Espírito Profético

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Dias depois. 4 de dezembro de 2017.

Era noite. Uma noite estranhamente fria. E era meu aniversário. Se fosse outra pessoa, até mesmo se fosse em outro momento da minha vida, talvez eu estivesse animada em saber que o dia finalmente chegara. Poxa! Eu fiquei um ano mais velha, gente! Isso era pra ser motivo suficiente para eu estar saltitando por aí e cantarolando, mas... Os últimos acontecimentos não me permitiam fazer isso.
Naquela hora, Fernando e eu estávamos no pátio, sentados em um dos bancos de pedra que lá haviam. Daquele dia para cá, o músico havia melhorado bastante. Estava mais corado e não delirava mais, muito embora que a fraqueza e a falta de apetite ainda persistissem. Na noite anterior, a febre tinha voltado, mas não tão forte quanto antes, então... posso concluir que Trofônio estava certo: a cura era lenta, mas estava acontecendo.
E eu... Eu não podia dizer que estava bem. Me sentia fraca e abatida embora não demonstrasse em momento nenhum, e sentia fortes dores quando o sol nascia, o que era péssimo. Isso só me lembrava de que o Espírito Oracular estava enfraquecendo ainda mais. De que ele fora tirado de mim. De que o Homo Canibalis me ameaçara. De que seria naquele dia, no dia do meu aniversário, que o Espírito e eu supostamente sofreríamos muito... e morreríamos.
— Está tão frio aqui... — Fernando estremeceu, procurando se aproximar mais de mim.
— Está mesmo. — Concordei, tirando meu manto dourado e envolvendo-o — Quer entrar?
Ele negou com a cabeça.
— Eu gosto de ficar com você. E gostei de ter saído um pouco do... — estremeceu de novo. O abracei, a fim de aquecê-lo — ... quarto. Me fez esquecer um pouco de que estou... — espirrando, ele tirou um lenço do bolso da calça e assoou o nariz -... doente. — Concluiu, com aquela voz meio fanha de "nariz entupido" e fungou.
— É bom saber que eu faço você se sentir melhor. Agora venha. — me levantei e estendi a mão para ele — Vamos entrar. Lembre-se do que o Filipe disse: Você não pode ficar muito tempo exposto
ao frio. E... — olhei a hora no relógio de pulso que eu estava usando. Eu não costumo usar relógio, mas foi o que recebi de presente do Backnamut, então eu não ia deixar de usar. Não sendo um presente de uma das pessoas mais importantes para mim. Era um relógio simples, mas bonito. Sua braçadeira imitava com perfeição um bracelete de ouro — Ai, nossa! — espalmei a testa. Os ponteiros marcavam nove horas em ponto — Droga!
— O que foi?
— Eu perdi a hora da sua medicação! De novo! Desculpa, Fernando...
— Tá tudo bem. — fungou — O Filipe pode administrar quando entrarmos. Até que não me importo em não receber a medicação. Aquilo dói! — Disse, massageando o braço que vem sendo furado duas vezes ao dia desde a noite da última prova.
— Mas é algo necessário. Vamos.
— Espera, Laíres. — Pediu, me segurando pela mão.
— Que foi? — Acariciei seu rosto.
— Eu ainda não te dei meu presente.
Sorri, sem jeito.
— Não precisa me dar nada, querido. Você é meu presente, tá?
Ele corou.
— Mas eu tenho mesmo um presente pra você. Quando eu acordei, pedi que meu pai guardasse e só me desse na hora certa. Ele me entregou hoje de manhã. — do bolso do moletom, ele tirou uma caixinha simplesmente lindíssima. O pequeno recipiente era de ouro puro. Em sua tampa, uma estrela feita de rubi reluzia, representando a Estrela de Sangue e Ouro, o símbolo do Reino Dourado — Feliz aniversário, Flautista Mágica. — Inclinando-se, ele beijou meus lábios com ternura e entregou-me seu presente.
— Eu não sei nem o que... — corei — ... dizer. Zaphenath...
— Abra! — ele riu baixinho. Parecia ansioso para ver minha reação — Aí você pensa no que vai me dizer.
Com o coração acelerado de expectativa, abri o recipiente. E... Meu Deus. Eu simplesmente fiquei sem palavras.
Dentro, havia o colar mais lindo que eu já vira até então: uma fina e delicada corrente de ouro, que exibia um magnífico pingente: um coração de cristal com um casalzinho de ouro adornando-o.
— Fernando... — eu estava boquiaberta, olhando para o pingente agora em minhas mãos — Isto é... é a coisa mais linda que já vi na vida!
Seus olhos se iluminaram.
— Você gostou? Gostou mesmo? O casal simboliza nós dois. Eu sei que é simples, mas...
O calei com um beijo longo em seus lábios.
— Foi o melhor presente que eu já ganhei. O melhor presente... entregue pela melhor pessoa deste Universo. Pode me ajudar a colocá-lo? — entreguei a joia ao rapaz e afastei meus cabelos para que ele pudesse colocá-la ao redor do meu pescoço.
