforme avançávamos, o caminho diante de nós escurecia mais e mais. A lua recusava-se a mostrar seu brilho. Os pirilampos esconderamse. As estrelas cobriram sua luz com um manto escuro. Era como se até a natureza estivesse com medo do que nos esperava.
Durante todo o trajeto, o que falava mais alto era o silêncio que pesava
sobre nós. Silêncio esse, que ninguém ousou quebrar até que…
Fernando parou abruptamente. De repente, foi como se uma
forte mão o forçasse a parar. Diante dele, havia uma fenda que parecia ser incalculavelmente profunda. Seus olhos estavam fixos nela.
— É aqui. — Disse. A voz era desprovida de qualquer emoção. Até mesmo o medo que ele parecera sentir durante o tempo que andávamos pareceu evaporar.
— Como sabe? — Questionei.
— Se duvida de mim, eu posso jogá-la lá embaixo.
— Zaphenath — Virei-o para mim. Os olhos estavam escuros
outra vez.
— Quero só ver até onde vai a sua coragem, Flautista. — e
afastando-se de mim, ele saltou na fenda. Sem medos. De repente seu medo de altura e de profundidade parecia não significar nada. Ele apenas... lançou-se na escuridão.
— Não! — Preparei-me para saltar também.
— É uma queda bem considerável. — disse um dos Gárgulas.
— E ainda quer que desçamos?! — o outro estremeceu.
— Eu não tô nem aí para a profundidade. — devolvi com
rispidez. Eles já estavam me fazendo perder a paciência — Seja lá o que viva lá embaixo, ousou usar meu melhor amigo. E agora vai se ver comigo. Então, quer queiram, quer não, vocês vão
descer.
— Não se importa mais conosco? — questionaram.
— Eu me importo com o verdadeiro.
— E se um de nós for o verdadeiro?
— Se for, certamente vai calar a boca e me deixar raciocinar.
Agora... desçam.
Sem mais questionamentos, os dois saltaram na fenda. Apenas o terceiro permaneceu. Estava trêmulo e suas lágrimas de pavor pareciam ser genuínas.
— Não posso descer lá! — ele chorava — Ele... Ele vai destruir minha mente igual eles fizeram!
— Eles? — ajoelhei-me diante dele. Suas mãos estavam
amarradas e aquela era a única garantia de que ele não me
atacaria.
— Eles estão me atormentando até agora! E o Sombrio só vai
piorar tudo!
— Não. — com calma, desamarrei suas mãos — Não vai, tá
bom? Mesmo que
você não seja o verdadeiro... — não podia ser ele. Mas... ai,
droga! Se for um dos outros dois... será que me perdoará pela
forma ríspida pela qual o tratei? — ... não deixarei que nada te
aconteça, certo?
— Você... promete? — seus olhos enlouquecidos fitaram-me com
confiança.
— Eu prometo. — pondo-me de pé e ajudando-o a levantar-se,
tomei-o pela mão e nós dois nos lançamos na Caverna dos
Pesadelos. No refúgio do medo. No lar das trevas. No
santuário... do Oráculo das Sombras.
Embora aquela câmara fosse ampla, eu me sentia sufocada. Era
como se a escuridão que crescia ao meu redor quisesse me
aprisionar. Como se grades feitas de escuridão me privassem da
liberdade. Aquilo foi o bastante para uma fagulha de medo se
acender em meu coração.
— Não enxergo nada. — um dos clones choramingou.
— Não podíamos ter ficado lá em cima? — sugeriu o outro.
— Calem a boca. — grunhi. Um dos braços envolvia os ombros
do terceiro de um jeito protetor.
— Mas eles estão certos, em parte. — disse o filho do
bosque — Está impossível de se enxergar.
— Desde quando flechas enxergam?
— Hã... Desde... Não sei.