— E... pronto! — anunciou, acariciando meu pescoço. Suas mãos quentes me causando um breve arrepio. Virei-me para ele, e ri quando percebi que me olhava com um sorriso encantado nos lábios, como uma criança que finalmente ganha o presente tão desejado
— Que foi?
— Você tá... — ele parou e inclinou a cabeça para o lado — tão, mas tão linda! Que o Filipe suspenda minha medicação, Deus! Porque ver o contraste que o brilho do pingente tem com o brilho dos seus olhos me fez melhorar de vez!
Gargalhei.
— Pare com isso, seu galanteador! Anda. — o puxei pela mão — Vamos entrar...
— Não. — Eplégmeno ergueu-se da aljava e pairou diante de nós. Por um instante, eu havia esquecido que minha flecha falante estava ali também — Não se movam! Não entrem! — Sua voz estava trêmula, assim como todo o comprimento da sua haste. Ele parecia tenso. Preocupado. Sério: o que estava acontecendo com ele nesses últimos dias? — Não! Por favor!
— Shakespeare. — o segurei — Ei! Calma!
— Só saiam do palácio. Só saiam do palácio...
— Sair? — Fernando estremeceu. E não foi de frio dessa vez — Mas eu não posso ficar tanto tempo do lado de fora...
— MAS QUE COISA! — bradou a flecha, saltando da minha mão — Criança. Oráculo de Egyptum. Laíres, ESCUTE-ME! — eu tenho certeza que, se ele fosse humano, teria me agarrado pelos ombros e me sacudido — Tu te lembras BEM do que o Homo Canibalis disse! Tu sofrerás hoje! Tu viste teu espírito ser envenenado! Atrás desta porta, está a Mulher! Aquela coisa horrível que teve o crânio esmagado por Trofônio está na sala do trono, só esperando para atacar! Queres que ela te mate?! Que mate Fernando?!
— Não! — Fernando me abraçou.— Então saiam! Saiam antes que ela... — CABRAM! As portas da sala do trono se abriram com um estrondo e, de fato, ela estava lá. A mulher. A mãe do Homo Canibalis. E ela estava pior do que eu me lembrava. Mais horrenda, se é que isso é possível — ... venha. — Eplégmeno completou num tom quase inaudível e retraiu-se, escondendo-se na aljava.
— Obrigada por anunciar minha chegada, Filho do Bosque. — a mulher falou. Sua voz era rouca. Velha. Horrível — Mas você
foi tolo ao achar que poderia salvar esses dois.
Com passos lentos, ela começou a vir em nossa direção. Com um arquejo, o filho de Vigart escondeu-se atrás de mim, como se eu fosse um escudo (Fernando, o Corajoso! E depois ele reclama quando fico rindo dele). Eu mesma senti o medo me dominar. E não só o medo. A fraqueza e a dor também. Eu não entendia como ainda estava consciente. Mas, mesmo que meu interior ardesse como se estivesse em chamas, eu encarei minha inimiga com coragem. Com um olhar tão frio e duro quanto um lago congelado.
Ela estava pior do que quando entrei naquela sala. Seu corpo quebrado agora nem sequer tinha a forma de um esqueleto humano. O vestido negro sumira, mostrando todos os seus ossos quebrados. Os braços estavam dobrados em um ângulo anormal, seus joelhos e seus pés haviam sido virados para trás, e seu crânio... (Deus! O crânio era a parte pior!) seu crânio fora esmagado. A cabeça agora assumira uma forma meio achatada e quebrada. A mandíbula não estava mais onde devia estar, e suas órbitas oculares sumiram naquela confusão de ossos e carne podre. Os cabelos escuros estavam tão emaranhados quanto os novelos que o Rumpelstiltiskin usava para tecer quando ainda estava vivo (Ah, que PÉSSIMA comparação! Eu não queria mesmo me lembrar daquele verme raptor de crianças, mas minha analogia é válida. Acreditem. Eu não faço ideia de como não tropecei num emaranhado de fios de ouro quando entrei naquela cabana). E, ao seu lado, acorrentado e sendo obrigado a rastejar, estava o Espírito Oracular. Vê-lo naquele estado só me deu mais vontade de degolar aquela mulher. Mas, o problema... é que a fraqueza dele me atingia em ondas. Assim como ele, eu também sentia uma dor absurda. Também sentia como se o Veneno de Luz me partisse ao meio. Quando nossos olhares se encontraram, ele pareceu me enviar uma mensagem silenciosa: "Eu não queria que fosse assim". E aquilo simplesmente me fez desandar a chorar. De dor. De raiva. De medo.
— Não... — eu soluçava, aos prantos, quando me afastei de Fernando e comecei a caminhar na direção dele. Eu não me importava se minha dor aumentasse a cada passo que eu dava, ao ponto do ar me faltar. Eu só queria reverter aquilo. Eu só queria livrá-lo das garras daquela coisa. Eu só queria honrar com a promessa que fiz a ele e ao Rá de que não o deixaria até que minha morte viesse
— Liberte-o. — grunhi para a mulher quando estava a um passo de distância do seu prisioneiro, me contendo para não ir ao chão e me contorcer de dor, como o próprio Espírito estava fazendo naquela hora. Seus olhos me evitaram, para que eu não visse suas lágrimas luminosas — LIBERTE-O, DROGA! — Vociferei — LIBERTE-NOS!