"Chame a luz. Invoque-a." Disse uma voz em minha mente. A
mesma voz que me orientara antes daquelas espadas luminosas surgirem em minhas mãos. Antes de eu matar os Telquines. A mesma voz antiga e poderosa que por algum motivo começara a me guiar.
"Como faço isso?", eu quis saber.
"Concentre-se. Imagine a luz te obedecendo. Eu faço o resto."
Respirando fundo, fiz o que me foi mandado. Me concentrando, imaginei aquele lugar sendo iluminado por uma luz forte. E
então... ela surgiu: uma enorme tocha que se concentrava entre
os dois rios que banhavam aquele lugar: um, era tão negro quanto as trevas que residiam naquela caverna. O outro, era tão branco quanto uma folha de papel antes de ser marcada pelas letras. Tão limpo quanto uma mente sem lembranças. Estige e Lete. Os rios da memória e do esquecimento.
— Isso foi esplêndido! — Shakespeare (Eplégmeno... Sei lá!) rodopiou no ar.
— Foi assustador. — eu estava ofegante. Com passos hesitantes, debrucei-me sobre os leitos e bebi das águas daqueles dois rios. Ambos, formando uma armadura para minha mente.
Um escudo para minha alma. Uma couraça que me protegeria dos truques de Trofônio. Que me impediria de me entregar á
sua poderosa escuridão.
— Devemos beber? — os dois “lúcidos” correram para os rios e ajoelharam-se.
— Bebam, — ameacei — e eu afogo vocês. Quer saber?! — afastando-me do terceiro, eu me concentrei no meio deles — Pra mim já chega! Eu já cansei desse jogo. Ou os
impostores se revelam agora... — sem saber como, fiz as chamas
voltarem para as minhas mãos. Embora queimassem fortemente, eu não sofria danos. Nem sequer sentia seu calor — Ou me esqueço do afeto que tenho pelo Gárgula e incinero vocês três.
— Bravo! — disse uma nova voz que eu reconheci. Foi a mesma
voz que falou através de Fernando. Foi a mesma voz que me atraiu até ali. Trofônio. — Nunca vi uma demonstração de frustração e fúria tão... magnifica!
Senti mãos geladas e invisíveis tocarem meu rosto com um misto de ternura e crueldade. Aquele toque, de algum modo, fez as chamas em minhas mãos se extinguirem. Fez meu corpo ser inundado por um medo irracional e, ao mesmo tempo por... prazer.
— Quem é você...? O que quer de mim...? — minha voz falhou.
Embora eu quisesse parecer corajosa e impenetrável, algo
naquele toque me... atraía.
— Ora... Quero te ajudar.
Então, a câmara iluminou-se outra vez e eu pude ver: diante de mim e dos três estavam duas figuras: uma, era o filho de Vigart. O rosto moreno e inexpressivo iluminado pela luz pálida. Os olhos, um mar de escuridão. E o outro... O outro, era um homem jovem e alto, dono de uma beleza indescritível. Sua pele pálida parecia emitir um leve brilho; seus olhos negros brilhavam como duas estrelas e suas roupas negras pareciam escondê-lo nas trevas que a ele serviam. Seu rosto angelical e ao mesmo tempo assustador estava marcado por um sorriso malicioso e irritantemente belo.
— Me ajudar? — não ousei encará-lo. Não ousei, porque se eu fizesse isso... certamente me renderia àquela beleza sombria e mortal — E quer me ajudar raptando meu melhor amigo?!
— O músico é só uma pequena parte disso. — ele fez as sombras ocultarem o menestrel. Apenas ele estava visível agora — Foi o
cheiro da sua aflição que me atraiu.
— Termine logo com isso. — indiquei os três.
— Wow! Direto ao ponto, então? Que adorável. — e voltou-se
para os três — Muito bem. Dois de vocês... estão mentindo. E se
tem uma coisa que eu não tolero... é mentira. Quando eu
descobrir quem são os dois impostores... — ouvi um zumbido alto. Ao seu redor, abelhas-fantasma surgiram: pequenos pontos de escuridão que ameaçavam sugar a sanidade daqueles que
ousassem desafiar seu senhor — Certamente se arrependerão de ter nascido.