Tudo que a mulher fez foi gargalhar.
— Por que você mesma não o liberta, Décima Quinta? Se se diz ser tão capaz... então por que não acaba logo com o sofrimento dele? Com o seu sofrimento? Vamos! Rompa as correntes!
Era um truque, claro. Eu sabia o que ela queria. Se eu fizesse o que ela dissera, se tocasse aquelas correntes, meu toque aceleraria o efeito do veneno. E aí... eu morreria. O Espírito morreria.
— Eu sei o que você quer, Miltred. — disse o Espírito Oracular, numa voz sussurrante, mas firme. Epa! Espera lá! Então o nome da mulher... era Miltred? Como eu não soube disso? — Mas acredite: a Décima Quinta, como você a chama, não é tola para satisfazer suas vontades. Nem as suas... — Ele olhou para mim.
— ... Nem as do seu filho idiota. — Completei, com o mesmo tom firme que ele usara.
— Veremos. — Declarou a vilã, antes de erguer as mãos e...
— Não. — dessa vez, foi Fernando quem deu um passo adiante. Na mesma hora, senti a mão da preocupação esmagar meu coração. O que raios ele estava pensando em fazer?! — Acredite, Miltred, você não verá nada aqui além do seu próprio corpo se desfazendo em pó. E se você pensa que pode fazer da minha amiga o seu brinquedinho... então pode ir pensando direito.
— Domador de Melodias. — ela praticamente cuspiu o nome dele, com nojo. De verdade: Por que o Fernando causa essa reação em algumas pessoas? Por que tem gente que não o suporta? Eu simplesmente não entendo como isso é possível... Não. Espera! Talvez eu saiba o motivo. Certamente é por conta do brilho em seus olhos. Certamente, é por seu desejo de continuar vivendo, mesmo quando o destino quis fazer de tudo para matá-lo. Certamente, é por conta dessa determinação que insiste em prevalecer apesar dele ser um rapaz frágil. Dessa determinação que fez com que eu me apaixonasse por ele — Vejo que está se recuperando bem depois do que houve.
— Ah, pronto! — ele revirou os olhos — E lá vem ela com esses discursos vilanescos! De verdade, Miltred: Vamos acabar logo com isso. Eu estou cansado, com frio, ainda nem jantei, e certamente não estou com paciência pra ouvir você tagarelar, ok?!
Aquela sua demonstração de coragem me fez rir alto, mesmo que meu corpo inteiro doesse. Aos pés de Miltred, o Orador de Rá também conseguiu esboçar um sorriso. Talvez aquele apelido
que eu pusera no Menestrel Douradiano só para irritá-lo tivesse uma pitada de verdade sim. Fernando, o Corajoso. Ele podia não ser destemido. Ninguém é. Até mesmo o ser mais forte tem medo de algo. Mas ele sabia enfrentar esse medo. E é isso que pessoas corajosas fazem: elas enfrentam as dificuldades, mesmo estando apavoradas.
— Então você quer lutar? — para minha aflição, a mãe do Homo Canibalis conjurou duas espadas luminosas. As minhas espadas luminosas — Muito bem, Fernando. Vamos lutar.
Aí ela avançou... E, com a mesma facilidade de quem pega uma xícara de chá em cima da mesa, o filho de Vigart invocou seu alaúde.
Quase que involuntariamente, eu recuei alguns passos. Eu sabia que a música de Zaphenath era poderosa. Conhecia a capacidade que ela tinha de mudar tudo ao seu redor. Então... eu deixei que ele agisse. Olhando diretamente para sua adversária, ele se pôs a tocar, sua música parecendo reverberar em cada pedra daquele castelo. E, embora dessa vez ele não tenha cantado, eu sentia que cada acorde que ele tocava era uma ordem. Aquela música ordenou que uma fenda se abrisse no lugar onde Miltred estava e a prendesse. Aquela música ordenou que as correntes que prendiam o Espírito Oracular se rompessem. Aquela música ordenou que chamas irrompessem da abertura no chão e incendiassem o corpo da mulher. Lambredas que lamberam os ossos daquela coisa horrenda enquanto ela gritava... e gritava... e gritava. E, enquanto ela sofria, o Espírito e eu pudemos respirar novamente. Sentimos a força começar a retornar. Sentimos o veneno sair do nosso corpo, devolvendo-nos a liberdade e a vida...
Só que, com a mesma rapidez que aquele instante de vitória começou...
... ele terminou.
Eu soube que as coisas começariam a dar errado de novo assim que vi o Domador de Melodias empalidecer e oscilar para o lado; seu corpo perdendo a força de repente. Em suas mãos, o alaúde se dissolveu e desapareceu, igual sal diluído em água.
Com um arquejo, o amparei com rapidez. Ele tremia. Suava frio. Seu diamante estava preocupantemente quente.
— Ei. — dei tapinhas em seu rosto quando notei que estava atordoado e que seus olhos estavam desfocados — Ei! — falei mais alto — Não desmaie!
— Hum... — Reclamou, como quem diz "Poxa! Agora não posso fazer o que faço de melhor?"
— NÃO DESMAIE! — O estapeei com mais força dessa vez.
E, pela primeira vez, ele conseguiu obedecer essa ordem. Pela
primeira vez, ele esforçou-se para manter os olhos abertos, sem entegar-se á inconsciência.
— Eu n... — engasgou — Não vou desmaiar. — Disse. Mas aquilo pareceu mais uma garantia direcionada á sua própria mente, do que uma garantia direcionada a mim.
— Tá. Tá. — Tentei manter a calma. Ao meu redor, tudo pareceu sumir e, por um instante, eu me culpei por isso. Me culpei por sempre dar mais atenção ao Fernando, mesmo quando problemas BEM maiores giravam ao meu redor. Me culpei, por sempre tentar proteger a ele e por se esquecer de proteger a mim mesma. Eu amava o Zaphenath sim. O amava ao ponto de ser capaz de dar até minha vida por ele. Mas... será que toda essa proteção que eu lhe dava era o certo a se fazer? Será que... Ai, droga! Agora eu estou falando igual o Trofônio. Foco, Laíres! Foco! — Saia daqui. — ordenei ao músico me perguntando se ele conseguiria se pôr de pé — Saia e esconda-se.
— Mas... — Estremeceu.
— Saia. — O ajudei a levantar.
— Eu não vou deixar você...
O agarrei pela gola do moletom, sem acreditar que estava mesmo sendo agressiva com ele.
— Saia! Se não me obedecer por livre e espontânea vontade, eu juro que te obrigarei a me obedecer!
Aos tropeços, ele saiu correndo/cambaleando em direção ao lado de fora do palácio. Suspirando, voltei minha atenção para a mulher novamente. Ela parecera não se importar com o fato do Fernando ter fugido. Eu era seu foco. Ele certamente fora só... uma diversão a mais. Só isso.
Observei a situação em que me encontrava: a mulher ainda triunfava, de pé. O Espírito Oracular fora novamente contido e enjaulado numa cela de sombras que surgira sei lá de onde. Ele não parecia mais enfraquecido. Eu não me sentia mais enfraquecida. Mas, em compensação, eu ainda estava sem meus poderes, e o Espírito parecia frustrado por não poder usar os seus sem que Miltred os controlasse. Nós ainda estávamos separados. E não conseguimos fazer nada estando separados. Éramos um só agora, e essa separação comprometia nós dois.
— O que vamos jogar agora, Décima Quinta? — pelo seu tom de voz, percebi com repugnância que a vilã estava contendo um sorriso — Que carta você ainda guarda na manga? Vai tentar me hipnotizar? Vai me execrar? Seja lá o que você pretende fazer, ele sofrerá comigo.
— Eu prefiro mil vezes ser execrado, a ter que depender de você, sua víbora! — Bradou o Oráculo. Sua voz era firme. Forte. Antiga.
Poderosa. Era como se Egyptum inteiro falasse através dele.
— É mesmo, querido? — Miltred falou com uma tristeza fingida — Que pena. Mas, já que você prefere que seja assim... — para meu horror, ela fez uma estatueta surgir em suas mãos: a réplica perfeita de uma garota e um jovem de mãos dadas. Aqueles dois eram o Oráculo e eu. Agora, definitivamente, a mãe do Homo Canibalis tinha a minha vida... a minha essência... a minha alma em suas mãos — Vamos começar o ritual, crianças.
— Se me permite corrigir-te, Serpente Vilanesca... — Eplégmeno saltou da aljava sem eu esperar. A calma e a frieza em sua voz me assustaram. Não parecia que ele estivera apavorado poucos minutos antes — Ninguém será execrado hoje.
— Ah, meu doce Eplégmeno! — respondeu ela, com um tom de voz tão gentil que chegou a me dar náusea — Achei que não estava disposto a ver o fim da sua senhora. Mas, já que você provou o contrário... isso só torna tudo ainda melhor. — Ela ergueu a estatueta e...
— Ela não é minha senhora. É minha amiga! E tu não vais tirá-la de mim! NÃO VAIS!
E ele disparou na direção da mulher com a rapidez de... bem, de uma flecha. Sua ponta afundou na mão ossuda da mulher, fazendo-a soltar um urro inumano de dor. Com espanto, notei que a mão que o Shakespeare flechara começara a enraizar. A criar folhas. A virar uma planta. Antes que a mulher conseguisse agarrá-lo com a mão que lhe restara, ele recuou e acertou-a bem no que era pra ser seu olho esquerdo; o local atingido assumindo a dureza de um tronco de carvalho.
— Isso! — o Orador de Rá e eu comemoramos.
— EU VOU INCINERÁ-LO, SEU GRAVETO MALDITO! — Ameaçou a vilã; ainda tentando, em vão, agarrar o ágil projétil.