— Eu sou o verdadeiro, senhor! — disse um, ajoelhando-se —
Juro!
— "Éthan saip verinnus, Sunnaor! Juret!" — Repetiu o Vidente das Trevas, da forma exata como aquela frase soara ao ser pronunciada pelo Elfo — Isso foi uma súplica, rapaz? Porque se tem uma coisa que me dá prazer... é ver minhas vítimas suplicarem.
— Ele disse... — traduzi, num tom de voz baixo — "Eu sou o
verdadeiro, senhor. Juro." — Senti um gosto amargo na boca ao ter que repetir aquilo num tom neutro, sendo que o clone disse aquilo quase chorando de horror.
— Ah. É o que vamos ver, então. — erguendo a mão devagar, o
Oráculo fez o clone ser erguido magicamente no ar. Enquanto
isso acontecia, ele sufocava e arquejava, enquanto o poder de Trofônio parecia sugar sua vida — Se você é o verdadeiro...
então se lembra como a conheceu. Se lembra como conheceu a Flautista. Diga: como foi?
Enquanto sufocava, o primeiro implorou com voz rouca:
— Dutye-mi vivin, sunnaor! Éthan juret saip verinnus!
— Responda: Como você a conheceu?!
— Sunnaor di revaullin mit sumbris...
— RESPONDA!
— Éthan nit lewctmi!
Trofônio olhou para mim em busca de uma tradução. Com a voz trêmula, traduzi:
— Ele disse que não se lembra.
— Então confesse.
— Vyans joyt kytuin! — ele chorava.
— CONFESSE!
— Rait! — o clone tossiu sangue — Éthan mithean! Éthan nit saip verinnus! Saip ut refliet!
— Ele confessou. — Suspirei
— Muito bem. — ao conseguir o que queria, Trofônio bateu
palmas, o que fez com que o clone queimasse de dentro para fora. Enquanto ele gritava de dor, seu corpo se desfazia,
queimado por chamas azuladas. Até que elas cessaram... e dele
não sobrou nada além de cinzas — Um já foi.
— Você o matou! — eu estava boquiaberta.
— Hum... Matei. — seu tom de voz era de indiferença — E daí?
— Não precisava fazer isso! Por que tem que ser tão cruel?!
— Eu precisava sim. Ouça, Flautista: enquanto os clones
viverem, eles estarão drenando a sanidade e a vida do Gárgula.
Se não morrerem, eles vão continuar fazendo isso até... até não sobrar nada da essência dele. E aí... ele se tornará em pedra e
ficará assim... para sempre. Você quer isso?
— Não. — baixei a cabeça.
— E com relação á minha crueldade... — andando até mim, ele ergueu meu rosto com delicadeza e me beijou de leve nos lábios. Senti aquela estranha onda de prazer de novo. Que droga! Por que ele me atrai?! — Eu sei que, no fundo, você gosta disso.
— Sai de perto de mim. — Meus lábios disseram isso, ao passo
que meu corpo dizia “Eu sou sua".
— Tudo bem. — ele piscou para mim antes de voltar sua atenção para os dois restantes — Muito bem... sobraram dois. Mas só um de vocês é o verdadeiro. Resta saber... Qual?
— Wytik ren hathan?! — disse o segundo — Ardhatnos buyrt hatha kent ot wajind?!
— Está... — engoli em seco — Ele está perguntando se você fará
com eles dois — indiquei os dois Gárgulas restantes. Minhas
mãos tremendo — o que fez com o primeiro.
— É uma proposta tentadora. Mas não. Na verdade... eu vou
testá-los. E você, Laíres... — Trofônio veio até mim outra vez e pousou o dedo indicador em meus lábios. Sua pele era gelada e estranhamente macia — Você será o objeto central do teste.