— Deuses! Que grande ameaça essa, Miltred! Estou apavorado, acreditas? — ele caiu na gargalhada antes de perfurar-lhe a barriga e fazê-la curvar-se em agonia — Tola. Acha que pode me assustar com ameaças vazias?
— VOCÊ ANUNCIOU MINHA CHEGADA COM PAVOR EM SUA VOZ!
— Anunciei, foi? Oh, desculpe-me. Nesses últimos dias minhas lembranças estão meio misturadas. É como se eu tivesse duas personalidades, entende? E esta personalidade que lhe fala agora... certamente não é a mesma que retraiu-se na aljava quando você chegou. Esta aqui... não tem o menor dó de apresentar-lhe á dor e ao sofrimento. — e, sem remorso nenhum, com aquela frieza apavorante que eu simplesmente não estava reconhecendo (aquele não era o meu Shakespeare. Era algo mais sombrio. Algo que eu não conhecia. Deus... O que estava havendo com ele? Por que
essas mudanças repentinas?! O que raios estava acontecendo?!) ele perfurou a garganta dela. Sangue negro espirrou. Miltred emitiu um som engasgado, como alguém que está sendo estrangulado. Sua garganta começou a virar árvore... mas parou. Parou, porque Eplégmeno hesitou. Parou, porque o filho do Bosque retraiu-se novamente, recuando. Seu comprimento inteiro tremia — Parai! — implorou, e eu duvidava que aquela súplica fosse direcionada á Mulher — PARAI! Deixe meu ser! EU NÃO SOU SEU! NÃO LHE PERTENÇO! ENTÃO PARE DE ASSUMIR AS RÉDEAS! Deuses... Meus deuses... — Recuando, ele tentou escapar de mais uma investida, mas foi lento demais (se é que isso é possível). Miltred agarrou-o, o que me fez prender a respiração por instantes que pareceram eternos. Não. Mais que isso. Tudo ali pareceu parar de respirar: a floresta, o vento, as criaturas, o tempo, os deuses, as Parcas, e até os Três Criadores.
— Agora você me paga, Filho do Bosque. — E ela ia fazer sua mão boa irromper em chamas...
... quando foi puxada para trás por uma força misteriosa, sendo obrigada a largar a flecha, que voltou para mim num movimento que pareceu puramente instintivo. Ele não estava raciocinando. E eu não suportava que o calculista e cuidadoso Shakespeare não raciocinasse.
Agora, em nosso meio, uma nuvem escura pairava. Uma nuvem escura que logo assumiu a forma de um homem. Trofônio. Aliviada, soltei o ar que não percebi que ainda estava prendendo.
— Você. — Miltred rosnou ao ver (Nem me pergunte como ela consegue ver sem ter olhos. Eu também não sei) o Vidente das Trevas. Tranquilamente, Trofônio olhou-a de cima á baixo, parecendo tentar decidir que métodos de tortura ele usaria nela.
— Sentiu minha falta? — indagou, sorrindo friamente.
— Eu vou acabar com você! — ela quis avançar...
— Nã-nã. — os olhos dele cintilaram quando ele a fez congelar — Não vai, não. Você já se divertiu demais às custas dessas pessoas, Miltred. Agora... — estalando os dedos, ele fez a cela que prendia o Espírito Oracular se desfazer. Na mesma hora, o jovem de olhos
incandescentes correu até mim e me segurou pelos ombros. "É agora", disse, sem falar. "Sim.", respondi, sorrindo "Pode entrar se quiser". E ele entrou. Voltou para meu corpo. Interligou-se a mim novamente. Seu vínculo forçado com a mulher sendo quebrado na mesma hora — ... É a minha vez de me divertir.
— O que você vai...? — Começou Miltred, ainda sem conseguir mover seu corpo. O medo começando a surgir em sua voz — O que vai fazer?! O QUE VAI FAZER?!
— Calma, mulher! — pediu. Sua voz mortalmente calma causando-me um calafrio — Vamos devagar. Bem... — ele se aproximou dela e a tocou com uma certa ternura. Mas não com a mesma ternura que ele me tocava. Enquanto suas mãos passeavam pelo corpo dela, ele aproveitava para arrancar pedaços das partes que o Shakespeare transformara em tronco, o que arrancava da sua vítima gritos guturais. O sangue banhando seu corpo deformado — Você gosta de vínculos, não gosta?
— Para... — ela começou a chorar. A implorar — PARA!
— Ah... Isso dói, é? — ele fez biquinho e arrancou outra lasca do corpo dela, provocando mais gritos — Que dó. — Então gargalhou loucamente — AH, DEUSES! ISSO É BOM DEMAIS! — mais um pedaço arrancado. Outro grito inumano.
— VOCÊ É LOUCO! — Chorou ela.
— É. Talvez eu seja um pouquinho. — riu baixinho e passou as mãos sujas de sangue nos próprios lábios, lambendo-os logo depois. Isso fez meu estômago revirar — Continuemos com o que eu dizia: você gosta de vínculos, não gosta? Vamos ver o que acha de selar um vínculo forçado comigo.
— O quê?! — Aquela reação da mulher descreveu bem o que o Oráculo e eu pensamos naquela hora. Trofônio pirou de vez, foi?! Que história é essa de... — NÃO!
Mas ele começou o ritual. E, enquanto falava, sua voz triplicou. Era como ouvir vários dele falando ao mesmo tempo. As vozes distorcidas e assustadoras.
— Eu selo um vínculo com você. — recitou ele. As mãos erguidas. De seus dedos pálidos, uma fumaça negra começou a espiralar e entrou na boca de Miltred, fazendo-a sufocar. O cheiro ali era horrível: uma mistura do aroma enjoativo do sangue, do cheiro rançoso de enxofre e do cheiro doce de lavanda que sempre acompanhava o Vidente das Trevas. Aquela mistura aromática quase me fez vomitar. Dentro de mim, o Espírito Oracular agitou-se. Trofônio continuou: — A partir de agora, somos uma só carne. Uma só alma.
— NÃO! — os gritos da mãe do Homo Canibalis rasgavam o céu. Cortavam o ar — PARA! PARA COM ISSO!
— O que eu sentir, você sentirá.
— VOCÊ NÃO PODE FAZER ISSO!
— Dor por dor. Alívio por alívio. Lágrimas por lágrimas. Risos por risos. A partir de agora... — nessa hora, sua voz tornou-se irreconhecível. Era como ouvir as próprias sombras. Como ouvir a voz de um ser que acabara de sair das profundezas do Tártaro — Nós somos um.
E o ritual se encerrou. Eu sabia que, agora, Trofônio e Miltred estavam interligados. E que agora... a vida da vilã se transformaria num verdadeiro inferno.
— Acabe logo com isso. — Miltred grunhiu. Sua voz rouca tremendo de raiva, medo e dor. Tudo de uma vez.
— Ah, não! — Trofônio fez uma cara de choro — Deixa eu brincar um pouquinho! Não posso nem me divertir? Sua chata!
— Me mata. — implorou — Me mata! Me mata! ME MATA!
— Calma! — pediu ele, sacando uma de suas adagas e girando-a tranquilamente entre os dedos — Farei isso logo! Mas, primeiro, diga-me: você conhece a história do primeiro vínculo selado, Miltred? Não? Bem, por onde começo? No início dos tempos, poucos meses depois de o Primeiro Criador ter criado os Imaginary, um garoto nasceu. Um garoto que desde o berço se mostrara cruel. Perverso. Um garoto que, á medida que ia crescendo, sua maldade também se intensificava. Seu nome... era Baddawan. Por alguma razão, talvez por amar demais sua criação, o Primeiro Criador sempre dava chances àquele rapaz. Chances para que se arrependesse dos seus atos maus. Chances para que se tornasse alguém melhor. Mas acontece que Baddawan não mudou. Logo tornou-se um homem adulto, mas a maldade continuou lá. Aí chegou o dia... em que o Primeiro Criador se cansou de ser benevolente e... fez o que devia ter feito desde o começo.
Gelei. Eu conhecia aquela história. O Fernando já a contara para mim com uma de suas músicas. E... eu sabia onde Trofônio queria chegar. Enquanto ele falava, pude ver os Imaginary sendo criados. Pude ver Baddawan nascendo. Pude vê-lo crescer e cometer atrocidades ao longo da sua vida. Pude ver antecipadamente o fim daquela história.
— Me mata... — Miltred chorava. A voz parecia querer sumir — Me mata...
Trofônio respondeu àquela súplica com um sorriso leve e continuou a falar:
— O Primeiro Criador ligou a alma de Baddawan à de um corvo. Conectou a ave e o homem cruel e aí... ele deu início ao fim daquele verme em forma de humano.
A partir daí, Trofônio não disse mais nada. Ele apenas... apenas encenou. Aquele pátio tornou-se o palco para a peça de horrores onde Miltred era Baddawan, pagando por toda a sua crueldade, e Trofônio, vestido de escuridão, era ao mesmo tempo o corvo e o Primeiro Criador. Era o vinculador e o vinculado. Aquele que estava disposto a sofrer para que sua vítima também sofresse.
Com movimentos rápidos, Trofônio começou a se mutilar. Primeiro, cortou fora um dos próprios braços.
Sangue etéreo jorrou. Com Miltred aconteceu o mesmo: enquanto ela gritava tão alto que certamente todos os seres vivos de cada um dos Três Universos conseguiram ouvir, um de seus braços foi arrancado, o que resultou em mais urros animalescos. Mas mesmo que Miltred implorasse para Trofônio parar... ele não parou. Ainda usando sua adaga, ele se pôs a esfolar-se. Começou a arrancar a própria pele sem nem mesmo demonstrar um fio de dor sequer, ao passo que a mãe do Homo Canibalis se contorcia em agonia, enquanto sua pele fina era arrancada dela. Agora, ambos eram apenas músculos, órgãos e ossos. Seu sangue começou a se derramar todo pelo chão. E, para fechar com chave de sangue, Trofônio segurou firme sua adaga e, tranquilamente, fez o objeto cortante atravessar desde suas genitais até o topo da sua cabeça. Agora, eu olhava para dois corpos partidos ao meio: um, era o da mulher que tentara me matar. E o outro... era de um dos rapazes de quem eu gostava.