— O que vai fazer? — afastei sua mão bruscamente.
— Eu? Nada. Ele vai. — com um aceno de mão, ele fez Fernando se aproximar. Em suas mãos, havia uma flauta. Ah, meu Deus! Mas aquela era... a minha flauta!
— Você não sabe o que está fazendo, Trofônio. — ergui as mãos — Não sabe o poder que essa flauta tem.
— Ah, eu sei. Sei muito bem. Você é que não sabe o poder que eu tenho.
— Trofônio...
— Confie em mim. — ele me enlaçou com seus braços
novamente. Os lábios macios a centímetros dos meus. Seu hálito era tão doce quanto o aroma exalado por um lírio. Ah, meu
Deus! Por que a escuridão tem que ser tão... perfeita?!
— Como se confia na escuridão? — Contive a vontade de beijá-lo.
— Entregando-se a ela. Entregando-se a mim. — e para o menestrel — Fernando, toque.
Por um instante, ele hesitou. Foi como se, apesar de estar sob o
controle das trevas, ele ainda soubesse do poder daquele
instrumento.
— Fernando... — chamei-o com a voz fraca. Hesitante — Não
faça isso. Pelo amor de Deus... Não faça isso!
— Toque. — a voz de Trofônio o fez segurar a flauta com força e levá-la aos lábios. Pronto. Já era.
Ele começou. Ao som de sua música, ao som da minha flauta, senti meu corpo pesar. Quando minhas pernas cederam, fui amparada pelos braços macios e fortes de Trofônio e o senti me beijar umaúltima vez antes de tudo escurecer.
Embora a escuridão me sufocasse, eu não estava completamente inconsciente. Uma parte de mim ainda percebia os acontecimentos ao meu redor. Eu ainda ouvia a música de Fernando. Ainda sentia a maciez do abraço de Trofônio. Ainda conseguia perceber o desespero dos dois Gárgulas. E mais que tudo... eu sentia o sufoco. Me senti sufocar quando o Vidente das Trevas deitou-me gentilmente no chão da caverna. Senti-me sufocar quando perdi o contato com seus braços macios. Senti-me sufocar... quando aquelas faixas de escuridão começaram a
enrolar-se cada vez mais depressa em meu corpo á medida que Fernando tocava mais alto e mais rápido. Eu sentia... como se a vida quisesse me deixar naquele momento.
— Se se importam com ela... — ouvi Trofônio dizer — Salvem-na.
— PARA COM ISSO! — ouvi o terceiro gritar, enquanto chorava.
— Deixe-a. — disse o segundo. Entretanto, eu não percebi
firmeza em sua voz. Não percebi emoção alguma. Sentimento
algum.
— Salvem-na! E continue tocando, Fernando! CONTINUE
TOCANDO!
E Fernando obedeceu. Tocava sem parar como se seu fôlego
fosse infinito. Como se todo o seu ar estivesse sendo espremido,
obrigando-o a tocar... e tocar... e tocar. Mas aí... aquilo aconteceu. Enquanto as faixas escuras já cobriam meu peito e tomavam meu ar, senti algo saltar sobre mim e começar a rasgar as tiras negras. Suas afiadas garras de pedra cortavam as sombras e me libertavam lentamente, devolvendome o ar. Este é o verdadeiro. Eu soube no mesmo instante. Mas... qual dos dois era? E logo minha resposta veio. Só que... foi dolorosa de se aceitar.
— PARA! — ele gritou, enquanto rasgava as faixas — DEIXA
ELA EM PAZ!
E eu reconheci em sua voz a loucura. A aflição. O desespero.
Este é o verdadeiro. Mas também é... o louco.
— Fernando... — Trofônio chamou — Pare.