— Ai, meu D... — sem conseguir conter o enjoo, vomitei ali mesmo. Os olhos arregalados iam de Trofônio (ou do que sobrara dele, nesse caso) para Miltred e depois para Trofônio novamente. Eu simplesmente não conseguia acreditar que ele fizera mesmo aquilo — Seu maluco... — antes que eu pudesse perceber, estava chorando. Chorando por Trofônio. Deus! A que ponto eu fui chegar? — O que foi que você fez? Que droga, Trofônio! O que foi que você...
— Nossa! Você está mesmo chorando por mim ou eu enlouqueci de vez? — girei nos calcanhares. Trofônio estava de pé. Inteiro. Sem nenhum arranhão. Lindo como sempre. Mas espera! E esse corpo despedaçado na minha frente?! — Estava chorando mesmo! — riu — Ah, Searcher...
— Como... Eu... Você... Você estava... — fiz uma careta — Como?!
— Eu sou um fantasma, Searcher. Não morro, esqueceu? Bem, a não ser que eu tivesse usado a Adaga, mas ela está com você. E quanto a isso aí... — ele apontou para o seu corpo fatiado, que, na verdade não era seu (AI, QUE BIZARRO!) — Eu sou bom em brincar com a mente das pessoas. Você sabe disso. — estalando os dedos, ele fez a sua cópia destruída sumir e fez o corpo de Miltred ser engolido pelo chão. O jogou nas profundezas do Tártaro — Viu? Não há nada aí.
Suspirei, aliviada, e me aproximei mais dele.
— Me dá só um motivo pra eu não te dar um tapa agora mesmo. — Sussurrei, minhas mãos acariciando seu belo rosto, então passando por seus cabelos escuros, até que, por fim, eu pus os braços em volta do seu pescoço.
— Você não conseguiria. Gosta demais de mim para fazer isso. — Ele encostou a testa na minha.
— Convencido. — Falei baixinho.
— Garota irritante. — Devolveu no mesmo tom, beijando-me logo depois. Então, com um suspiro, afastou-se, evitando me olhar nos olhos.
— O que foi? — Ergui as sobrancelhas. Como não houve resposta, virei seu rosto delicadamente para mim — Ei... Para de tentar esconder o que sente.
— Eu... — sua mão foi até meu colar (o que Fernando me dera) e brincou com o pingente — Também tenho algo para te dar.
— Trofônio... — Antes que eu pudesse dizer algo, ele moveu as mãos e seu presente surgiu, cobrindo meu corpo: um deslumbrante vestido preto, de mangas longas. O tecido era fino e macio.
— É... — foi minha vez de desviar o olhar — É muito lindo, mas... — Baixei uma das mangas, expondo meu ombro. Não posso aceitar, dizia aquele gesto.
— Eu te amo, Flautista. — disse o Vidente das Trevas. Suas mãos agora acariciando meus ombros. Uma delas viajou até a cicatriz, me fazendo morder o lábio — Te amo. Será que é tão difícil perceber?
— Eu... — me afastei — Trofônio, nós... não podemos. Luz e trevas não podem...
— Que droga! — exasperou-se — Por quê?! ME FALA! POR QUÊ?! É pelo Fernando, não é?! É sempre ele! ELE atua no palco do seu coração! ELE é seu amor verdadeiro!
— Trofônio... — Eu não sabia o que dizer. Não sabia o que fazer. Não sabia o que sentir.
— Se não era para acontecer... então... Por quê?! Por que você entrou no meu coração sem meu consentimento?! Por que você me mostrou a luz sabendo que eu era um ser das trevas?! POR QUE VOCÊ ME APRESENTOU A ESSA DROGA DE AMOR SE VOCÊ NÃO COMPARTILHA DO QUE EU SINTO?! Me fala! Por que não me destruiu quando teve a chance?!
— Eu não podia... — Tentei tocá-lo.
— SE AFASTA DE MIM! — Me empurrou, fazendo-me cambalear.
— Você faz parte da minha vida agora. — falei — Eu não posso...
— Fernando e eu estamos à beira de um precipício, Searcher. Cabe a você decidir qual dos dois vai salvar... e qual deixará cair no esquecimento.
— Não fale assim... — o segurei pelas mãos — Por favor... Eu... Eu também te amo. Também amo você, Trofônio, mas... O Fernando também é dono do meu amor. Se eu o deixasse cair... meu coração se despedaçaria.
— E se me deixasse cair?— Eu morreria com você. Eu não quero escolher, Trofônio. Eu amo vocês dois. Não... Não quero escolher.
— A corda que você lançou só aguentará um de nós, Flautista. E estamos começando a perder nossas forças. Se você não escolher, perderá nós dois.
— Não...
— Feliz aniversário, Laíres. — Foi o que ele disse, antes de desaparecer.