Quando ele parou de tocar, imediatamente as faixas
evaporaram... e eu me vi livre outra vez. Quando a escuridão
enfim me libertou, quando por fim abri meus olhos, deparei-me com olhos de safira que me encaravam com espanto... loucura... e medo. Desandei a chorar.
— Não consigo acreditar... — eu soluçava — Não pode ser você.
—pousei as mãos em seu rosto e acariciei seus cabelos — Ah,
Gárgula... — e o puxei para um abraço. Embora estivesse
trêmulo, embora não retribuísse, ele não tentou me afastar — O
que foi que eles te fizeram?
— Sabe... Teríamos feito pior se você não tivesse se metido nessa
história. — o reflexo cruzou os braços e sorriu friamente para
mim.
— Teria feito pior?! — grunhi — Seu verme...
— Pior será o que eu farei a você agora, falso Gárgula. —
Trofônio esfregou as mãos com satisfação.
— Su... Sunnaor di revaullin mit sumbris... – o reflexo recuou. De repente, sua ousadia pareceu evaporar.
— Silêncio! — gritou o Oráculo — Você não tem direito de dizer mais nada. Sabe, meu rapaz... — seu tom de voz frio fez os olhos
do impostor encherem-se de medo. Enquanto eu abraçava
protetoralmente o verdadeiro, Trofônio fitava o reflexo como se quisesse esquartejá-lo — Enquanto você souber quem é,
enquanto sua essência te pertencer, o verdadeiro Gárgula continuará enlouquecido. E você sabe... como eu irei resolver
isso, não sabe?
— Pien fitvare, sunnaor... — implorou ele enquanto recuava, temeroso, em direção ao rio de águas pálidas — Jesitetbawan! Nit miglimi nu Letis! Éthan nit dytter apigard-lewct quin saip!
Dessa vez eu não precisei nem traduzir para que Trofônio
pudesse entender.
— Ah! — Trofônio gargalhou — Eu não vou banhá-lo no Lete.
— Tinkyek, sunnaormi!
— Não. Eu farei pior. —erguendo-o no ar, ele o levou até o rio e virou-se novamente para o músico — Aproxime-se, Zaphenath. — a obediência dele a esse comando me fez estremecer — Largue a flauta. — quando ele a largou, o instrumento voltou magicamente para mim — Agora... Você sabe o que fazer, não sabe?
— Sim, senhor. — e respirando fundo... ele começou a cantar.
Sua voz reverberava em cada uma das pedras daquela caverna e sua música parecia agir em cada centímetro daquele recinto. Enquanto ele cantava, o Lete pareceu atender seu chamado e as águas começaram a dançar. A girar em um turbilhão mortal. O rio outrora pacifico agora parecia um mar revolto.
— Wytik ren hathan?! — o clone debateu-se contra a magia
sombria que o prendia — WYTIK REN HATHAN?!
— Como eu dizia... não vou te banhar no Lete. — e jogou-o nas águas agitadas. Debatendo-se na tentativa de permanecer na
superfície, o clone gritou. Chorou. Implorou pela vida. Mas aí... o rio o engoliu. E ele não emergiu mais — Vou afogá-lo nele. — quando tudo acabou, ele fez sinal para o filho do feiticeiro — Já basta! Eu não preciso mais de você. — Suas mãos moveram-se brevemente e seu controle sobre Zaphenath se quebrou. Com um suspiro, ele deixou a exaustão tomá-lo nos braços e caiu no chão da caverna.
— Não! — levei as mãos á boca.
— Calma! Ele só está cansado. O repouso resolve. Sabe... você
deveria agradecer por eu ser piedoso com ele. Não é todo
requerente meu que sai vivo daqui.
— Eu não vou te agradecer por nada! — minha voz tremia de
raiva.
— Nem por isso? — manipulando as sombras, ele fez com que elas cercassem o elfo nascido da pedra. Enquanto a escuridão girava ao seu redor, eu o vi mudar. Os cortes em sua pele azulada sararam; a palidez da pele deu lugar ao rubor da saúde; e a loucura que brilhava em seus olhos de safira deu lugar a um olhar sereno. Um olhar sereno... que eu conhecia bem. Ele estava de volta.