Sozinha no pátio, eu fechei os olhos por um instante. Deixei que o silêncio me embalasse. Tentei esquecer tudo que acontecera naquela noite, mas... era impossível. Trofônio acabara de se declarar para mim e eu dissera não. Mais uma vez... eu não soube escolher. Droga de escolhas! Por que elas sempre me atormentam? Por que não sei escolher, mesmo tendo sido treinada pelo deus das escolhas?!
— Meu Deus... — sussurrei — Tem como esta noite ficar mais confusa do que já tá?
— Ela... está morta? Miltred, quero dizer. — o filho do Bosque saltou da aljava e pairou diante de mim.
Estreitei os olhos.
— É, Shakespeare. Ela tá. Ué? você estava na aljava o tempo todo. Não viu o que aconteceu aqui? Jura?
— Perdoe-me. Eu... Estava distante. Só isso.
— Distante? — repeti — Ah, nossa. Sério, Shake: O que tá acontecendo com você?
— Hum...?
— Você mudou. Não é nem de longe o projétil que seu pai me entregou. Você muda de comportamento de repente, está sendo impulsivo, e agora me diz que estava distante? — o segurei e o observei desde a ponta até as penas esverdeadas e magníficas no fim da sua haste — Me fala: o que tá acontecendo? Porque se eu não souber... não posso te ajudar.
— O conhecimento é algo perigoso. Às vezes, é mais seguro permanecer na ignorância.
— A ignorância dói. — devolvi — É desesperador ficar sem saber o que tá afligindo alguém com quem você se importa.
— Então pare de importar-se comigo. Talvez isso faça sua dor passar.
— Quê?! Não! — Senti meu coração acelerar.
— Importe-se com quem realmente vale a pena, Oráculo de Egyptum. Importe-se com alguém em quem possa confiar.
— Eu posso confiar em você! Sei que posso!
— Não pode, não. Não pode, porque agora nem mesmo eu confio em mim. Este mesmo Eplégmeno que tentou te proteger contra Miltred... pode ser o mesmo que perfurará teu peito um dia.
— Não fale assim... — Era como se uma mão gelada estivesse esmagando meu coração.
— Adeus, criança. — Aí ele foi. Voou noite afora sem eu poder impedi-lo.
— Shakespeare... — Sussurrei seu nome em vão. Eu queria chorar, mas meus olhos já haviam derramado lágrimas demais. O que o destino estava fazendo comigo? Primeiro, Trofônio disse me amar e eu simplesmente não consegui dizer um "sim" a ele porque ainda amava o Fernando. Depois, o Shakespeare vai embora em uma das cenas mais dramáticas possíveis. Por que tá tudo dando errado aqui?
— O que é que ele tem, afinal? — Me virei. Fernando olhava para mim, de pé, envolto em meu manto.
— Eu não sei. — respondi, minha voz quase sumindo — Eu não sei de mais nada. — tentando me recompor, fui até ele e passei um dos braços em volta dos seus ombros — Vamos. Vamos entrar. Você ainda precisa da sua medicação, e eu preciso urgentemente dormir.
                                  ● ● ●
Não consegui dormir. Deitada na cama, eu só conseguia ficar olhando para o teto. Pensando. Repetindo cada acontecimento daquele dia na minha cabeça. Dentro de mim, o Espírito Oracular estava quieto, o que só conseguiu me deixar mais inquieta ainda. Eu sabia que ele estava cansado, mas eu preferia mil vezes senti-lo se agitar. Aquela quietude, aquele silêncio, aquela incerteza dentro de mim, estava me matando.
— Eu não consegui partir. — sentei na cama com um arquejo. O Filho do Bosque pairava na minha frente — Eu tentei! Mas... Mas...— sua voz tremeu — Me desculpe...
— Tá tudo bem. — O peguei e o pressionei contra meu peito, como quem abraça, alegre, algo que por muito tempo achou que estava perdido, mas que finalmente conseguiu encontrar — Tudo bem. Você está aqui agora.
— Eu ainda tenho que dizer? O que há comigo?
— Não. — respondi, deitando-me na cama — Não. Seja o que for, vamos conseguir lidar com isso. Juntos.
— Eu não hei de deixar-te nunca mais, certo? Não enquanto minha mente ainda me pertencer.
Senti um calafrio. Não enquanto minha mente ainda me pertencer. O que ele queria dizer com aquilo? O que estava em jogo aqui? Mas mesmo que essas perguntas girassem na minha cabeça de modo enlouquecedor, eu deixei-as de lado. E tudo que fiz foi prometer:
— Eu também nunca vou deixá-lo, Eplégmeno. E se algo te tirar de mim... — Deus! Porque raios eu tinha a sensação de que isso ia mesmo acontecer? — Eu lutarei por você. Irei até os confins dos
Três Universos para te ter de volta.
E aí... nós nos calamos. Deixamos apenas o silêncio nos embalar como um cobertor. Deixamos a noite passar. E, por mais difícil que aquilo fosse, tentamos deixar nossas aflições para trás.

As Aventuras de Laíres e Fernando na Terra da Imaginação: Do Fim ao Recomeço Onde histórias criam vida. Descubra agora