— Gárgula...? — senti um sorriso trêmulo e involuntário se
formar em meu rosto.
— Onde é que a gente tá? — o elfo quis saber.
Meu sorriso aumentou.
— Ai, meu Deus... — o abracei. Mesmo sem entender nada, ele
retribuiu ao abraço — Você voltou! — e para Trofônio —
Muito... Muito obrigada!
Ele assentiu seriamente
— Quando voltar para a luz, Gárgula se esquecerá de tudo o que houve com ele hoje. Será melhor para ele e para você. Agora, por favor... suma.
— O quê...?
— Suma. Não quero te ver mais, entendido?
— Mas... por quê? Eu fiz algo errado?
— Você nasceu, Flautista. Você nasceu, entrou em minha
caverna e... — Chamas azuis iluminaram seus olhos negros.
Tristeza? — E me fez lembrar de tudo que perdi.
— Agamedes. — senti um aperto no peito. Senti sua tristeza me
afetar — Eu sinto muito. Eu não sabia que você tinha...
— Sentimentos? Eu tive um dia. E luto para destruí-los sempre
que eles regressam até mim. A escuridão não deve sentir nada. Deve ser tão fria e dura quanto uma rocha. Agora vá. Caso
contrário, eu posso me arrepender do que fiz por você. E... eu não quero te degolar. E leve isso com você. — disse, apontando para o músico — Não quero que fique em minha caverna. Já me serviu, mas não serve mais. Tire-o daqui antes que eu o mate mesmo. Aí, nem o descanso o fará acordar.
Eu queria lhe dar uma resposta á altura. Queria estapeá-lo, gritar com ele. Quem ele pensa que é para falar com o Fernando desse jeito?! E na minha presença, ainda mais?! Mas... eu não fiz nada. Não fiz nada, porque aquela droga de atração me impediu. Em vez disso, eu apenas me virei e abaixando-me, tomei meu amigo nos braços. O peso do seu corpo deixando-me ainda mais
abalada. Ao meu lado, Gárgula seguia.
— Me desculpe. — eu disse. Parando e olhando para Trofônio por cima do ombro.
— Não peça desculpas. Oráculos nunca pedem desculpa pelo
que dizem.
— Mas eu não sou...
— Não negue-se a si mesma. — e dizendo isso, ele desapareceu
na escuridão.
● ● ●
O que estava acontecendo comigo?! Eu... devia estar feliz! Devia estar feliz por cumprir mais uma missão! Devia estar feliz por enfrentar mais um problema! Devia estar feliz por ter o Gárgula de volta. Devia estar feliz por Fernando e eu estarmos vivos! Mas a verdade é... que eu nunca me senti tão abalada em toda a minha vida. Nem mesmo durante... os nove meses. E isso não se devia apenas a tudo que houve. Não se devia apenas ao medo que me tomou quando as sombras manipularam Zaphenath. Não se devia apenas á ansiedade avassaladora que eu estava sentindo enquanto andava de um lado para o outro do quarto esperando ele abrir os olhos outra vez. (Ele só está cansado. E DAÍ?! Não dá para fingir que nada daquilo aconteceu! Não dá para fingir que a mente dele não foi afundada num mar de trevas e quase afogou-se!) Todo o meu pensamento estava centrado...
no Vidente das Trevas. Em meu peito, crescia a culpa por eu
deixar aquela caverna. Que droga, Trofônio! O que você quer de mim realmente?! Por que esse seu olhar escuro e magnífico não deixa meus pensamentos?!
— Dá... pra você parar de... andar? Isso tá... me deixando tonto.
Corri até a cama.
— Ai, nossa! — soltei o ar que não percebi estar prendendo.
— Você... tá bem? —perguntou-me com a voz rouca (e quando digo rouca, quero dizer rouca MESMO. Era como se houvessem pedras em sua garganta. Também pudera! Depois do tanto que ele tocou e cantou... nem o ser mais forte do mundo suportaria).
— Se eu tô bem?! — ri, tentando esconder a tristeza que me
corroía por dentro — Tem noção de quantas horas faz que eu tô
esperando você acordar?! Você foi usado pelas trevas, obrigado a cantar até não lhe sobrar voz alguma... e pergunta se eu estou bem? Fernando!
— O quê? — ele pigarreou e fez uma careta de dor — Eu posso
estar fisicamente debilitado, mas você... — seus olhos verdes me
lançaram um olhar penetrante — Você está debilitada
sentimentalmente. Dá para... — e pigarreou de novo — ... ver
isso.
— Tá tão óbvio assim? — sentei-me na cama.
— Tá.
— Ah, Fernando... — deitei-me ao seu lado na cama espaçosa,
repousando a cabeça em seu peito e deixando minhas lágrimas rolarem, molhando sua túnica de ceda. A energia do diamante me alcançando com suaves ondas de calor.
— O que ele te fez? — perguntou em um sussurro. As mãos
macias acariciando-me.
— O problema não é ele. Sou... Sou eu.
— Ei... Não fale assim. O poder dele ainda está agindo em você.
— Quem me dera fosse só isso.
— O Gárgula...
— Ele tá bem. — o interrompi, levando um dedo aos seus lábios — E para de forçar essa sua garganta, tá? Você já fez muito
esforço por hoje.
— Estou preocupado com você. Tem... algo te incomodando, não tem? Foi... algo que ele disse?
— Ele...
Batidas ritmadas na janela interromperam nossa conversa.
Sentando-me na cama, olhei para a janela: voando com as
sandálias aladas de seu pai, estava Sammy, o filho do
mensageiro dos deuses. Caminhando até lá, abri a janela e deixei-o entrar.
— Cara! — ele pousou no chão e saltitou — Eu estava com uma
saudade ENORME de você, Laíres! E de você também,
Fernando! Quando eu soube que você voltou á vida... — seu
sorriso sumiu ao notar nosso semblante — Tá tudo bem, gente?
— Não. — Fernando respondeu em meu lugar. Ouvir sua voz
rouca e quase inaudível só me deixou pior do que eu já estava.
— Sua voz... — ele recuou.
— Nem... me pergunte.
— Me desculpa, pessoal. Acho que cheguei numa hora não
muito boa.
— Sem problemas, Sammy. — indo até ele, passei o braço em
volta do seu ombro e tentei soar o mais alegre possível — O que
queria nos dizer?
— É que meu pai me pediu para convidar vocês.
— Nos convidar pra quê? — ergui uma sobrancelha.
— Vai ter um evento bem interessante lá no Olimpo amanhã. E todo mundo lá espera que vocês possam ir.
— Faremos de tudo para ir. — garanti.
— Valeu! — sorrindo, ele aproximou-se da janela de novo e subiu no parapeito — Tchau, Laíres! Tchau, Fernando! —
quando acenamos de volta, ele ganhou os céus e desapareceu na imensidão azul.
— O que Trofônio te disse? — Zaphenath perguntou quando
ficamos sozinhos outra vez.
Voltando para a cama, deitei-me ao seu lado de novo,
abraçando-o.
— Ele revelou o que eu mais temia, Fernando.
— O que quer dizer?
— Eu vou me tornar um Oráculo.
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As Aventuras de Laíres e Fernando na Terra da Imaginação: Do Fim ao Recomeço
FantasyApós ter descoberto a Terra da Imaginação, ter vivido as mais incríveis aventuras ao lado de Fernando e ter passado pela dor de uma grande perda, Laíres tenta levar uma vida normal. Mas, mal sabe ela que seu passado como heroína da Terra da Imaginaç...